quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Tempos ferozes

Henrique VIII, que casou seis vezes e mandou matar duas das ex-esposas

Recortei o trecho abaixo – do livro Formas Simples – pela concisão com que explica um quadro da história inglesa. Se não era fácil viver entre esses lobos, imagine ser plebeu. Que suplícios e sangue não houve nesses tempos ferozes!

Henrique Tudor esposa Elizabeth de York, casamento que reconcilia as ambições das casas de Lancaster e de York, divididas há muitos anos por assassinatos, sedições e traições, na chamada ‘Guerra das Rosas’. Após a ascensão ao trono da Inglaterra, teve ele duas filhas, Margaret e Mary, e um filho, Henrique, que lhe sucede.

“Esse sucessor, Henrique VIII, casou seis vezes. Dois dos casamentos são anulados, duas das esposas são executadas por sua ordem, uma outra morre ao dar à luz o único filho varão que ele terá, a última esposa sobrevive-lhe. Esse filho, Eduardo VI, tem dez anos à data da morte do pai.

“A regência é sucessivamente assegurada por dois duques, dos quais o segundo casa seu próprio filho com uma neta do segundo filho de Henrique VII. Com o desaparecimento de Eduardo, morto aos dezesseis anos, ele tenta colocar esse casal no trono.

“Mas a tentativa fracassa e os conjurados são mortos. Sobe então ao trono uma filha do primeiro casamento de Henrique VIII, Mary, a cruel. Esta morre sem deixar herdeiros e sucede-lhe Elisabeth, irmã detestada de um segundo leito. Um dos episódios mais conhecidos da vida de Elisabeth é o conflito que a opõe a Mary Stuart, neta de Margaret e tia de Elisabeth.

“Mary Stuart é rainha da Escócia pelo casamento e casou três vezes: com um rei de França, com um primo e com o assassino de seu segundo marido. Elisabeth manda executar Mary Stuart, morre sem filhos e seu sucessor é o filho de Mary Stuart. (Formas Simples, de Andre Jolles)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A descoberta do outro



Em que momento nas relações sociais, no exercício da socialização, o eu descobre o outro? É uma pergunta difícil de se responder porque, muitas vezes, o outro jamais é percebido de fato como sujeito. Se no plano social já é complexo, o que dizer quando a questão envolve a relação entre duas culturas?

Segundo Tzvetan Todorov, o acontecimento na história da humanidade que fundou o problema moderno da alteridade foi a chegada dos espanhóis ao continente americano. Em A Conquista da América: a questão do outro (Martins Fontes, 2010, 4ª ed., 388 páginas, tradução de Beatriz Perrone-Moisés), Todorov dá uma aula magnífica sobre a percepção entre duas culturas e suas respectivas subjetividades (ou a falta delas).

“Quero falar da descoberta que o eu faz do outro”, diz o autor na primeira frase de seu texto. O livro foi publicado originalmente em 1982, e no ano seguinte já estava traduzido no Brasil. Esta proposição central ainda se mantém atual, quase 30 anos depois, e se manterá por muito tempo, enquanto a humanidade se relacionar socialmente, principalmente num convívio cada vez mais global.

No cerne da discussão de Todorov está esta percepção do eu, no esforço da interpretação pela tela das representações ideológicas e da barreira linguística. E sua proposta é atual não por acaso. “O presente me importa mais do que o passado”, diz o filósofo, linguista e historiador búlgaro, que há quase 50 anos mora em Paris. “Não tenho outro meio de responder à pergunta de como comportar em relação a outrem a não ser contando uma história exemplar.”

De acordo com o autor, “é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente.” Ou seja, uma identidade forjada na cultura híbrida. “Apesar de nem sempre sermos bilíngues, somos inevitavelmente bi ou triculturais”, diz Todorov, uma carapuça que se encaixa perfeitamente na face de qualquer sociedade moderna e até nas tradicionais.

No primeiro caso, somos todos nós. No segundo, olhemos para a sociedade japonesa. Basta lembrar seu sistema de escrita e o budismo, ambos emprestados da China. Ou mesmo a Europa inteira, receita de povos em que há os godos, os gregos, os latinos, os mediterrâneos, os árabes, os nórdicos, os bretões, e tantos outros, que se abraçam cada vez mais, embora atualmente nova onda de xenofobia e racismo paire sobre as consciências europeias.

Genocídio

Segundo Todorov, “a descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na ‘descoberta’ dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza.” Esse estranhamento gerou um conflito ímpar, e um sistema de dominação radical que deu ao século XVI o ranking nefasto do maior genocídio da história da humanidade.

“Em 1500”, comenta o autor, “a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 [milhões] habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, restam 10 [milhões]. Ou seja, se nos restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.”

Essa violência desmedida é um marco pela dimensão que ela tomou, mas Todorov lembra que não se trata de uma particularidade dos espanhóis (ou dos povos ibéricos, já que os portugueses também entraram com sua pulsão de morte no processo histórico de conquista da América). “São traços imutáveis da ‘natureza humana’”, diz.

“É possível também afirmar que cada povo, desde as suas origens até os tempos atuais, possui suas vítimas e conhece a loucura assassina”, lembra o autor. Os astecas, povo dominado por Fernão Cortez, por exemplo, cultivavam sua cota de crueldade, e não era pequena, sobre as sociedades dominadas por eles.

Todorov reconstrói a história da conquista para, no escopo das considerações históricas, poder analisar “a percepção que os espanhóis têm dos índios” e responder as questões propostas, que não são poucas. Seu livro é profundo e complexo. “A relação com o outro não se dá numa única dimensão”, avalia.

“A descoberta do outro”, conclui o grande pensador da modernidade, “tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias.”

O autor se concentra nos primeiros cem anos da conquista, e escaneia cada milímetro de significado desse período, nesse local de dominação. Diante dos olhos do leitor desfila uma série de comportamentos e ações, como a percepção que Cristóvão Colombo tinha dos indígenas, a interpretação do navegador sobre as novas sociedades, a relação de Cortez com a cultura asteca e a sistemática exterminação dos povos do novo mundo.

Mundos

Para dar conta de configurar sua proposta, Todorov abre quatro capítulos intitulados “Descobrir”, “Conquistar”, “Amar” e “Conhecer”. O primeiro é dedicado à chegada de Colombo e seu comportamento diante da população local. Colombo não se comunica com os índios, sequer está interessado nisso.

Por isso mesmo, Colombo só descobre as terras, não descobre o homem. Trata o outro como animal e objeto, jamais como sujeito. “Fala dos homens que vê unicamente porque estes, afinal, também fazem parte da paisagem.” Na análise de Todorov, com esse comportamento, o navegador “recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo.”

A observação de Todorov vale para os dias de hoje. Vale para nós mesmos, brasileiros que rejeitamos as sociedades indígenas brasileiras, os excluímos pelo capricho de exigir desses povos valores semelhantes aos nossos. No caso de Colombo, em relação aos povos encontrados no novo continente, sua experiência da alteridade se baseia na “identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na convicção de que o mundo é um.”

E o mundo não é um. Vários pensadores já discorreram sobre a pluralidade dos mundos, das tangências possíveis de subjetividades. Esta premissa joga na cara de nossa sociedade o fingimento moral de pretender ser aberta, mas ignorar ou rejeitar, a base de sopapos e socos, o diferente.

A visão preconceituosa e cega da sociedade contemporânea ainda tem muito de Colombo, com a capacidade de “ver as coisas como lhe convém.” Essa conduta de ir apenas atrás do ouro, de não se importar com nada mais faz que o navegador descubra a “América, mas não os americanos.”

Cortez é analisado no capítulo seguinte, “Conquistar”. É ele quem adentra mais o continente e conquista os astecas. É ele quem aparece no novo mundo com uma visão de dominação ampla e avassaladora. Primeiro, procura conhecer a língua dos astecas, para depois, com um acervo de conhecimento sobre o outro, aniquilá-los.

Nada muito diferente dos impérios modernos. Por isso mesmo, é o marco da modernidade no contato com outro. Segundo Todorov, em termos de número, os solados de Cortez se encontravam em grande desvantagem. Ainda assim, venceram as batalhas cruciais. Por que, em função do quê?

Pela eficiência na comunicação, pelo domínio dos signos produzidos pela palavra escrita. A cultura escrita do Ocidente preparou o espírito para uma comunicação entre indivíduos, uma comunicação com o homem. A sociedade asteca, que na época de Cortez estava sob o comando de Montezuma, mantinha uma comunicação com o mundo.

Era uma sociedade que priorizava a coletividade, sem dar voz à individualidade. Sua comunicação era com os deuses, por meio dos quais se tinha o conhecimento que ordenava a vida coletiva.

Alteridade

“Seria forçar o sentido da palavra ‘comunicação’ dizer, a partir disso, que há duas formas de comunicação, uma entre os homens, e outra entre o homem e o mundo, e contatar que os índios cultivam principalmente esta última, ao passo que os espanhóis cultivam principalmente a primeira?”, pergunta Todorov, retoricamente.

“A comunicação, entre os astecas, é, antes de mais nada, uma comunicação com o mundo, e as representações religiosas têm papel essencial”, afirma o autor. Enquanto os astecas tentavam entender os espanhóis por meio de desígnios divinos, estes entenderam rápido como funcionava a sociedade daqueles.

Entenderam o funcionamento da sociedade, da regra do jogo social e político, mas não o outro, não a subjetividade do outro. Era, no entanto, o suficiente para dominação. Segundo Todorov, uma das razões da conquista é que muitas tribos dominadas por Montezuma, como os tlaxcaltecas, se alinharam aos espanhóis na luta contra os soldados do rei asteca.

Além disso, na análise do confronto com o outro, a dizimação da sociedade asteca também se deu pelo fato de não haver nenhum laço de contiguidade (vizinhança) entre esses dois mundos. O descompromisso com a vida do outro totalmente desconhecido de certa forma contribuiu.

Não foi o caso dos confrontos entre os povos da Europa com os da Ásia e da África, que já se conheciam, ainda que à distância, argumenta Todorov. A conquista da América é, portanto, “a conquista eficaz da comunicação”, diz o autor. A leitura que Todorov faz dessa história é semiótica.

Segundo ele, “qualquer pesquisa sobre a alteridade é necessariamente semiótica; e reciprocamente: a semiótica não pode ser pensada fora da relação com o outro”, assinala. A Conquista da América é um livro exemplar. É uma contribuição valorosa para quem se interessa pelo outro.

A história dessa conquista nos permite a auto-reflexão, como bem conclui o autor. Afinal, “o conhecimento de si passa pelo conhecimento do outro.”

Serviço

Título: A Conquista da América – a questão do outro
Autor: Tzvetan Todorov
Editora: Martins Fontes, 2010, 380 páginas
Gênero: História
Preço: R$ 59,90

(Gilberto G. Pereira, publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 5/10/2010)