quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A arte de imitar folhas (poema)


Eu também fico assustado

Eu também tenho medo do mundo

Às vezes

Tenho medo do espaço infinito

Às vezes

Tenho medo dos astros

Dos pastos

Da gravidade

Do vento

Do ar

Das areias

Das águas

Do tempo

Tenho medo das coisas invisíveis 

E das coisas que só eu vejo e não posso descrevê-las

Porque eu seria louco

Tenho medo da loucura 

Da carne e da solidão

Tenho medo quando a sombra da terra engole a lua e o sol

E quando o céu soturno produz cores no escuro

Cores que não sei distinguir das que matizam meus olhos

Como se viessem de dentro de mim

Como se fossem luzes galácticas que iluminariam o mundo

Tenho medo de ser o sol de alguém

E se eu apagar?

Olhe

Assustar-se por ter medo é normal

Também me assusto

Às vezes

O primeiro susto é quando a gente nasce

A alma dá um pulo dentro da gente e a gente passa a existir

A gente nasce como quem brota

Toda mãe é uma primavera

Todo pai é um tenebroso outono de chuvas ácidas

Imagine

Um broto saindo da terra na selva, entre pés e bichos

Existindo

Imagine

A selva que é viver

Para além do mato

Na fauna humana, inventora de mundos

Na fauna humana, inventora de choques

Na fauna humana, inventora de toques

E lembranças dentro de lembranças

Dentro de sonhos

E restos de sensações que triscam a alma

E ela pula

E sabemos

Lembramos

Da existência

Tememos, e trememos, e bebemos, e dizemos só a verdade

A verdade é a única coisa que existe de verdade

A verdade foi criada por nós que criamos a nós mesmos

Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado

Criamos a nós mesmos

Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado

Cheio de bichos e pés e asas e nadadeiras e raízes sugadoras de seiva

Criamos a nós mesmos

E viscosidade e lama

E chamas e pingos

Criamos a nós mesmos

De líquidos que nos dissolvem e nos evaporam

E desaparecemos

Sem o medo, porque o medo fica

E desaparecemos

Sem o medo

E o susto é o prenúncio de quem vai nascer (como grilos)

E desaparecemos

Sem o medo, com susto

E desaparecemos

Sem o medo, porque o medo fica

A preparação para o medo

Às vezes

Porque há também a força que nos impulsiona para o destemor

Porque há também a força que governa o medo

Às vezes

Enquanto flutuamos como flocos e féculas

Enquanto flutuamos como seres helicoidais

Seres que se entrepenetram e se eternizam

Enquanto flutuamos como seres sempre com medo e assustados

Como se um sopro no ouvido

Como se um sussurro

Um urro baixinho, infrassônico

Como se a existência toda pelos espaços vazios

Entre os astros

Dissessem

Num susto

Eu também sou

Somos

Cromo

E quando me assusto, eu mudo de cor

Mudo, mudo

Mudo de cor

(Gilberto G. Pereira)

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