“Amar ajuda a discernir”, diz Marcel, narrador de Em Busca do
Tempo Perdido, de Marcel Proust. É bonito ouvir ou ler isso, é
até edificante, mas entender como funciona o amor não é suficiente
para o discernimento total das paixões e a compreensão do outro.
Neste caso, dá para recorrer ao senso comum: os brutos também amam.
Também amam os mal educados, os baderneiros, os idiotas, os
inescrupulosos, os imorais (porque o amor não é paradigma da moral,
está mais para seu paradoxo), os assassinos (menos os psicopatas,
por serem amorais). Os ladrões, os corruptos, os estupradores, os
libertinos amam, e todos fazem suas escolhas a partir de um dado
discernimento, e depois discernem uma miríade de cores a partir do
amor que sentem.
O amor ajuda a diferenciar, sim, mas o mais importante no coração
dessa frase proustiana é a possibilidade de se exercer a consciência
dialética. Se amar ajuda a discernir, odiar ajuda a quê? Odiar
ajuda a confundir, a misturar. O ódio constrói monumentos de rancor
e raiva em blocos imensos, sem ao menos suspeitar de que é nas
mínimas moléculas que se começa a decodificar o segredo da
existência, da mobilidade afetiva.
O ódio engessa, paralisa o olhar e canaliza a ação medonhamente e
cegamente para um alvo muito mais amplo do que seu objeto, de modo
equivocado, em função de não saber distinguir. Na usina de
desafeto, o ódio é a força motriz. Toda sociedade tem sua usina
nuclear do ódio, sua Itaipu da vontade de exterminar o outro, usinas
que se instalam nos espaços vazios da civilidade, no silêncio das
ações efetivas do afeto. Mas é preciso sempre buscar a consciência
de que essas usinas jamais devem ser acionadas.
Odiar ajuda a misturar coisas simples junto a coisas complexas e
criam-se assim equívocos e espantos de proporções políticas e
sociais gigantescas. Odiar ajuda a misturar, por exemplo, a figura do
ladrão e do bandido com a do negro, em nosso caso, ajuda a misturar
a figura do atraso e da preguiça com a do pobre. O ódio não é um
sentimento democrático porque é cego e surdo.
O interessante é que o ódio é um objeto de pouco interesse dos
estudiosos. Ele sempre aparece como personagem secundário.
Desconheço livros com o título “História do Ódio no Ocidente”,
e olha que em matéria de ódio, temos muito a dizer. As sociedades
totalitárias, como a nazista e a fascista, para nos situarmos em um
lugar muito próximo, são exemplos de exímias gestoras de ódio,
lugares em que a usina do desafeto funcionou por alguns anos em pleno
vapor, não conseguindo produzir outra coisa que não o mal.
É bom lembrar que Hitler e Mussolini não conquistaram o poder e
depois foram cooptando cidadãos até criar uma sociedade perversa.
Foi justo o contrário. A sociedade os colocou lá, porque pressentia a
abertura para um novo poder, nefasto e absurdamente mau.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, em
18/03/2015)