O romance Guerra
e paz, do russo Liev Tolstói, foi escrito entre 1863 e 1869, mas ambientado
num tempo anterior, numa Rússia que enfrentou o gênio estratégico de Napoleão
Bonaparte que queria dominar o mundo, e estava quase conseguindo, até se
esbarrar no combate de homem a homem da batalha de Borodinó.
Guerra e paz é um romance
longo, que no formato publicado pela editora brasileira CosacNaify leva 2.528
páginas, em dois volumes, costurando a vida comezinha do dia a dia e as grandes
batalhas. Com uma multidão de personagens, muitos deles pertencentes à ala de
frente da trama, desempenhando papéis fundamentais, narra a vida da sociedade
russa num momento importante de sua história, um período de agonia e glória,
retratando um conflito que durou de 1805 – quando o exército de Napoleão dá os
primeiros sinais de que invadiria a Rússia de Alexandre I – a 1812, quando
ocorreu a batalha de Borodinó e 80 mil soldados tombaram, no total.
Depois a
narrativa escorre por mais um ano, além de sugerir que o tempo da narração está
ancorado em 1819.
Para falar da
guerra e abrir uma discussão sobre o fracasso da história, ao mesmo tempo em
que mostra a alma russa, Tolstói trouxe junto todo o tecido social, com os
fatos da cozinha e da intimidade da alta burguesia, os conchavos, as fofocas,
os bailes, o amor, o ódio, os contratos sociais, tudo para encorpar o novelo de
acontecimentos de um corpo social complexo, dentro do qual vão-se forjando os
novos fatos, dentro do qual a História se perde e não consegue alcançar a
explicação de por que uma guerra acontece, nem de por que uma sociedade muda
seu rumo.
O primeiro
volume, com os primeiros tomos, é dedicado à alternância entre tempos de guerra
e tempos de paz, entre o front, com tiros e mortes, e os salões, com flertes e
conspirações.
Vemos surgir os
grupos e os matizes sociais no salão de Anna Pávlovna, a herança de Pierre
Bezúkhov, a perfídia da bela, mas ordinária, Hélène, o jogo de interesse de
Vassili, a bela família dos Rostov, com Natacha, Pétia, Nikolai e Sônia, a
complicada mas honrada família dos Bolkónski, com Mária e o irmão Andrei, as
discussões pró e contra Napoleão, as relações de uns e outros com a família
imperial.
No segundo
volume, tudo se mistura, pois é quando a guerra já tomou conta do país e todas
essas personagens estão, de alguma forma envolvidas na guerra, que do lado
russo está sob o comando do general Mikhail Ilariónovitch Kutúzov, cujo
exército de algumas dezenas de milhares de homens enfrentará as centenas de
milhares de soldados franceses e a ardilosa mente de Napoleão.
É nesse
caldeirão de vida que Tolstói usa a História como contra-argumento, para
mostrar que a Literatura alcança os recantos aonde a própria História não
consegue ir. A Literatura dá conta de um tipo de verdade que a História sequer
sonha que existe, uma verdade feita de acontecimentos minúsculos que vão se
agigantando como átomos acumulados, pregados uns nos outros até que, como num
milagre, moléculas surgem para criar corpos maiores para dar forma a estruturas
a olhos vistos.
Esta, em
conjunto com outras estruturas, é o que a História consegue ver. Aqueles, entre
partículas, átomos e moléculas, é o que a literatura pode captar e mostrar ao
leitor, apontando os marcos a partir do qual a vida é feita, em que os fatos
acontecem, mostrando, portanto, como a sociedade se faz e navega no fluxo dos
acontecimentos.
Guerra e Paz é um romance
inventado para inventar um tipo de Rússia, a forte, teutônica Rússia, e ao
mesmo tempo mostrar a tibieza da História, incapaz de apontar os pormenores que
levam uma nação em guerra à vitória ou à derrota.
Entre um caso e
outro, mostra também a força e a fraqueza individual dos homens. Mostra a
imponência de Napoleão, homem admirável pela capacidade de ser imperador e ao
mesmo tempo general, de comandar um império e ao mesmo tempo estar à frente de
um campo de batalha. Mas retrata também o tamanho físico de Napoleão, fazendo
uma metáfora para sua insignificância diante da guerra e das circunstâncias.
Os diversos
fatos de guerra, as batalhas, as mortes, os recuos, os avanços, os saques, a
coragem e a covardia dos soldados, o amor, os bailes, as traições, a
religiosidade, a ganância, os mínimos detalhes que vão se acumulando na alma de
cada personagem, tudo isso são fatores que no acúmulo dos dias e dos anos vão
direcionando as ações humanas, interferindo de uma maneira ou de outra para
que, no final de cada modificação na vida social, esses pequenos detalhes
tenham tido papel importante nas grandes mudanças.
Esta é a tese
de Tolstói, uma tese segundo a qual a História não consegue captar esses
pormenores de sentimento, de ação, de perspectiva. Tudo depende das
circunstâncias, que não se prende a nenhum fator especial.
E a História
não consegue isso porque é feita pelo uso do intelecto, cuja principal
ferramenta de acesso aos fatos é a razão. Mas os fatos da vida, os fatos que
levam a um corpo maior, acabado, do que se chama realidade escapam à razão, na
hora de serem contados. O que fixa isso são as circunstâncias, e elas não podem
ser vistas do mesmo modo por intelectos diferentes.
Uma das
personagens fulcrais de Guerra e paz, Pierre, em certo momento
representa essa contestação tolstoiana. Pierre vai participar de um encontro
maçônico pela primeira vez, e lá, naquela reunião, “ele se impressionou com a
infinita diversidade de intelectos humanos, cuja consequência é que nenhuma
verdade se apresenta da mesma forma para duas pessoas”, foi sua conclusão
(2011, p. 898).
Quem luta para
construir sua vida segundo a própria razão “sucumbe. Quem se submete às
circunstâncias, vence.” Eis a premissa. O romance inteiro é construído para
levar a cabo essa ideia. E isso acontece não só na guerra, acontece no amor
também.
Sobre a guerra,
basta citarmos a passagem em que o narrador argumenta por que a sangrenta
batalha de Borodinó teria acontecido do jeito que aconteceu independente de
Napoleão, razão também pela qual a Rússia vence, embora tenha menos soldados e
menos intelecto, se for comparada aqui a genialidade de Napoleão e a propagada
parvoíce e quietude de Kutúzov.
“Muitos
historiadores dizem que a batalha de Borodinó não foi vencida pelos franceses
porque Napoleão estava resfriado e que, se ele não estivesse resfriado, as suas
ordens, dadas antes e no decurso da batalha, teriam sido ainda mais geniais, a
Rússia estaria perdida, et la face du monde eût été changée. Para os
historiadores que consideram que a Rússia foi formada pela vontade de um homem
só – Pedro, o Grande – e que a França passou da república ao império e suas
tropas foram para a Rússia pela vontade de um só homem – Napoleão –, e o
argumento de que a Rússia continuou a ser poderosa porque Napoleão teve um
grande resfriado no dia 26 é, para tais historiadores, um raciocínio
perfeitamente lógico. (...).
“Mas,
para as pessoas que não admitem que a Rússia tenha sido formada pela vontade de
um só homem – Pedro I – nem que o império francês tenha constituído e a guerra
contra a Rússia tenha tido início pela vontade de um só homem – Napoleão –, tal
raciocínio não só parece equivocado e absurdo, como também contrário a toda
essência humana. (...)
“Na
batalha de Borodinó, Napoleão não atirou em ninguém e não matou ninguém. Os
soldados fizeram isso. Portanto não foi ele que matou as pessoas.
“Os
soldados do exército francês foram matar os soldados russos na batalha de
Borodinó não por causa das ordens de Napoleão, mas por sua própria vontade.
(...) Se Napoleão tivesse proibido suas tropas de lutar contra os russos, os
soldados o matariam e partiriam para lutar contra os russos, porque isso era
uma necessidade para eles” (2011, p. 1632-35).
Todo o romance
de Tolstói flui com essa lógica da incerteza, da irracionalidade, do insólito.
Tanto é assim que suas personagens parecem ir para um lado e de repente estão
em outro, como é a história de Hélène e Pierre, que se casam, e depois ela
morre e ele se casa com Natasha, ou a história de Nicolai, apaixonado por
Sônia, e ela por ele, mas acaba se casando com Mária.
Esse exemplo do
amor e da guerra submetidos às circunstâncias é a essência da vida, segundo a
premissa de Guerra e paz. Ou seja, Não só no curso da história, da vida
social e política, mas também o fluxo da vida interior é um produto mais do
acaso do que do planejamento. Quando Nikolai Rostóv se preparava para se casar
com Mária, o narrador, provavelmente ele mesmo, diz o seguinte:
“(...)
Após uma breve mas sincera luta entre a tentativa de construir sua vida segundo
a própria razão e a submissão obediente às circunstâncias, ele optou pela
última e rendeu-se ao poder que o arrastava não sabia para onde e (ele sentia)
de modo irresistível. (...) Mas sabia também (e nem tanto sabia como sentia no
fundo da alma) que, rendendo-se agora ao poder das circunstâncias e das pessoas
que as governavam, ele não só não faria nada de ruim, como faria algo muito
importante, mais importante do que qualquer outra coisa que havia feito na
vida” (2011, p. 1966).
Em Guerra e
paz, Tolstói vê o fluxo da história e, consequentemente (ou
contrariamente), as ações humanas como mínimas sequências de ondas (2011, p.
2.319) que acabam formando outras ondas maiores, até se configurar todo o
balanço do mar com suas reviravoltas sem que não se saiba o que fez o quê.
“Quanto mais nos aprofundamos na busca das causas, um maior número delas se
revela para nós” (2011, p. 1274).
É um vaivém
quase infinito de detalhes históricos para provar que a História não dá conta
dos pormenores que fazem acontecer os fatos. Guerra e paz é isso, entre
a impressionante e profunda capacidade de singularizar (CHKLOVSKI, 1973) o
mundo, o cotidiano, os pormenores e a grandiosidade, sua técnica do romance
brilha, porque joga o leitor dentro do texto e o faz caminhar pelas paisagens.
Dentro da
narrativa, para comprovar a falibilidade da História e a vitória da Literatura,
o autor traz esse corpo imenso de relações amorosas, construção de personagens,
aprofundamento emocional das personagens, vida e morte de homens, mulheres,
crianças passando frio e fome, Moscou destruída, e os salões funcionando em
Petersburgo com a nobreza do Estado russo se deleitando em conversas animadas e
polarizadas.
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