terça-feira, 7 de outubro de 2014

Travessia e travessura: leitura de Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca

“O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo.”
Narrador de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera

“Lemos romances de aventura, novelas de cavalaria, romances baratos (histórias de detetive, de amor, de espionagem e por aí afora)  para ver o que acontece na sequência; mas lemos o romance moderno por sua atmosfera.”
Orhan Pamuk, citando Ortega y Gasset

“Aqueles que consideram o diabo partidário do Mal e os anjos guerreiros do Bem estão aceitando a demagogia dos anjos: as coisas são mais complicadas.”
Rufus, citando Milan Kundera, supostamente


I

Escritor mineiro, radicado no Rio de Janeiro, Rubem Fonseca é conhecido pelos romances metaficcionais, em que a realidade aparente da história está mergulhada numa ficção que se ficcionaliza a si mesma, em meio à autoironia, ao autodeboche e à complexa relação entre ficção e realidade. Em Diário de um fescenino (Nova Fronteira, 2010, 2ª ed., 278 páginas), este jogo de metaficção historiográfica se torna mais interessante ainda à medida que o autor vai jogando com o leitor, entre o gênero policial e o romance erótico.

Publicado originalmente em 2003 pela Companhia das Letras, Diário de um fescenino é narrado em primeira pessoa em forma de diário por Rufus, escritor carioca com cinco romances publicados (e mais um livro de contos, renegado). Ele diz iniciar um diário sem saber por quê, supostamente por não ter o que fazer, para passar o tempo, registrando as banalidades do dia a dia, enquanto se debate para escrever um Bildungsroman (romance de formação).

As entradas do diário de Rufus começam no dia 1º de janeiro de ano não identificado e vão até 31 de dezembro deste mesmo ano, com vários dias ficando sem registro. Rufus começa seu diário assim:

“Decidi, neste primeiro dia do ano, escrever um diário. Não sei que razões me levaram a isso. Sempre me interessei pelos diários dos outros, mas nunca pensei em escrever um. Talvez depois de considerá-lo terminado – quando?, que dia? – eu o rasgue, como fiz com um romance epistolar, ou deixe na gaveta, para, depois de morto, os outros – nem sei quem serão, pois não tenho herdeiros – resolverem o que fazer com ele. Ou, então, pode ser que eu o publique.” (FONSECA, 2010, p. 5)

Após ter tido muito sucesso com seu primeiro romance, Rufus fracassa nos outros, e o que ele registra no diário é sua vida de libertino, conquistador de mulheres, amante da boa mesa, da literatura e do sexo. Suas amantes aparecem em pares, e as duas primeiras são a riquinha Henriette e a atriz Lucia. Ele deixa as duas para ficar com uma garota de 20 anos chamada Clorinda e com a irmã dela, Virna, de 34 anos, que na verdade é a mãe de Clorinda. A partir daí entram as complicações de crimes, traições e a meia luz do passado de Rufus com sua falecida mulher Elizabeth, e as acusações contra ele de estupro da Virna e de assassinato de Elizabeth.

Para entrarmos no universo de Rufus e explicar como ele usa a diarística para construir sua história, é preciso, primeiro explicar o significado do diário na literatura, bem como a significação do título do romance de Fonseca. Segundo Maurice Blanchot, em O livro por vir, o diário é uma escrito pessoal que tem o objetivo de registrar experiências vividas no dia a dia. Mas tem um preço para isso, diz ele. O escritor de diário não sai da vida comezinha. Registra apenas superficialidades, porque, embora tenha a pretensão de escrever só para si mesmo, anseia que um dia alguém leia seu diário, e por isso não vai ao fundo das coisas, não reflete sobre a alma e seus desejos. “É preciso ser superficial para não faltar com a sinceridade, grande virtude que exige também coragem”, diz Blanchot (2005, p. 271).

Para Blanchot, por ser superficial, o diário não poderia ser considerado literatura, pois “escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a à regularidade feliz que nos comprometemos a não ameaçar.” (2005, p. 270). 

Ou seja, o autor não via o diário como um veículo possível das expressões literárias, uma vez que também não era um meio para a reflexão, coisa que a narrativa é capaz de fazer, e a narrativa só é arte, literatura, se o fizer, se for capaz de erigir uma crise e resolvê-la de alguma forma. Na perspectiva de Blanchot, o diário foge disso.

Mas, mesmo negando o diário como um elemento capaz de entrar nas frinchas do ideal literário, Blanchot deixa uma porta aberta para que seu texto seja usado como exemplo de que o diário, sim, pode ser uma ferramenta poderosa do texto criativo.

Ele falava do diário íntimo, e levou em consideração apenas o diário como texto, não como plataforma, a partir da qual se pudesse expressar qualquer coisa, verdadeira ou fictícia. 

É o diário como plataforma que nos interessa para mostrar as possibilidades do romance tendo o diário como recurso estilístico e forma.

Acontece que, mesmo no primeiro caso, Blanchot nos deixa uma luz. Ele diz: “O diário está ligado à estranha convicção de que podemos nos observar e que devemos nos conhecer.”  É uma espécie de espelho, quase um divã psicanalítico. E é isso que acontece com o diário de Rufus, com a diferença de que ele o faz, escreve seu diário, com convicção de que está usando uma arma a seu favor. Veremos isso mais tarde. E se Rufus é ficção, existe um autor por trás dele que pensou o diário como meio. Mas Rufus também pensa no diário como um meio, e aí o que temos é um jogo espelhado de ficção dentro da ficção.

II

O jogo espelhado da ficção em Diário de um fescenino tem razão de ser. Provavelmente, Fonseca levou em conta outros dois romances que estavam em sua órbita criativa no momento de decidir escrever seu romance. Isso porque Diário de um fescenino é uma publicação encomendada pelo editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, que mostrou o romance O animal agonizante, de Philip Roth, a Fonseca e o desafiou a escrever uma trama semelhante, com “a mesma voltagem provocativa”, segundo conta Sérgio Augusto, em texto que vem como posfácio na edição de 2010.

Fonseca aceitou o desafio imposto por Schwarcz, e o livro ficou pronto em 2003. O animal agonizante é, portanto, o primeiro romance que estava na órbita criativa de Fonseca naquele momento, e o segundo é um dos próprios romances de Fonseca, Bufo & Spallanzani.

Para prosseguirmos na análise da diarística de Fonseca é preciso olhar por dentro os dois romances citados. Em O animal agonizante, David Kepesh aos 70 anos fala sobre a relação com uma aluna sua em especial, a cubana-americana Consuela, jovem, bonita, inteligente e lasciva como ele, fala sobre os amores que teve com várias alunas, enquanto mostra a decadência do corpo, a aproximação da morte, o significado do fim para um homem que passou a vida toda se dedicando à cultura, às artes, à literatura de modo especial, e à saciação do desejo, que é impossível. O livro mostra o abismo do desejo, e o drama que é isso no momento da queda. Este é o grande trunfo do romance de Philip Roth.

Ivan Canabrava e Gustavo Flávio - um duplo

 Já em Bufo & Spallanzani, Ivan Canabrava se vê envolvido na morte de uma mulher rica – casada com um homem influente, chamada Delfina Delamare – cuja investigação é feita pelo detetive Guedes.

Enquanto Guedes investiga a morte de Delfina, a trama segue por outros caminhos contando como Ivan se tornou escritor. Aos 20 anos, era professor primário quando conheceu Zilda, que o fez mudar de emprego e trabalhar numa empresa de seguros, onde testemunhou um golpe milionário em que o criminoso se fez passar por morto, tomando uma toxina extraída do sapo cururu (Bufo marinus) misturada a outra substância tóxica de uma planta (da família das compostas, como as trepadeiras) cujo efeito deixa a pessoa em estado de catalepsia.

Ivan descobriu como a manipulação foi feita. Depois fez a mesma coisa para provar isso ao diretor da seguradora. Mas, em vez de ser promovido pela descoberta, foi perseguido pela polícia e pelos capangas do executivo. Zilda então o deixou, e ele conheceu Minolta, uma poeta sem grana e que havia sido despejada. Ivan a convidou para ficar na casa dele.

Ao tentar demonstrar que o corpo do golpista não estava enterrado no cemitério, Ivan acabou matando um guarda e sendo preso num manicômio judiciário. Minolta e amigos o ajudaram a fugir de lá. Ele e Minolta foram morar no interior, em Iguaba, na Região dos Lagos, onde ele ficou por dez anos com Minolta, que o incentivou a se tornar escritor. Criou o pseudônimo Gustavo Flávio e escreveu dezenas de livros.

Ivan Canabrava, no início, odeia as mulheres. Em homenagem a Gustave Flaubert, cria seu pseudônimo Gustavo Flávio. “Como Flaubert, eu odiava as mulheres”, diz Gustavo Flávio. Mas nessa fuga para o campo, ele descobre que Minolta o ensinou a amar as mulheres, e quando volta de Iguaba é que tem o caso com Delfina. Ela é encontrada morta. Ele, para escrever Bufo & Spallanzani, e obviamente fugir de novo de Guedes, vai para o Refúgio do Pico do Gavião com outras pessoas, num ambiente bem Agatha Christie. Tanto é um ambiente agathachristiano que o leitor descobre no final que Gustavo Flávio é o assassino de Delfina, como em O Assassinato de Roger Ackroyd, de Christie.

Voltando ao Diário

Como Gustavo Flávio, Rufus tem envolvimento com as mulheres. Mas isso ele faz desde o começo, e não as odeia, pelo contrário. Neste sentido, Rufus é um antiflaubertiano. E como David Kepesh, Rufus é erudito e ama as mulheres. Para não repetir nem um nem outro dos dois romances, pois ambos têm alguém como interlocutor, ambos falam com alguém enquanto a narrativa é construída, provavelmente por isso, Fonseca concebe a ideia do Diário para Rufus.

Mas não é só isso, porque Rufus, ao ser concebido como alguém que usará um diário para contar sua história sórdida, dentro da ficção é um autor também, e aí o que entra em jogo é sua criatividade, sua maneira de jogar com o leitor. Ele é consciente de como funciona um diário. Fala em arquivo-diário e autorretrato disfarçado de diário (2010, p. 206), e diz que “um diário, como o nome indica, é um registro de experiências, observações, sentimentos e atitudes do seu autor e das suas interações com aqueles que o cercam” (2010, p. 9).

Enquanto a trama de seus relacionamentos continuam como tônica da narrativa, algo por debaixo da ponte, sob as turvas águas do romance, também vai acontecendo. Ao longo dos registros, o leitor percebe o diálogo entre O animal agonizante e Bufo & Spallanzani. No começo de O animal agonizante, por exemplo, Kepesh diz: “Sou muito vulnerável à beleza feminina, como você sabe. Todo mundo se torna indefeso diante de alguma coisa, e no meu caso é isso. Diante de uma mulher bonita, não enxergo mais nada” (2006, p. 9).

Já em Diário de um fescenino, Virna pergunta para Rufus: “O que fez você se interessar por mim?”. E ele responde: “Sou sensível à beleza feminina. (...) Sou ainda mais sensível à inteligência feminina” (2010, p. 136).

As intersecções são várias. Mas aqui, isso nos interessa apenas para mostrar a razão de Diário ser um romance metaficcional em seu grau máximo, uma vez que além do diálogo com outros romances de forma acentuada e claramente girando no interior do personagem, a própria ideia do diário é uma ideia falsa, criada por Rufus para ludibriar  o leitor.

Rufus diz não saber porque está escrevendo o diário, mas ao longo dele, à medida que as entradas vão sendo registradas, o leitor percebe sinais de que não é bem assim. Primeiro ele desdenha do diário, depois percebe que este tem uma força concêntrica (2010, p. 85), e vai entendendo sua razão de ser e se entregando a ele, ao ponto de questionar: “Se o sujeito escreve romance como bem entende, e existe romance de todo tipo, porque o diário tem que seguir um molde? O meu é assim como eu quero”, ou seja, cheio de diálogos e rememorações, citações, reflexões etc, mas sobretudo, direcionado como ele quer que seja, levando o leitor a acreditar numa coisa, enquanto quer dizer outra.

O termo fescenino explica bastante o significado do romance. A palavra é sinônimo de libertino, “que ou aquele que leva uma vida dissoluta, que se entrega imoderadamente a prazeres sexuais”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Sua etimologia vem dos habitantes de Fescênia, cidade da Etrúria (Itália), famosa como centro de devassidão perto de Roma.

Rufus é devasso, entrega-se aos prazeres sexuais. Mas, fescenino também é aquele que difama os outros para se divertir. E assim é o protagonista em questão. Em A personagem de ficção, Antonio Cândido fala em três elementos centrais para se entender um romance: enredo, personagem e as ideias. “A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos.” A personagem não é o essencial do romance, mas “é o elemento mais atuante.” (...) “A construção estrutural é o maior responsável pela força e eficácia de um romance” (1995, p. 55).

Neste sentido, Rufus está dentro de uma estrutura complexa, que é alinhavada pela ideia de diário, mas não mais pela ideia de um diário que registra coisas do cotidiano, a partir do qual o autor o usa como plataforma e cria personagens complexos. O diário aqui também pode ser falso, e neste momento, lançam-se os dados da interpretação da análise feita até agora.

III

Vamos falar de Rufus mais um pouco. Ele não se importa com as pessoas, é frio, só pensa em sexo e comida, depois em literatura e morte. O resto ele vê ou percebe sem dar importância em primeiro plano, embora não esqueça de nada. Ele não ignora o que presencia, guarda para si como informação.

Relapso ou capcioso, pródigo e escritor fracassado (não escreve o Bildungsroman, nem mesmo o primeiro livro foi ele quem escreveu; provavelmente, foi Elizabeth), cínico, mentiroso, desastrado, pervertido, azarado e narcisista. Mas ao mesmo tempo nos passa certa simpatia, porque também é engraçado, tem senso de humor, é ingênuo (mulher manda ele bater, ele bate e depois é incriminado por isso) e inocente, no sentido de não ter culpa de certas acusações que os personagens lhe fazem, mas não é inocente das acusações do leitor. É um personagem complexo.

Para se descobrir a ardilosa construção em seu diário, procuremos acompanhar duas linhas de raciocínio. A primeira linha é a em que Rufus fala de si mesmo. Na segunda, há o que Rufus diz sobre o que os outros dizem sobre ele e as reflexões que ele escreve ao longo do diário.

Rufus se aceita como uma pessoa pedante, e se autodenomina protagonista, mesmo estando supostamente escrevendo um diário íntimo, em que a rigor não há protagonista, uma vez que se fala apenas de si mesmo, não há reflexão (BLANCHOT, 2005). Mas se é protagonista, é porque há uma história sendo construída. Considera-se hedonista preguiçoso, que escreveu cinco livros: Carrossel lúbrico; Ardendo nas florestas da noite; O aprendiz; A órfã; Morte e insurreição. E mais um de conto antes de conhecer Elizabeth, intitulado Contos.

A mãe morreu a lhe dar à luz. O pai teve um enfarte quando ele era ainda bebê. Uma vizinha, professora aposentada, o levou para a casa dela e de suas três irmãs,  e elas cuidaram dele com desvelo. “Era como se eu tivesse quatro mães”, diz. Depois elas foram morrendo, uma a uma, e ele terminou de ser criado por quem herdou o apartamento onde vivia com as quatro mulheres.

Sobre o que Rufus diz sobre o que os outros dizem dele, algumas passagens revelam seu caráter. Ele é suspeito de ter matado sua mulher, Elizabeth, mas nega isso aos outros e ao leitor. Há passagens, no entanto, que mostram que Rufus está mentindo, que quando diz uma coisa, o significado é outro. E que seu diário foi criado depois de começar a ser acusado de ser um assassino, justamente para ajudar sua mente a mentir melhor para si e para os outros. Com o passar do tempo, o espelho refletiu demais sobre sua consciência e ele acabou entendendo a si mesmo mais do que devia.

Neste momento, Rufus já entende que conseguiu fazer a travessia pelo diário, que escreveu um livro ficcionalmente coerente, publicável, que pode dar certo. Usou o diário para falar dele, com artimanhas que revelam a si sem revelar. Um exemplo é quando ele diz: “Os autores sempre procuram maneiras de se esconder”, supostamente citando o teórico russo Mikhail Bakhtin.

Mais adiante comenta: “O bom tradutor, como disse Paulo Rónai, ‘tem de farejar, por trás de cada palavra, as segundas intenções do autor.’” E vaticina outra: “Só Deus sabe as contradições que este diário pode conter”, citando o poeta inglês Byron. Ou: “Nestas Memórias não se encontrarão todas as minhas aventuras; omiti as que poderiam desagradar às pessoas que delas participavam, pois elas fariam má figura”, citando Memórias de Casanova.

O diário começa a forçá-lo a se questionar: “Alguém se conhece? (...) Foi Maurois quem disse que a necessidade de se expressar literariamente resulta de um desajustamento, ou conflito interior, que a pessoa não consegue resolver de outra forma.” Aqui ele praticamente diz que está confessando literariamente, e que uma confissão assim não é límpida, é torta, conflituosa, cheia de meneios que podem enganar o leitor sem malícia.

Em um momento de crise, Rufus começa a refletir e a se mostrar, não abertamente, mas de modo hipotético, à meia luz:

O que sinto é uma consciência de mim mesmo que me faz experimentar a angoisse referida pelos existencialistas ateus, como Sartre. Isso será causado por eu estar escrevendo este meu autorretrato disfarçado de diário? Estarei, inconscientemente, escrevendo este diário para descobrir quem sou, trazer à tona os crimes que cometi, como o assassinato de Elizabeth, para encontrar um sentido para a minha vida? (2010, p. 206)

O leitor sabe que ele aqui também pode estar jogando, que ele também pode muito bem saber o que está fazendo e não exatamente escrevendo um diário para revelar inconscientemente seus crimes. É um jogo armado para se revelar, mas, à maneira dos psicopatas inteligentíssimos, um jogo armado de forma consciente, embora Rufus se diz usuário de remédios tarja preta.

Nesse lusco-fusco de linguagem, a personagem de Fonseca usa e abusa da boa vontade do leitor, fazendo mil e uma referências, lançando mil e uma pistas falsas, como num autêntico romance policial, com a diferença de que, neste caso, o detetive é única e exclusivamente o leitor.

Segundo Linda Hutcheon, a metaficção tem essas características, que envolvem o leitor numa história feita dentro de outra história. No caso de Diário de um fescenino, Rufus é uma ficção dentro de outra, porque está dentro de um fato criado por ele mesmo, ao dizer que é apenas uma hedonista que ama as mulheres. Dentro de sua história, de seu diário, com entradas feitas por ele, claro, há uma série de crimes esboçados, que cabem ao leitor juntá-los e pôr uma coerência naquilo. É o que o próprio Rufus espera.

“Metafiction”, diz Hutcheon, “as it has now been named, is fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic identity”[1] (1980, p. 1) É nessa linha que segue o texto de Fonseca, em que Rufus pinta e borda com o leitor, por ser irônico, ri de si mesmo e dos outros, incluindo o próprio leitor.

Para o escritor e ensaísta turco, Orhan Pamuk, “ler um romance significa compreender o mundo por uma lógica não cartesiana – ou seja, com a constante e inabalável capacidade de acreditar ao mesmo tempo em ideias contraditórias” (2011, p. 22) E segundo Ariano Suassuna, “toda verdadeira Arte não imita, recria, deforma e transfigura a realidade” (2007, p. 39). É com esta diretriz de leitura e entendimento sobre a literatura que o romance de Rubem Fonseca deve ser lido.

Diário de um fescenino é uma romance bipartido da linha metaficcional, entre o policial e o erótico, filho de Agatha Christie e de um filão genético bastante conhecido que vem de Petrônio, Sade, Bataille, até chegar à escola americana de Philip Roth, seu modelo por parte da libertinagem.

Rufus está no centro da trama como um escritor fracassado, há três anos sem escrever um livro. Pressionado pelo editor, diz escrever o sexto romance (o sétimo livro), um Bildungsroman, enquanto vai produzindo o diário. À medida que escreve seu diário, exibindo erudição e a facilidade para ganhar mulheres, vai tentando ao mesmo tempo se esconder e revelar o que provavelmente é, um assassino, não dos crimes descritos, mas dos sutilmente encobertos, e um mentiroso calculista, uma vez que o próprio diário deve ser uma criação posterior aos fatos registrados, ou pelo menos criado com a intenção de registrar os acontecimentos que antecederiam sua prisão por assassinato. Um falso diário.

Ele antecipa fatos de seu próprio diário, de coisas que só vão acontecer no futuro. Só saberia isso se estivesse inventado o diário posteriormente aos fatos. Um exemplo é quando ele diz que os romances de que os leitores gostam são feitos de temas batidos e aí enumera alguns, entre eles este: “Uma mulher, para se vingar, inventa que foi estuprada pelo homem que ela ama e que a abandonou”. É a história dele e de Virna, que se passará adiante, no futuro.

Aquilo que aparenta ser, em Diário de um fescenino, não é, e o que pode não ser, provavelmente é. Este é o grande truque do romance. Além disso, sua força estética coloca o leitor na roda do cômico, do risível e do moralmente contraditório e repulsivo, com quatro eixos em torno dos quais tudo gira: sexo e comida, literatura e morte.

IV

Muitas cenas podem ser tiradas do romance para ilustrar essas facetas estéticas. Em uma delas, por exemplo, Rufus conta o seguinte, numa conversa com Lucia, correspondendo a uma cena de humor:

“Pedi-lhe para deixar de depilar os pelos do púbis e ela repetiu que eu não a amava mais. Aliás, esse assunto acabou dando uma discussão idiota. Estávamos na cama, em meu apartamento, quando eu disse que depilar os cabelos do púbis era o mesmo que vandalizar as árvores de um lindo bosque. Lucia disse que eu era ridículo, respondi que ridículo era o bigodinho à Adolf Hitler que sobrava depois da depilação. Ela chamou-me de idiota ignorante, a depilação era feita para permitir o uso de biquíni.” (2010, p. 64)

Entre as cenas do que se pode chamar de risível, há uma em que Rufus está conversando  com Henriette, num momento em que os dois já estão separados:

“‘Ela colocou silicone nos seios, você deve ter notado. Pega no meu seio, anda, vê: tem silicone?’ Henriette sabia que tinha seios lindos.

 “‘Nós já acabamos, Henriette, nada mais temos um com o outro.’

“‘E daí? Você me ensinou a ser cínica e promíscua. Deita aqui, quero te chupar.’

“Eu havia ficado excitado ao acariciar os seios de Henriette, mas a frase erótica foi o que realmente me estimulou. Sou muito sensível às palavras.” (2010, p. 45)

“Sou muito sensível às palavras” faz rir e ao mesmo tempo remete à personagem de Roth, que diz: “Sou muito vulnerável à beleza feminina.” Nessa toada, Diário de um fescenino vai cavando seu lugar ao sol das narrativas ardilosas da literatura brasileira.

Rufus é um assassino sui generis, porque mistura elementos de Agatha Christie em O assassinato de Roger Ackroyd. É também um libertino que gosta de seduzir as mulheres, transar com elas até perder o interesse e partir para outra, um escritor que não sabe usar sua imaginação para criar tramas e por isso escreve em seus romances aquilo que se passa em sua própria vida, mas num formato que ele não domina, até se encontrar no diário, um formato perfeito para ele. O diário é seu romance de afirmação.

Sua confissão, enquanto escreve, está entre o que diz de si mesmo, suas citações e o que ele diz que os outros dizem, dialogando com seu modelo primário O animal agonizante, de Philip Roth, e seu modelo secundário, Bufo & Spallanzani, do próprio Rubem Fonseca.

O diário como plataforma, como veículo de uma forma expressiva vem de modo complexo, pois extrapola o primeiro significado de uma escrita plana, sem profundidade, para dar lugar a um tecido cheio de nuanças. 

Em muitos outros romances que trazem o diário como veículo da expressão literária, o narrador permanece mais ou menos fiel à ideia de retrato do cotidiano, e dentro dessa ideia vai escavando os significados de sua linguagem. No caso de Diário de um fescenino, o autor vai além, consegue fazer algo novo com um formato já rodado.

O diário é um rio que o diarista atravessa, e não se despreze aqui a metáfora do espelho das águas, porque é por meio delas que o narrador se revela, é nessa travessia que ele se acha e se mostra.




[1] “Metaficção, de acordo com as novas terminações, é ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui dentro de si mesma um comentário sobre sua própria narrativa e/ou identidade linguística.” (Tradução minha)