Vista da Universidade de Cambridge, onde Williams estudou
O
livro O campo e a cidade – na história e
na literatura, de Raymond Williams (1921-1988), é o resultado de um
espírito perscrutador procurando entender suas raízes. Filho de famílias de
origem camponesa, Williams nasceu na zona rural da Inglaterra, em Llanfihangel
Crucorney, e muito mais tarde foi estudar em Cambridge, na conceituada
instituição que leva o mesmo nome da cidade. “Numa Grã-Bretanha
predominantemente urbana e industrializada, quis o acaso que eu nascesse numa
aldeia remota”, diz o autor para mais adiante vaticinar:
“Vim
de uma aldeia para uma cidade: para ser ensinado, aprender; entregar fatos
pessoais, incidentes de uma família, a um registro geral; aprender dados, conexões,
perspectivas diferentes. Se os muros das faculdades eram como os dos parques
que contornávamos quando crianças, sem poder entrar, agora havia um portão, uma
entrada, e, no final, uma biblioteca: um registro direto, que cabia a mim
aprender a usar.”
Williams
aprendeu a usar bem os registros. Tornou-se um pensador de referência
internacional. Em O campo e a cidade,
ele analisa as relações entre os polos urbano e rural por meio do que ele mesmo
chama de “abordagem de história social, literária e intelectual.”
A
Grã-Bretanha urbanizada, cenário da vida adulta do autor, com suas cidades
dinâmicas e progressistas, aliada a toda a Europa que lhe ofereceu Roma, Veneza
e Paris, “os grandes prédios da civilização; os pontos de encontro; as
bibliotecas e teatros, as torres e cúpulas; e – muitas vezes ainda mais
emocionante – as casas, as ruas, a tensão e o entusiasmo de estar no meio de
tanta gente, com tantas metas diferentes”, levou-o a querer entender a figura
do campo tal como era visto na literatura pelos moradores da cidade, numa linha
evolutiva, saindo da Inglaterra rural, pré-industrial, até a consolidação
urbana.
Pré-revolução burguesa
Para
buscar este entendimento, Williams vasculhou a história dos séculos XVI e XVII,
período da pré-revolução burguesa, e o século XVIII, no qual se deflagrou a
Revolução Industrial e configurou a vitória dos novos donos do mundo ocidental,
os burgueses e suas cidades. Nesse longo período, Williams analisou autores
seminais da época e escavou os “contrastes retóricos entre vida urbana e
campestre.”
Levantou
uma série de imagens sobre o campo e a cidade, mostrando como o campo passou de
uma imagem bucólica para uma mais realista ao longo da história literária do
período estudado. Segundo o autor, “a vida campestre tem muitos significados:
em termos de sentimentos e de atividades; no espaço e no tempo”, e são estes
significados, na conjunção com os da vida urbana, no espaço e no tempo, que nos
interessa.
Neste
sentido, interessam-nos dois conceitos da análise de Williams, entre os tantos
utilizados em seu livro. Além da “estrutura de sentimento”, por meio da qual
ele analisa a maneira como o campo é visto pelos diversos autores do período,
há também o conceito de “comunidades cognoscíveis”, que, segundo Williams,
mostra a manifestação de grupos sociais que trazem uma visão de mundo comum,
que é organizada pelos romancistas.
Os conceitos
Com
o primeiro conceito, ele ressalta os contrastes das imagens entre campo e
cidade levantados ao longo do tempo, separando a forma idealizada da forma
histórica. Segundo Williams, a idealização deriva em reações enganadoras porque
a idealização nunca mostra a realidade tal como fora, se apoia em miragens que
sempre se afastam mais e mais, quando se tenta aproximar delas, e assim o
examinador fica num “perpétuo recuo em direção ao passado”, sem nunca alcançar
a imagem idealizada. A ideia de um campo bucólico na Inglaterra pré-Revolução
Industrial, quando as pessoas ainda não haviam se mudado para as cidades, é um
exemplo disso.
Dizer
que o campo inglês já foi bucólico, que a “agricultura era de subsistência
natural, ainda não afetada pelos impulsos da economia de mercado” é uma
estrutura de sentimento baseada nas leituras de poemas gregos e romanos, que
por sua vez se baseiam na mitologia e que não dizem nada sobre a realidade do
passado inglês. Essa estrutura fazia os ingleses acreditarem num campo
explorado pela cidade, em que o primeiro trazia sua pureza idílica e em que a
segunda o conspurcava.
A
migração para as cidades era vista como uma atitude ingênua do homem rural,
iludido pela ideia de boa vida na cidade, quando, na verdade, ele vinha sendo
expulso do campo na época dos cercamentos, período que antecede à eclosão da
Revolução Industrial, e também antes disso. Segundo Williams, em certo sentido,
essa questão dos cercamentos
“Pode
ter o efeito de desviar nossa atenção da verdadeira história e tornar-se um
elemento de uma visão mítica muito sedutora da Inglaterra moderna, segundo a
qual a transição da sociedade rural para a industrial é encarada como uma
espécie de decadência, a verdadeira causa e origem dos nossos problemas e
convulsões sociais.”
Mas
não é bem assim, contesta Williams. Essa ideia é uma das principais fontes da
estrutura de sentimento analisada em seu livro. Antes mesmo desse período de
cercamentos, diz ele, “já existia uma numerosa população sem terra: em 1690,
havia cinco trabalhadores sem terra para cada três com terra; em 1831, a
proporção era de cinco para dois.”
À
medida que o século XVIII vai adentrando no tempo, a “estrutura de sentimento”
vai se modificando. “Os poemas sobre arrendatários felizes, o eu idealizado e
independente da tradição bucólica reflexiva, são sucedidos por poemas sobre
perda, mudança, pesar.” As novas estruturas de sentimentos agora rejeitam o
bucólico: “Como ousar esconder uma tal realidade/ Em versos fáceis de orgulho e
falsidade”, diz o poeta G. Crabbe, citado por Williams.
Desse
modo, o contraste retórico vai sendo feito, numa sucessão de imagens que
mostram a transformação do campo na sua relação com a cidade. O campo é, a
princípio, idealizado, feliz, que depois passa a denunciar o luxo e a riqueza
da cidade, ao mesmo tempo admirando sua instrução e sua polidez da cidade.
A
cidade entra em cena como detentora de uma “vida fervilhante, de lisonja, de
sedução organizada, de barulho e tráfego, com ruas perigosas por causa dos
ladrões, com casas frágeis e amontoadas, sempre ameaçadas de incêndio, é a
cidade como algo autônomo, seguindo seu próprio caminho.”
Nova percepção
As
transformações na cidade, a partir da segunda metade do século XVIII, forçaram
os leitores da urbe a uma nova estrutura de sentimento também:
“O
homens que estavam habituados a ver o seu meio ambiente imediato por intermédio
de formas intelectuais e literárias previamente dadas tiveram de perceber, no
século XVIII, uma outra modificação radical na paisagem: o rápido processo de
expansão e transformação da cidade.”
Segundo
Williams, “o elogio da produção, que antes abarcava o campo, agora chega até a
cidade.” A cidade agora tem uma percepção burguesa diferente de si mesma e do
outro. A percepção de si mesma é o trabalho e acúmulo de capital na realização
industrial e comercial, em que se nutria o medo da avareza.
Mas
a isso se junta o medo do outro, mais especificamente, o medo da turba, da
multidão, do pobre. Nesse momento da análise, o autor cita uma nova categoria
de escritores, além dos poetas, estes que haviam retratado a Inglaterra dos
séculos XVI e XVII. Põe em evidência os romancistas. São eles que se ocupam de
mostrar a nova Londres, a grande metrópole da Europa, onde tudo acontecia.
O
medo da turba, da coorte, é retratado por romancistas como H. Fielding, Daniel
Defoe, W. Hogarth, T. Gay, por meio de termos como “‘ralé insolente’,
‘insolência da turba’, ‘indolência, dissipação e devassidão’ dos
trabalhadores”, que surgiam como “chavões dos observadores da classe média”. Os
contrastes entre riqueza e pobreza, diz Williams, “não eram qualitativamente
diferentes dos existentes na ordem rural, mas eram mais intensos.”
A
maneira de descrever essa aglomeração, fruto de uma nova realidade, a da
Revolução Industrial e do processo de urbanização, em consequência dessa mesma
revolução, mostra bem a estrutura de sentimento de quem registrava a cidade.
A
palavra “turba” retratava a maneira como os burgueses viam o povo e as reações
deste mesmo povo, mas, segundo Williams, o termo também designava o conflito
social entre pobres e ricos:
“Os
pobres e vagabundos, vítimas de uma economia em transformação, ou as pessoas
ambiciosas ou em dificuldades financeiras que procuravam em Londres uma
alternativa para sua ausência de perspectivas, eram os alvos expressos das leis
excludentes. No entanto, as transformações gerais do período eram de tal ordem
que a exclusão tornava-se impossível. Além dos séquitos de criados, milhares de
outros migrantes chegavam à cidade, e o principal resultado das restrições foi
uma onda prolongada de construção e adaptação de imóveis dentro dos limites
legais, gerando habitações superlotadas e perigosas: labirintos e becos para a
população pobre. E isso era parte do mesmo processo que dava origem às mansões
urbanas, às praças e aos jardins elegantes.”
O
ambiente urbano descrito acima é uma imagem fundida de uma Inglaterra
urbanizada, e uma Londres figurando como uma das maiores cidades do mundo na
passagem do século XVII para o XVIII. Os romancistas do século XIX também
adotaram esse cenário como pano de fundo para suas tramas.
O
jorro de mundos superpostos na metrópole, criando uma malha complexa de
interconexões, um “sistema alheio e indiferente” e um somatório incognoscível
de “tantas vidas diversas, acotovelando-se, entrechocando-se, perturbando,
ajustando-se, reconhecendo, estabelecendo-se, mudando-se novamente para novos
espaços”, tornou-se uma rica matéria-prima para o romance.
Comunidades cognoscíveis
Charles
Dickens, Jane Austen, George Eliot, Thomas Hardy e D. H. Lawrence são citados
por Williams como recriadores desse mundo plural, que trouxe para a cidade a
confluência de vidas, entre elas a vinda do campo, mas indo além disso, porque
deram à luz uma nova perspectiva, com a qual a literatura teve de lidar,
buscando novas ferramentas para retratá-la de modo satisfatório. A essa nova
ferramenta, Williams deu o nome de “comunidades cognoscíveis”, matéria da qual
os romances são constituídos.
Na
avaliação de Williams, o gênio de Dickens “só pode ser apreendido em sua
totalidade na medida em que percebemos que para ele, na experiência urbana,
muito do que era importante, e mesmo crucial, não podia ser conhecido nem
comunicado de maneira simples, mas como já afirmei, tinha de ser revelado,
imposto à força à consciência.”
A
partir dessa nova estrutura de saber sobre campo e cidade, tendo como instrumental
a história, sem idealismo, os romancistas passaram a criar “comunidades
cognoscíveis”, ou seja, narrativas com ambientações que retratavam a realidade
rural e a urbana; passaram, assim, a mostrar que tanto na aldeia como na cidade
havia divisão de trabalho.
Se
Dickens apresentava a complexidade da urbe, autores como Jane Austen e George
Eliot mostravam a do campo. Para trazer essa realidade à consciência, era
necessário a absoluta clareza da manipulação da linguagem adequada. O problema
da “comunidade cognoscível”, portanto, segundo Williams, é “um problema de
linguagem”, que traz à tona uma vida em comum, seja no campo, seja na cidade.
Os
dois conceitos analisados aqui se completam na análise de Williams, uma vez que
a estruturação de uma “comunidade cognoscível” – ou seja, uma realidade
complexa de vida social, econômica e política recortada de um sistema complexo,
que em seu todo é incognoscível, para se tornar cognoscível – traz sempre
dentro dela uma “estrutura de sentimento”.
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