quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A polifonia de Kill Bill



Antes minha leitura.

A cena mais emblemática de Kill Bill 1:

Mamba Negra (Umma Thurmann) começa a lutar com Boca de Algodão (Lucy Liu). Esta duvida de que a espada que a heroína usa é do famoso japonês Hattori Hanzo. As duas lutam e trocam sopapos, socos e pontapés, até que Mamba Negra acerta-lhe um golpe magistral, e Boca de Algodão reconhece: “Peço desculpas por ter zombado de você e por ter duvidado de que sua espada era uma legítima Hattori Hanzo.”

Elas continuam lutando até que chega o golpe fatal, em que Mamba Negra arranca-lhe o escalpo. Este cai para um lado enquanto Boca de Algodão cai para o outro, sob um fundo musical tarantinesco.

A cena mais engraçada de Kill Bill II:

(Mamba Negra fala várias línguas muito bem, incluindo chinês e japonês. Ao procurar Hattori Hanzo, pedindo que este lhe faça uma espada especial para matar Bill, ela fala japonês com Hanzo, que a elogia pela pronúncia perfeita.)

Mas quando Mamba Negra procura o famoso mestre de Kung Fu, Pai Mei, rabugento e caricato, para aprender sua lendária técnica de Kung Fu, Cinco Pontos Para Explodir o Coração (eis a cena), ela o saúda em chinês.

Só dá tempo de falar uma única palavra: “Sifu” (mestre). A resposta do velho sábio, que nasceu no ano de 1003 (tem, portanto, mil anos),  foi rápida e ferina: “Seu mandarim é péssimo. Causa desconforto aos meus ouvidos. Você geme como uma mula.” Isso é que é sensibilidade para analisar a habilidade linguística de alguém!

O melhor

Descobri que gosto muito de Kill Bill. Nos filmes anteriores, incluindo Pulp Fiction, Quentin Tarantino foi um enfant terrible do cinema. Seus filmes posteriores, incluindo Django Livre, apenas conferem a Kill Bill a identidade de um mestre, de um gênio.

Dentro da proposta de homenagear o culto à morte e à arte pop, incluindo elementos do Oriente e do Ocidente – como a homenagem a Bruce Lee (Cinco Pontos Para Explodir o Coração, por exemplo, é o Soco de Uma Polegada), às lendas de Shaolin, ao Velho Oeste americano, e ainda a sinossimpatia (tempo de habilidade e perfeição), a linguagem de HQs, as várias luzes, a trilha sonora, as mínimas inserções de falsos ícones (que por outro lado são legítimas homenagens a alguma coisa, a si mesmo, a conhecidos), as inesquecíveis participações de David Carradine (Bill) e Daryl Hannah (Cobra Californiana) –, vai demorar para alguém fazer melhor e superar Tarantino.

Polifonia

Sem contar a polifonia do título - Kill Bill: Matar Bill, mate Bill, lista para matar. Bill é variação de Will. Will, além de corruptela de William, significa vontade, logo, kill bill é vontade de matar. Mas will também é testamento, e testamento é uma inscrição sobre a vontade de alguém (sua deliberação) de deixar sua marca sobre a terra, sua herança. Logo, kill bill pode ser uma espécie de testamento da morte.

Esses significados circulam muito naturalmente (às vezes sem virem à tona) na cabeça de um nativo de língua inglesa alfabetizado. Esta dialogia, ou pelo menos parte dela, certamente estava presente na intenção de Tarantino. Bravo!

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