A
escritora Patrícia Secco conseguiu arrecadar pela Lei Rouanet R$ 1
milhão para um programa de adaptação de dois clássicos da
literatura brasileira, O Alienista, de Machado de Assis, e A
Pata da Gazela, de José de Alencar. Junto, angariou uma
polêmica, pois a ideia é simplificar a linguagem literária dos
dois gigantes do século 19 para distribuir gratuitamente entre não
leitores, introduzindo-os no universo da leitura. Há quem veja valor
nisso e quem ache que não passa de profanação.
É uma
polêmica interessante, porque desperta várias discussões. O
projeto em si é uma espécie de terremoto de pouca profundidade, que
não abala as estruturas, não faz revolução, mas pelo menos move
alguns espíritos, comove outros, e a literatura ganha protagonismo
nas redes sociais, na imprensa e na escola.
Há um
fator politico e um econômico, além da questão de linguagem, que
especialistas poderiam comentar. Mas sobre simplificar textos
literários, a história editorial está cheia de casos como esse.
Homero, Dante, Shakespeare, os grandes sempre foram simplificados na
tentativa de se alcançarem novas almas que, provavelmente, já estão
acostumadas a ouvir os nomes dos figurões sem disposição para
lê-los.
O debate
sobre o projeto de Patrícia Secco, no mínimo, possibilita-nos
lembrar o quão importante é a narrativa bem construída, carregada
de significado, ou seja, o inverso do que ela quer fazer. Toda
leitura vale pela descoberta, mas quando o campo é mais rico de
possibilidades, as descobertas são maiores.
Neste
sentido, é bom lembrar que as adaptações são correntes. Aparecem
aos montes do complexo para o simples. O que não podemos nos
esquecer é de que há inúmeros casos de autores que pegam um texto
relativamente simples, geralmente um arquétipo, e os põem em um
patamar de profundidade maior. Neste caso, precisamos de Machado de
Assis por inteiro.
O grande
mestre na arte de pegar uma história mais ou menos e torná-la
profunda é William Shakespeare (1564-1616), em uma época que não
se discutiam direitos autorais. Cada um que fizesse o seu melhor. Sua
peça Romeu e Julieta, de 1594, é uma deliberada adaptação
do texto de outros autores.
Em 1554,
o padre e escritor italiano Matteo Bandello (1485-1561) havia
publicado uma novela intitulada Romeu e Julieta, cujos personagens de
Julieta Capuleto e Romeu Montéquio se amam, mas vêm de
famílias que se odeiam, como em Shakespeare. Recuando no tempo, o
mesmo texto, com algumas variações, já circulava com Amanti
Veronesi (Os Amantes de Verona, em tradução livre), de Luigi da
Porto, de 1535, e Il Novellino (O Novato), de Masuccio
Salernitano, no século anterior.
Neste
caso, por que Shakespeare se sobressaiu? Dois cotejos podem mostrar
como ele tirou o texto da prosa e o condensou em linguagem dramática.
Em uma das cenas, Julieta e Romeu se veem pela primeira vez, e se
apaixonam, em um baile na casa dela, onde fica sabendo por sua ama
que Romeu é um Montéquio.
Na novela
de Bandello, há uma página inteira narrando o sentimento de
Julieta, entre o desespero e o desejo, “acuada por dois
contraditórios pensamentos, dos quais um lhe dava ânimo para
conseguir o seu intento e o outro lhe truncava todos os caminhos.”
Em
Shakespeare, a mesma cena aparece em uma só fala de Julieta a sua
ama: “Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o
vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é.
Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão
odiado inimigo.”
A segunda
cena acontece quando Romeu contempla Julieta na janela do quarto
dela. Em Bandello, Romeu já havia visto Julieta várias vezes da
viela aos fundos da casa dos Capuleto, para a qual dava a janela, e
os dois se correspondiam com olhares. Um dia, Romeu está perto do
quarto de Julieta, ela chega à janela, ele tenta se esconder, mas
não dá tempo, ela o vê e pergunta: “Romeu, o que faz você
sozinho aqui a esta hora? Se aqui fosse encontrado, coitado, o que
seria de sua vida?”
Em
Shakespeare, em vez de uma viela e de trocas de olhares, há um
jardim e um muro que Romeu, após conhecer Julieta no baile,
atreve-se a pular para chegar à janela dela e ficar lá embaixo,
ouvindo seus suspiros: “Ah, Romeu, Romeu! Por que tinhas de ser
Romeu?” Sem que ela soubesse de sua presença, ele responde:
“Tomo-te por tua palavra: chama-me de teu amor, e serei assim
rebatizado; nunca mais serei Romeu.” Julieta então, surpresa,
replica: “Quem é esse homem que, assim envolto pela noite, tropeça
em meu segredo?”
Um dia
perguntei ao especialista em Shakespeare, John Milton, porque ninguém
mais ousou reescrever Romeu e Julieta após Shakespeare, já que era
uma história de domínio público. E ele respondeu rapidamente:
Shakespeare foi perfeito e definitivo, reescreveu a peça sem deixar
brechas para ninguém mais.
Já no
caso da adaptação de Patrícia Secco, ela reduz a potência de
Machado, simplificando os códigos de sua literatura na pretensão de
angariar leitores. Isso só é bom porque democratiza o acesso à
leitura, mas leitor que se preza não pode, nem deve, se esquivar dos
grandes.
Ler os
grandes é como escalar montanhas ou descer abismos. Em Viagem ao
Centro da Terra, de Júlio Verne, o comandante Lindenbrock dá
lições de abismo a sua tripulação para ter ideia do que é fazer
um mergulho sem igual como aquele. Talvez Patrícia pretenda dar
essas lições de abismo aos não leitores, uma proposta de levitação
para se encararem as profundezas de Machado de Assis. Mas é como
ensinar a nadar em terra firme, ou dar instruções de salto de
paraquedas ainda cá embaixo.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular,
24/05/2014)
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