domingo, 4 de dezembro de 2011

Caminhando, deslumbrado, sobre pedras


Atualmente, nossas estantes estão mais enriquecidas com traduções diretas da fonte de literaturas importantes sempre como a japonesa, a russa, a árabe e a chinesa, além das que se já conhecem tradicionalmente. Uma das razões para isso é a chegada de um novo tempo para o valor que se dá aos tradutores.

Muitos nomes surgiram com força nos últimos 20 anos, como Mamede Jarouche (árabe), Rubens Figueiredo (inglês e russo), Paulo Henriques Britto (inglês), Paulo César Souza (alemão), Paulo Bezerra (russo), Sonia Branco (russo) e tutti quantti. Como lastros deste grupo tão competente, há nomes fundamentais.

No caso da cultura russa, Boris Schnaiderman é um dos que mais contribuíram para a elevação da qualidade nas traduções dos principais romances de lá. Para saber mais sobre essa aventura e arte de traduzir, chega às livrarias Tradução, ato desmedido (Perspectiva, 2011, 216 páginas, R$ 30), que Schnaiderman vinha prometendo publicar há uns dez anos, e que agora chega aos olhos do leitor.

Tradutor de linha de grandeza incomparável, Schnaiderman é responsável por uma gama incrivelmente rica de traduções do russo, das grandes obras de Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov e, em parcerias, dos poetas Maiakovski e Pushkin. Além disso, é fundador do curso de russo da Universidade de São Paulo, ensaísta e dono de uma prosa fácil de ler, que foge aos clichês intelectuais.

Quem lê Tradução, ato desmedido sai ganhando com as dicas literárias, com o debate em torno da dificuldade imposta pelo ato de traduzir e com a sensação de que o autor esteve falando pessoalmente com o leitor.

O livro é composto de textos publicados na imprensa em épocas diferentes, resultado de conferências, reflexões, anotações e impressões de viagens à Rússia. Aborda os inúmeros aspectos de um trabalho de tradução.

As complicações, as impossibilidades, o delicioso labor da palavra convertida, a ponte armada para a transposição dos sentimentos possíveis, as lacunas, as ambiguidades e chistes de uma língua, que parecem não caber em outra jamais. Eis a tarefa do tradutor, alinhavar tudo isso, que vem como prazer doloroso.

Néctar e fel

Segundo Schnaiderman, o ato de traduzir é desmedido porque não se pode prender aos grilhões da gramática, nem da semântica mesma, ou de alguma lógica linguística, simplesmente, sob pena de se perder o filão da arte contida nas palavras da língua de partida. É preciso navegar com coragem, portando uma bússola de sensibilidade. É preciso mergulhar na vida.

Para ele, o exercício da tradução é “elixir e veneno, néctar e fel”, e cita o título de um dos livros de Ortega e Gasset, indispensável a quem queira se aventurar por essas águas tão imprecisas, “esplendor e miséria”, é o que é o ato de traduzir. E arremata: “a tradução é dos atos capitais da vida humana.”

Um xará seu, Boris Pasternak, lembra que traduzir é uma “entrega total”. E isso implica, dialoga Schnaiderman, “numa caminhada sobre pedras, em obsessão contínua, mas ainda em momentos de raro deslumbramento. E não estará neles a verdadeira recompensa do tradutor?”

Em seu livro, Schnaiderman fala de um universo imenso, mas fala sobretudo da literatura russa, cuja língua é a sua de origem. Nasceu em 1917, na cidade de Úman, Ucrânia. Seus pais, no entanto, só falavam em russo, passando ao largo do ucraniano. Como veio para o Brasil aos oito anos de idade, com a família, acabou se naturalizando brasileiro e hoje chama o português de “nossa língua”.

Ler Tradução, ato desmedido é também estar em contato com uma inteligência superior e bem ilustrada. Não deixa de ser uma grande aula de literatura, humanismo e um ensinamento de como se permeia o outro lado, o lado estrangeiro, a face além-fronteira da linguagem.

Apesar de haver uma autobiografia publicada do autor, neste livro podemos acompanhar outros elementos de sua vida que jogam luz sobre sua condição de tradutor e de homem desenraizado que ele é. Ele conta casos pitorescos que se convertem em caminhos de espinho e delícia da tarefa de traduzir. Mas também relata situações dramáticas, emocionantes que lhe são caras.

Um exemplo daquilo que se passa em sua alma é o relato memorialístico, em que ele diz se sentir um estranho no mundo. Embora tenha nascido em Úman, viveu sua infância em Odessa. Mesmo de família judaica, não falou ídiche, tampouco ucraniano, e muito cedo ainda partiu de sua terra natal para um país completamente distante.

Diáspora

Em suas memórias e neste livro agora resenhado, Schnaiderman explica que a razão de sua diáspora não fora política. Seu pai era comerciante se sentiu sufocado no ambiente pós-revolução que se criava na região e decidiu vir tentar a vida no Brasil. Mesmo assim sabemos quão caro seria ficar na terra dos pogroms. E sentimos isso na revelação que o autor faz nesses relatos.


Eu me sinto às vezes como um bicho estranho, um pterodáctilo surgido de repente em nosso mundo.

Tendo passado a primeira infância em Odessa, vivi ali num meio completamente russo, embora a geografia nos ensine que essa cidade e porto importante do Mar Negro fica na Ucrânia. Eu só ouvia falar russo, frequentei escola russa e aprendi a ler em grandes cartilhas onde havia sempre um retrato de Lênin.


Numa passagem mais adiante, ele comenta que essas lembranças parecem estar todas ligadas a seu trabalho de tradutor. São lembranças que formam ou questionam uma identidade, mas também, pela vivência e pelas diversas leituras da palavra e de mundo, calam em seu espírito por ser judeu.

Em 1987, Schnaiderman e a mulher, Jerusa, viajaram para Odessa. Na ocasião, tinha 70 anos de idade, 62 anos, portanto, depois de sair de lá. Nessa viagem, ele fez uma série de reflexões de todo o passado que tangencia sua vida e que, na opinião dele, influencia em sua maneira de traduzir a literatura russa.

O que dizer da visita que fizemos ao prédio onde morei com meus pais e minha irmã, antes de viajar para o Brasil?

Soubemos que ali ficara instalada, durante a ocupação romena de Odessa, a polícia política, o equivalente romeno da Gestapo, e que atuou numa íntima cooperação com esta. E ali mesmo se efetuavam os interrogatórios acompanhados de tortura.

Quem me contou isso foi um judeu velho residente no prédio, um homem triste, grisalho e muito magro, que se afeiçoou fortemente a Jerusa. Ficamos sabendo, também, que a tristeza em seu rosto tinha um motivo bem concreto: ele fizera os maiores sacrifícios para que sua filha pudesse emigrar para o exterior com o marido, e agora ela nem mandava notícias.

“Mas para onde ela foi?” - perguntei-lhe. Resposta: “Ora, ela foi para onde todos vão, para o Brooklin”. Abraçamo-nos por despedida, e como não tivéssemos conosco nenhum objeto melhor, Jerusa deixou-lhe de lembrança uma canetinha sem valor. Quando saímos dali, ele ficou acenando de longe e apertando ao peito aquela canetinha.


Sim, “a tradução vivida”, afirmou Paulo Rónai e eu me convenço cada vez mais da justeza desta afirmação.


Obstinação

Apesar de passagens comoventes como estas, e tantas outras que defrontam o homem com sua condição judaica, e humana, acima de tudo, há também o horizonte aberto da arte de traduzir, amplo demais, perigoso demais, e ao mesmo tempo fascinante ao extremo.

Tudo isso aprendemos com Schnaiderman. Ele reforça que uma língua se aprende quando se entende o funcionamento de seu ritmo. Na tradução, ainda é preciso ir além e compreender o ritmo da cultura, do autor e da linguagem construída naquilo que se vai traduzir. “Qualquer tradução de uma obra, o tradutor tem de lê-la ‘em seus ritmos’ e recriá-los. Caso contrário, não existe tradução digna deste nome.”

Outro nó górdio da tradução é o fato de se pretender à altura do traduzido. “Não tenhamos dúvida: qualquer compromisso de traduzir um grande escritor é ato de soberba”, avalia. E humildemente se retrata: “falando com franqueza, quem sou eu para traduzir um Tolstói, um Dostoiévski.” Mas logo se recompõe para encarar o desafio. “É uma exorbitância que eu tenho de assumir, quem puder que o faça melhor.”

Numa passagem adiante, Schnaiderman explica melhor essa angústia, e alivia os tradutores medianos, argumentando que não é necessário estar à altura do gênio do traduzido (pois muitas vezes é impossível), mas pelo menos à altura de sua obstinação.

“Evidentemente não se pode esperar que Dostoiévski seja traduzido por outro Dostoiévski, mas, desde que o tradutor procure penetrar nas peculiaridades da linguagem primeira, que se aplique com afinco e faça com que sua criatividade orientada pelo original permita, paradoxalmente, afastar-se do texto para ficar mais próximo deste, um passo importante será dado.”



(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 4/12/2011)

2 comentários:

sonia disse...

Parabéns pelo ótimo texto sobre o livro do Boris Schnaiderman. Deseperta o interesse mesmo daqueles que nunca foram nem serão tradutores. Percebe-se que não é necessário ser tradutor para se apreciar a essência do que é dito, o conteúdo humano do livro.

Gilberto G. Pereira disse...

Muito obrigado, Sônia! Abç!