domingo, 15 de fevereiro de 2015

Kabengele Munanga: prefácio do livro Racismo e Sociedade, de Carlos Moore

OBS: O texto abaixo é de Kabengele Munanga, extraído do livro de Carlos Moore, Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Boa leitura!

“O carrasco mata sempre duas vezes, a segunda pelo silêncio”. Esta frase da autoria de Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz, poderia bem ilustrar e caracterizar as mentiras, inverdades, coisas não ditas e silenciadas em torno da raça e do racismo na sociedade brasileira.

Alguns estudiosos conceituados se aproveitam da falta de informação e do pouco esclarecimento da população e do lugar privilegiado que ocupam na academia e na imprensa para produzir discursos perversos a respeito do racismo. Esses discursos reciclam e exploram ideias e teorias superadas como as da “mistura de sangue” de Gilberto Freyre, que estão na base da criação da ideologia da democracia racial brasileira, e as descobertas da genética humana do meio do século passado sobre a inexistência biológica ou científica da raça. O objetivo é persuadir a sociedade brasileira de que a política de ação afirmativa em benefício dos negros e indígenas vai trazer de volta a raça, como se esta já tivesse desaparecido, e vai colocar fim ao equilíbrio e à paz social garantidos pela mistura racial. Consequentemente, dizem, teremos o fenômeno de racialização do Brasil que nunca existiu e a eclosão de conflitos raciais.

Alguns vão até negar a existência de racistas na sociedade brasileira, rejeitando os resultados da pesquisa científica realizada desde os anos 1950 e 1960 por pesquisadores renomados como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira, João Baptista Borges Pereira, Thales de Azevedo, etc., que, seguindo os passos da Frente Negra Brasileira, ratificaram a existência de práticas racistas na origem das desigualdades entre Brancos e Negros.

Alguns estudiosos insistem em dizer que a ação afirmativa vai racializar o Brasil, dividindo-o entre negros e brancos; vai reduzir nossas diversidades numa sociedade bipolar, ou seja, vai fazer desaparecer índios, ciganos, judeus, árabes, mestiços, etc., em nome de brancos e não brancos. Que criatividade fantástica de nossos acadêmicos e esclarecidos jornalistas! Como uma sociedade capitalista não pode ser dividida em pobres, médios e ricos? Como uma sociedade racista que discrimina com base no fenótipo (concentração de melanina e traços morfológicos) não pode ser dividida em brancos e não brancos, em brancos e negros?

Imputar à ação afirmativa as divisões inerentes à história e à estrutura da sociedade é negar a própria história e a estrutura da sociedade e substituí-las pela mágica da imaginação criativa de nossos cientistas e jornalistas. É interessante como eles conseguem, pelo jogo das palavras e dos exemplos propositadamente escolhidos, agradar a inteligência e inverter a lógica, transformando a busca dos caminhos e das soluções em fatores causadores dos problemas.

As políticas de ação afirmativa e das cotas surgem com uma intenção deliberada para corrigir as desigualdades resultantes da racialização já existente na origem do racismo. Elas não vêm para dividir, pelo contrário, vêm para aproximar e unir pela redução das desigualdades. Elas não criam a raça, não a reforçam e nem a fazem reviver, pois a raça já está bem antes na mente, na cultura, no tecido social da sociedade como produto de uma longa história da humanidade apesar das diferentes reformulações, teorizações e usos ideológicos recentes.

A obra Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo, de Carlos Moore, ao contrário de algumas obras manipuladoras da opinião do cidadão brasileiro que circulam recentemente, nasce com a intenção de revelar e ensinar coisas nunca ditas entre “nós” sobre as origens mais profundas do racismo na história da Humanidade, visando a esclarecer nossas opiniões e consciências deturpadas por uma literatura e um discurso produzidos a partir da torre de marfim da academia e da imprensa, vista como símbolo da competência e da verdade. Vem se contrapor aos discursos daqueles que desqualificam a demanda do movimento social negro e que, como bons paternalistas, querem ditar, como faziam os colonialistas, o que é bom e ruim para “seus negros”, objetos de pesquisa e não sujeitos.

Como sugere o próprio título da obra, a partir de fartas fontes bibliográficas atualizadas lidas, relidas e criticamente reinterpretadas à luz de diversas teses e teorias, Carlos Moore recoloca a problemática da gênese histórica do racismo e questiona a relação que se tenta estabelecer hoje entre o racismo e a Modernidade ocidental por causa da noção de raça, que teria dado a sustentação científica às raízes do racismo. Ele defende a tese de que o racismo não se estrutura em torno do conceito biológico de raça, nem a partir da escravização dos africanos, mas sim a partir de um dado universal inegável, o fenótipo; e têm uma profundidade histórica maior que os 500 anos e mais da hegemonia ocidental sobre o resto do mundo.

Embora aceite a tese de Benjamim Isaac que situa as raízes do racismo moderno na Antiguidade grego-romana (The invention of Racism in Classical Antiquity), Carlos Moore recua ainda às origens do racismo a partir da tese de Gervásio Fournier-González e Cheikh Anta Diop, emitindo a hipótese de que “teria ocorrido em épocas longínquas, graves conflitos entre povos melanodérmicos (negros) e leucodérmicos (brancos) nas regiões onde eles conviveram”. Postula ele que teriam sido esses conflitos, hoje apagados da memória ativa da Humanidade e que brotaram sempre em torno de acirradas e sangrentas disputas pela posse dos recursos básicos de sustentação, os incubadores de vários “proto-racismos” surgidos independentemente em diversas partes do mundo antigo (Mesopotâmia, Irã elamita, Índia dravidiana, Oriente Médio semita, Mediterrâneo greco-romano...).

Em apoio a essa tese, ele recorre aos mitos mais antigos das sociedades não africanas onde a repulsa e o medo que causa a cor negra são inequívocos, tais como “luto, tenebroso, maléfico, perigoso, diabólico, pecado, sujo, bestial, primitivo, inculto, canibal, má sorte, etc.”. Assim, segundo Moore, surgiram, na maior parte do mundo e de modos totalmente autônomos entre si, estruturas sociais que ele descreve – usando neologismos altamente descritivos – como sendo “fenotipocêntricas”. Todavia, essas somente teriam existido como realidades responsivas a um imaginário social preexistente, eminentemente “fenotipofóbico” de origem mitológica.

Tanto o racismo anglo-saxônico, surgido a partir da Modernidade ocidental e tendo como fundamento a pureza racial, quanto o racismo dos países da dita América Latina, baseado no fenótipo ou aparência física, são simplesmente variantes históricas e reformulações de um mesmo racismo cuja consciência histórica é mais antiga do que nos é apresentada, pois prolonga suas raízes nas estruturas pré-capitalistas e pré-industriais.

Em apoio a sua tese principal de que “o racismo teria se construído historicamente, e não ideologicamente”, ou seja, o racismo seria uma dinâmica determinada pela história e não pela ideologia, tese que poderia provocar certas polêmicas, Carlos Moore analisa e discute várias teses às vezes diametralmente opostas, às vezes complementares. Ele chega à conclusão de que a escravidão dos africanos tanto pelos árabes quanto pelos europeus é racial; de maneira que o racismo está presente na eclosão da própria Modernidade capitalista.

A discussão sobre a escravatura na África tradicional e a sistematização das noções de racismo, temas apresentados de modo distorcido na historiografia colonial e neocolonial, e segundo interpretações infelizmente ainda persistentes entre nós, ganham neste livro novos contornos enriquecidos por uma bibliografia pouco conhecida entre os brasileiros.

Publicado num momento crucial da questão da situação do negro no Brasil, quando pela primeira vez se discute no âmbito do governo e da sociedade as políticas de superação das desigualdades entre brancos e não brancos, brancos e negros, engendradas pelo racismo à brasileira, creio que este livro traz uma contribuição impar na elucidação das controvérsias e confusões deliberadamente difundidas na sociedade brasileira por certa tendência intelectual e jornalística ideologicamente posicionada contra as mudanças da agenda do movimento social negro.

Kabengele Munanga
Professor do Departamento de Antropologia / FFLCH-USP


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