Uma das
graças de nossa interlocução pela leitura com as grandes mentes é
a de poder ver um autor que admiramos repetindo outro maior ainda, ou
sendo repetido nas gerações subsequentes como réplicas infinitas
de criatividade, porque há sempre um dado novo, um novo olhar sobre
o mundo. Para Harold Bloom, lemos para conhecer cérebros mais
interessantes do que o nosso. É um modo de aprender e de crescer,
sem dúvida. Em diversos autores acompanhamos essa dança de citações
e releituras.
Maquiavel,
por exemplo, no nono capítulo de Comentários Sobre a Primeira
Década de Tito Lívio, diz “os homens se inclinam mais ao mal
do que ao bem.” É interessante a observação dele, mas não era
nova nem para seu tempo. Já havia sido dita por Aarão, irmão de
Moisés, quando este o repreendeu por ter corrompido o povo de Israel
com um bezerro de ouro: “Tu sabes que o povo é propenso para o
mal”, disse Aarão.
Mas o
Antigo Testamento hebraico também não está sozinho. O sábio grego
Bias de Priene, do século VI a.C., deixou sua marca filosófica com
uma frase semelhante: “A maioria é malvada.” Ou seja, não temos
para onde ir. E por falar em maldade, o grande mito do bem e do mal,
em que tudo se mistura em meio à névoa da vida é a história do
sábio que vendeu a alma ao diabo.
Havia
sido contada antes de Goethe, mas foi ele que a cristalizou na
tradição da literatura ocidental. Como todo gênio, Goethe refaz o
mito e põe Fausto como um doutor que, em vez de vender a alma, faz
uma aposta com Mefistófeles, o diabo em pessoa. Este lhe daria tudo,
e ele seria sempre sedento de saber, mas, caso falhasse,
entregar-se-ia ao “ilustre herói”.
“O que
se ignora é o que mais falta faz", diz Fausto. Por trás dessa
premissa, há uma repreensão cristã. A sede de sempre saber mais é
o que nos leva à ruína. Mas a frase reverberante da história de
Fausto é outra. Ele acusa Mefistófeles de bisbilhotar a vida
alheia, porque sabe tudo, e este diz: “tudo eu não sei: porém,
ando bem informado.”
Esta
frase veio parar em um clássico da literatura brasileira. João
Guimarães Rosa, ao desenvolver uma fábula moderna da íntima
relação entre o ser e o tempo em Grande Sertão: Veredas,
põe Riobaldo, um Fausto supostamente malogrado, repetindo falas do
próprio diabo. Mas a verve trocada entre Goethe e Rosa é mais que
isso, é a expressão de um gênio pondo Fausto em outro caminho de
novo.
Rosa
embaralha tudo. Não fica claro se Riobaldo efetivou o pacto com o
diabo. E aí, ele aparece pondo na própria boca as palavras de
Mefistófeles: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita
coisa.” Além disso, Riobaldo tem como interlocutor um doutor, e
bagunça ainda mais o coreto ao especular que talvez o diabo seja
Deus. “Quem-sabe, a gente criatura ainda tão ruim, tão, que Deus
só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio
do diá?”
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 07/07/2014)
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