quarta-feira, 18 de março de 2015

Amar ajuda a discernir. E odiar?

“Amar ajuda a discernir”, diz Marcel, narrador de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. É bonito ouvir ou ler isso, é até edificante, mas entender como funciona o amor não é suficiente para o discernimento total das paixões e a compreensão do outro. Neste caso, dá para recorrer ao senso comum: os brutos também amam.

Também amam os mal educados, os baderneiros, os idiotas, os inescrupulosos, os imorais (porque o amor não é paradigma da moral, está mais para seu paradoxo), os assassinos (menos os psicopatas, por serem amorais). Os ladrões, os corruptos, os estupradores, os libertinos amam, e todos fazem suas escolhas a partir de um dado discernimento, e depois discernem uma miríade de cores a partir do amor que sentem.

O amor ajuda a diferenciar, sim, mas o mais importante no coração dessa frase proustiana é a possibilidade de se exercer a consciência dialética. Se amar ajuda a discernir, odiar ajuda a quê? Odiar ajuda a confundir, a misturar. O ódio constrói monumentos de rancor e raiva em blocos imensos, sem ao menos suspeitar de que é nas mínimas moléculas que se começa a decodificar o segredo da existência, da mobilidade afetiva.

O ódio engessa, paralisa o olhar e canaliza a ação medonhamente e cegamente para um alvo muito mais amplo do que seu objeto, de modo equivocado, em função de não saber distinguir. Na usina de desafeto, o ódio é a força motriz. Toda sociedade tem sua usina nuclear do ódio, sua Itaipu da vontade de exterminar o outro, usinas que se instalam nos espaços vazios da civilidade, no silêncio das ações efetivas do afeto. Mas é preciso sempre buscar a consciência de que essas usinas jamais devem ser acionadas.

Odiar ajuda a misturar coisas simples junto a coisas complexas e criam-se assim equívocos e espantos de proporções políticas e sociais gigantescas. Odiar ajuda a misturar, por exemplo, a figura do ladrão e do bandido com a do negro, em nosso caso, ajuda a misturar a figura do atraso e da preguiça com a do pobre. O ódio não é um sentimento democrático porque é cego e surdo.

O interessante é que o ódio é um objeto de pouco interesse dos estudiosos. Ele sempre aparece como personagem secundário. Desconheço livros com o título “História do Ódio no Ocidente”, e olha que em matéria de ódio, temos muito a dizer. As sociedades totalitárias, como a nazista e a fascista, para nos situarmos em um lugar muito próximo, são exemplos de exímias gestoras de ódio, lugares em que a usina do desafeto funcionou por alguns anos em pleno vapor, não conseguindo produzir outra coisa que não o mal.

É bom lembrar que Hitler e Mussolini não conquistaram o poder e depois foram cooptando cidadãos até criar uma sociedade perversa. Foi justo o contrário. A sociedade os colocou lá, porque pressentia a abertura para um novo poder, nefasto e absurdamente mau.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, em 18/03/2015)

terça-feira, 3 de março de 2015

Rabiscando Proust

Roland Barthes, o insuspeito, escreve o seguinte em seu pequeno e instrutivo livro O Prazer do Texto: "É o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos: ter-se-á alguma vez lido Proust, Balzac, Guerra e paz, palavra por palavra?" Em outras palavras, ele pergunta: que tipo de idiota leria esses caras sem pular páginas? Foi assim, um idiota, que me senti, mas de modo muito bem resolvido. Achei graça. E depois, Barthes ainda completa com uma doce ironia e compensação: "(Felicidade de Proust: de uma leitura a outra, não saltamos nunca as mesmas passagens.)"

Em seguida fecha a lição com uma grande aula em um curto parágrafo: " O que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o texto da fruição imprime à simples temporalidade de sua leitura."

Barthes tem razão. Preocupar-se com a leitura de um texto se baseando na capacidade de ler palavra por palavra é perda de tempo, embora seja uma perda mais valorosa que outras perdas. Li cada página - meus olhos correram por cada palavra - dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Proust, entre 2003 e 2004. E a prova de que Barthes tinha razão é que estou relendo Proust de novo, estou no terceiro volume já, O caminho de Guermantes, e há muita coisa que estou descobrindo como novidade, como se não tivesse lido antes. Aqui já é uma história que todos sabem. Todo mundo que relê sabe que encontra novidade nos grandes relatos, na alta literatura. A diferença de minha leitura é que - na primeira vez, fiz anotações no computador, que foi roubado - agora estou fazendo rabiscando, sublinhando o próprio Proust.

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