Arte/G1
A
relação entre campo e cidade na sociedade brasileira é forte, embora o processo
de urbanização tenha se acentuado lá pelo meado do século XX, quando a
população do país se tornou majoritariamente urbana. Mas o processo migratório
continuou, a busca do homem do interior pelas grandes cidades só intensificou.
Estudos sobre essa questão se fazem presentes em todas as áreas, como
sociologia, história, geografia humana, antropologia e em crítica literária.
Esta vem se acentuando nas últimas décadas pelo número de escritores que
passaram a abordar o tema em sua literatura.
Desde
a década de 1950, o Brasil passou a ter dois grandes autores representativos
das duas partes. De um lado, João Guimarães Rosa, com o romance Grande sertão: veredas e os vários
livros de contos como Sagarana, Primeiras estórias e Corpo de baile, que imprimem a alma do
homem do campo com suas contradições e riqueza de espírito no mapa visível da
sociedade. De outro, um clássico ainda do entresséculo anterior, Joaquim Maria
Machado de Assis, cuja obra é inteiramente dedicada à vida urbana da então
capital federal, Rio de Janeiro. Estes dois autores compõem o lastro da
literatura contingente da alma brasileira.
No
Romantismo houve autores que escreveram romances urbanos e rurais, como José de
Alencar e Franklin Távora. Mas no cômputo geral, Machado de Assis e Guimarães
Rosa podem ser colocados aqui, sem demérito ou juízo de valor em relação aos
demais autores, de qualquer época, como os dois gigantes da narrativa que
perscrutaram o ambiente urbano e o ambiente rural de forma universal. Eles são
representantes literários da maneira como nossa sociedade se vê.
Machado
de Assis compôs personagens que continuam fortes como parte desta urbanidade,
entre elas Brás Cubas, Capitu, Bentinho, o conselheiro Aires, todos eles
citadinos, consumidores da cultura urbana, leitores, frequentadores de teatros,
membros da alta sociedade carioca ou fazendo-se parte dela de algum modo, como
agregado ou por meio de laços matrimoniais, como a Capitu, que se casou com
Bentinho, filho da aristocracia fluminense, no romance Dom Casmurro. Além disso, o Rio de Janeiro acaba se tornando também
uma personagem machadiana, pela perscrutação do autor, que mostra os hábitos e
a dinâmica da cidade.
Já
em Guimarães Rosa, temos não só homens e mulheres como personagens, mas também
o próprio sertão. Riobaldo, Manuelzão, Miguilin, Augusto Matraga, os irmãos
Dagobé, uma infinidade de outros nomes, e junto a eles, o sertão mineiro, o
sertão baiano, o sertão goiano, que viraria mais tarde o sertão tocantinense, pois
o Estado de Goiás se partiu em dois, dando à luz o Tocantins, a parte norte,
que é justamente a região citada por Riobaldo, em Grande sertão: veredas, o Jalapão.
“Sertão
é isto”, diz Riobaldo, “o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a
rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera” (ROSA, 1986, p.
249) (...) “Sertão: é dentro da gente” (ROSA, ibidem, p. 270) (...) “O sertão é
sem lugar” (ROSA, ibidem, p. 310). Este sertão, o ser que mora nele, passou a
visitar as metrópoles. O homem do interior do país vai para a cidade grande,
mas não se despindo de si para viajar, vai levando consigo esse mar de
estranheza, buscando a cidade com desejo e medo, perdendo-se nela,
transformando-a também.
Perfazendo
esta malha de brasilidade, entre esses dois ícones da literatura brasileira,
outros autores vieram construindo personagens e romances que tratam dos
elementos campo e cidade. Mas não separados, como em Machado de Assis e
Guimarães Rosa. Para ficar aqui apenas na literatura da prosa, e mais
especificamente, do gênero romance, diversos outros autores brasileiros
escreveram sobre a relação do homem rural com o espaço urbano, mostrando o
processo migratório e o efeito disso na alma do migrante.
O
espírito do tema, por assim dizer, pode ser chamado de processo migratório,
justamente porque trata de homens que saem de um lugar para outro à procura de
um lugar para viver melhor, ou simplesmente em busca de algo desconhecido,
fruto do desejo de mudar, que esses homens pensam estar na cidade grande. É
neste último sentido específico que muitos autores trabalham em sua obra
aspectos da ida do homem do campo para a metrópole.
O
sentimento de deslocamento é profundo nessas obras, que servem de espelho da
sociedade moderna; são romances que refletem um tipo de sentimento e de vida e,
por isso mesmo, essa temática pode ser vista como um corpo de conhecimento, que
se faz pela captação do real e sua transformação em arte, tornando-se um
conhecimento sensível, estético, mas um conhecimento. Quem lê, vê ali um
espelhamento da sociedade.
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