sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Entre o campo e a cidade

Arte/G1

A relação entre campo e cidade na sociedade brasileira é forte, embora o processo de urbanização tenha se acentuado lá pelo meado do século XX, quando a população do país se tornou majoritariamente urbana. Mas o processo migratório continuou, a busca do homem do interior pelas grandes cidades só intensificou. Estudos sobre essa questão se fazem presentes em todas as áreas, como sociologia, história, geografia humana, antropologia e em crítica literária. Esta vem se acentuando nas últimas décadas pelo número de escritores que passaram a abordar o tema em sua literatura.

Desde a década de 1950, o Brasil passou a ter dois grandes autores representativos das duas partes. De um lado, João Guimarães Rosa, com o romance Grande sertão: veredas e os vários livros de contos como Sagarana, Primeiras estórias e Corpo de baile, que imprimem a alma do homem do campo com suas contradições e riqueza de espírito no mapa visível da sociedade. De outro, um clássico ainda do entresséculo anterior, Joaquim Maria Machado de Assis, cuja obra é inteiramente dedicada à vida urbana da então capital federal, Rio de Janeiro. Estes dois autores compõem o lastro da literatura contingente da alma brasileira.

No Romantismo houve autores que escreveram romances urbanos e rurais, como José de Alencar e Franklin Távora. Mas no cômputo geral, Machado de Assis e Guimarães Rosa podem ser colocados aqui, sem demérito ou juízo de valor em relação aos demais autores, de qualquer época, como os dois gigantes da narrativa que perscrutaram o ambiente urbano e o ambiente rural de forma universal. Eles são representantes literários da maneira como nossa sociedade se vê.

Machado de Assis compôs personagens que continuam fortes como parte desta urbanidade, entre elas Brás Cubas, Capitu, Bentinho, o conselheiro Aires, todos eles citadinos, consumidores da cultura urbana, leitores, frequentadores de teatros, membros da alta sociedade carioca ou fazendo-se parte dela de algum modo, como agregado ou por meio de laços matrimoniais, como a Capitu, que se casou com Bentinho, filho da aristocracia fluminense, no romance Dom Casmurro. Além disso, o Rio de Janeiro acaba se tornando também uma personagem machadiana, pela perscrutação do autor, que mostra os hábitos e a dinâmica da cidade.

Já em Guimarães Rosa, temos não só homens e mulheres como personagens, mas também o próprio sertão. Riobaldo, Manuelzão, Miguilin, Augusto Matraga, os irmãos Dagobé, uma infinidade de outros nomes, e junto a eles, o sertão mineiro, o sertão baiano, o sertão goiano, que viraria mais tarde o sertão tocantinense, pois o Estado de Goiás se partiu em dois, dando à luz o Tocantins, a parte norte, que é justamente a região citada por Riobaldo, em Grande sertão: veredas, o Jalapão.

“Sertão é isto”, diz Riobaldo, “o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera” (ROSA, 1986, p. 249) (...) “Sertão: é dentro da gente” (ROSA, ibidem, p. 270) (...) “O sertão é sem lugar” (ROSA, ibidem, p. 310). Este sertão, o ser que mora nele, passou a visitar as metrópoles. O homem do interior do país vai para a cidade grande, mas não se despindo de si para viajar, vai levando consigo esse mar de estranheza, buscando a cidade com desejo e medo, perdendo-se nela, transformando-a também.

Perfazendo esta malha de brasilidade, entre esses dois ícones da literatura brasileira, outros autores vieram construindo personagens e romances que tratam dos elementos campo e cidade. Mas não separados, como em Machado de Assis e Guimarães Rosa. Para ficar aqui apenas na literatura da prosa, e mais especificamente, do gênero romance, diversos outros autores brasileiros escreveram sobre a relação do homem rural com o espaço urbano, mostrando o processo migratório e o efeito disso na alma do migrante.

O espírito do tema, por assim dizer, pode ser chamado de processo migratório, justamente porque trata de homens que saem de um lugar para outro à procura de um lugar para viver melhor, ou simplesmente em busca de algo desconhecido, fruto do desejo de mudar, que esses homens pensam estar na cidade grande. É neste último sentido específico que muitos autores trabalham em sua obra aspectos da ida do homem do campo para a metrópole.

O sentimento de deslocamento é profundo nessas obras, que servem de espelho da sociedade moderna; são romances que refletem um tipo de sentimento e de vida e, por isso mesmo, essa temática pode ser vista como um corpo de conhecimento, que se faz pela captação do real e sua transformação em arte, tornando-se um conhecimento sensível, estético, mas um conhecimento. Quem lê, vê ali um espelhamento da sociedade.


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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Nenhum dia de cão

A inteligência e o cultivo do saber do povo judeu são fascinantes. Seus livros sagrados – seu acervo de palavras profundas que nos lançam a um caminho de luz ou nos ameaçam às trevas (se não seguirmos as normas que equilibram o espírito) – são colunas gigantes de ensinamento. O Zohar, por exemplo, o livro do esplendor, diz coisas maravilhosas sobre nossa condição humana.

O Zohar é considerado a espinha dorsal da Cabala, e durante muitos séculos foi transmitido apenas entre os judeus como a “parte mais mística da Torá Oral”. Nos trechos traduzidos para o português pela editora Polar, o mestre Shimon ben Yochai revela a beleza e os mistérios desse universo.

A metáfora dos dias como unidades constituintes do ser do homem, todos contados já no nascimento – cada dia consciente de sua posição, para levar o homem até seu leito de morte – é um grande ensinamento sobre a presença e a materialidade da alma, daquilo que não se vê, do ar, da existência para além da aparência.

Segundo o Zohar, os dias “descem à terra, um depois do outro, e cada um exorta o homem a não pecar em seu dia. Quando um dia vê que o homem não o escutará, mas está determinado a pecar, ele se enche de vergonha. Então retorna para as regiões superiores e dá o testemunho dos atos do homem.” Mas ele, o dia manchado pela falha humana, é apartado dos outros dias para sempre.

A imagem de dias subindo de vergonha e deixando a biografia do homem com falhas de caráter é exemplar para explicar o combate a tudo quanto é violência. Ainda assim, há uma divisão entre os homens (esses seres de alma), em que uns procuram a serenidade e outros vão de cabeça contra a vida. E a clivagem ocorre mesmo entre os conhecedores desse mar de palavras reguladoras do espírito.

Até mesmo entre os judeus, fundadores dessa esperança, há quem goste de matar. E não é de hoje. Esse rastro de destruição e morte vem sendo registrado desde o gênesis. E o vemos se repetir agora. Penso em gente como Netanyahu, premiê de Israel, e primos. Será que na fila de seus dias, ainda há algum que não tenha subido de vergonha?

Na história da humanidade há sempre o rancor. Em alguns de nós, ele se cala, seca e vira seda ou algo parecido, porque todos os dias se sentem jubilosos em nos acompanhar. Mas em outros, no filamento duplicado da alma, o que prevalece é esse barro ínfimo de liga ruim que nos erige. É por causa deles que tantos dias sobem envergonhados e tristes. Pecar não é um ato apenas de quem tem fé, é machucar o outro. Neste sentido, todos nós temos dias de cão.

No Zohar, a palavra é apresentada como véu, por trás do qual há mil mistérios, tendo-se que atravessá-los para se aproximar de alguma coisa parecida com Deus. Para mim o que importa é a beleza crítica dessa busca. Não é Deus que está em jogo, mas nós mesmos.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 29/11/2014)


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