OBS: O texto
abaixo é de Kabengele Munanga, extraído do livro de Carlos Moore, Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas
para entender o racismo. Boa leitura!
“O
carrasco mata sempre duas vezes, a segunda pelo silêncio”. Esta frase da
autoria de Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz, poderia bem ilustrar e
caracterizar as mentiras, inverdades, coisas não ditas e silenciadas em torno
da raça e do racismo na sociedade brasileira.
Alguns
estudiosos conceituados se aproveitam da falta de informação e do pouco
esclarecimento da população e do lugar privilegiado que ocupam na academia e na
imprensa para produzir discursos perversos a respeito do racismo. Esses discursos
reciclam e exploram ideias e teorias superadas como as da “mistura de sangue”
de Gilberto Freyre, que estão na base da criação da ideologia da democracia
racial brasileira, e as descobertas da genética humana do meio do século
passado sobre a inexistência biológica ou científica da raça. O objetivo é
persuadir a sociedade brasileira de que a política de ação afirmativa em benefício
dos negros e indígenas vai trazer de volta a raça, como se esta já tivesse
desaparecido, e vai colocar fim ao equilíbrio e à paz social garantidos pela
mistura racial. Consequentemente, dizem, teremos o fenômeno de racialização do
Brasil que nunca existiu e a eclosão de conflitos raciais.
Alguns
vão até negar a existência de racistas na sociedade brasileira, rejeitando os
resultados da pesquisa científica realizada desde os anos 1950 e 1960 por
pesquisadores renomados como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando
Henrique Cardoso, Oracy Nogueira, João Baptista Borges Pereira, Thales de
Azevedo, etc., que, seguindo os passos da Frente Negra Brasileira, ratificaram
a existência de práticas racistas na origem das desigualdades entre Brancos e
Negros.
Alguns
estudiosos insistem em dizer que a ação afirmativa vai racializar o Brasil,
dividindo-o entre negros e brancos; vai reduzir nossas diversidades numa
sociedade bipolar, ou seja, vai fazer desaparecer índios, ciganos, judeus, árabes,
mestiços, etc., em nome de brancos e não brancos. Que criatividade fantástica
de nossos acadêmicos e esclarecidos jornalistas! Como uma sociedade capitalista
não pode ser dividida em pobres, médios e ricos? Como uma sociedade racista que
discrimina com base no fenótipo (concentração de melanina e traços morfológicos)
não pode ser dividida em brancos e não brancos, em brancos e negros?
Imputar
à ação afirmativa as divisões inerentes à história e à estrutura da
sociedade é negar a própria história e a estrutura da sociedade e
substituí-las pela mágica da imaginação criativa de nossos cientistas e
jornalistas. É interessante como eles conseguem, pelo jogo das palavras e dos
exemplos propositadamente escolhidos, agradar a inteligência e inverter a lógica,
transformando a busca dos caminhos e das soluções em fatores causadores dos
problemas.
As
políticas de ação afirmativa e das cotas surgem com uma intenção deliberada
para corrigir as desigualdades resultantes da racialização já existente na
origem do racismo. Elas não vêm para dividir, pelo contrário, vêm para
aproximar e unir pela redução das desigualdades. Elas não criam a raça, não a
reforçam e nem a fazem reviver, pois a raça já está bem antes na mente, na
cultura, no tecido social da sociedade como produto de uma longa história da
humanidade apesar das diferentes reformulações, teorizações e usos ideológicos
recentes.
A
obra Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo,
de Carlos Moore, ao contrário de algumas obras manipuladoras da opinião do
cidadão brasileiro que circulam recentemente, nasce com a intenção de revelar e
ensinar coisas nunca ditas entre “nós” sobre as origens mais profundas do
racismo na história da Humanidade, visando a esclarecer nossas opiniões e
consciências deturpadas por uma literatura e um discurso produzidos a partir da
torre de marfim da academia e da imprensa, vista como símbolo da competência e
da verdade. Vem se contrapor aos discursos daqueles que desqualificam a demanda
do movimento social negro e que, como bons paternalistas, querem ditar, como
faziam os colonialistas, o que é bom e ruim para “seus negros”, objetos de
pesquisa e não sujeitos.
Como
sugere o próprio título da obra, a partir de fartas fontes bibliográficas
atualizadas lidas, relidas e criticamente reinterpretadas à luz de diversas
teses e teorias, Carlos Moore recoloca a problemática da gênese histórica do
racismo e questiona a relação que se tenta estabelecer hoje entre o racismo e a
Modernidade ocidental por causa da noção de raça, que teria dado a sustentação
científica às raízes do racismo. Ele defende a tese de que o racismo não se
estrutura em torno do conceito biológico de raça, nem a partir da escravização
dos africanos, mas sim a partir de um dado universal inegável, o fenótipo; e têm
uma profundidade histórica maior que os 500 anos e mais da hegemonia ocidental
sobre o resto do mundo.
Embora
aceite a tese de Benjamim Isaac que situa as raízes do racismo moderno na
Antiguidade grego-romana (The invention
of Racism in Classical Antiquity), Carlos Moore recua ainda às origens do
racismo a partir da tese de Gervásio Fournier-González e Cheikh Anta Diop,
emitindo a hipótese de que “teria ocorrido em épocas longínquas, graves
conflitos entre povos melanodérmicos (negros) e leucodérmicos (brancos) nas
regiões onde eles conviveram”. Postula ele que teriam sido esses conflitos,
hoje apagados da memória ativa da Humanidade e que brotaram sempre em torno de
acirradas e sangrentas disputas pela posse dos recursos básicos de sustentação,
os incubadores de vários “proto-racismos” surgidos independentemente em
diversas partes do mundo antigo (Mesopotâmia, Irã elamita, Índia dravidiana, Oriente
Médio semita, Mediterrâneo greco-romano...).
Em
apoio a essa tese, ele recorre aos mitos mais antigos das sociedades não
africanas onde a repulsa e o medo que causa a cor negra são inequívocos, tais
como “luto, tenebroso, maléfico, perigoso, diabólico, pecado, sujo, bestial,
primitivo, inculto, canibal, má sorte, etc.”. Assim, segundo Moore, surgiram,
na maior parte do mundo e de modos totalmente autônomos entre si, estruturas
sociais que ele descreve – usando neologismos altamente descritivos – como
sendo “fenotipocêntricas”. Todavia, essas somente teriam existido como realidades
responsivas a um imaginário social preexistente, eminentemente “fenotipofóbico”
de origem mitológica.
Tanto
o racismo anglo-saxônico, surgido a partir da Modernidade ocidental e tendo
como fundamento a pureza racial, quanto o racismo dos países da dita América
Latina, baseado no fenótipo ou aparência física, são simplesmente variantes
históricas e reformulações de um mesmo racismo cuja consciência histórica é
mais antiga do que nos é apresentada, pois prolonga suas raízes nas estruturas
pré-capitalistas e pré-industriais.
Em
apoio a sua tese principal de que “o racismo teria se construído
historicamente, e não ideologicamente”, ou seja, o racismo seria uma dinâmica
determinada pela história e não pela ideologia, tese que poderia provocar
certas polêmicas, Carlos Moore analisa e discute várias teses às vezes diametralmente
opostas, às vezes complementares. Ele chega à conclusão de que a escravidão
dos africanos tanto pelos árabes quanto pelos europeus é racial; de maneira
que o racismo está presente na eclosão da própria Modernidade capitalista.
A
discussão sobre a escravatura na África tradicional e a sistematização das noções
de racismo, temas apresentados de modo distorcido na historiografia colonial e
neocolonial, e segundo interpretações infelizmente ainda persistentes entre nós,
ganham neste livro novos contornos enriquecidos por uma bibliografia pouco
conhecida entre os brasileiros.
Publicado
num momento crucial da questão da situação do negro no Brasil, quando pela primeira
vez se discute no âmbito do governo e da sociedade as políticas de superação
das desigualdades entre brancos e não brancos, brancos e negros, engendradas
pelo racismo à brasileira, creio que este livro traz uma contribuição impar na
elucidação das controvérsias e confusões deliberadamente difundidas na
sociedade brasileira por certa tendência intelectual e jornalística ideologicamente
posicionada contra as mudanças da agenda do movimento social negro.
Kabengele
Munanga
Professor
do Departamento de Antropologia / FFLCH-USP
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