A essência da poesia de Paulo Leminski é
o desvio, desvio de tudo, da rima, do caminho, da vida. O leitor que entende
isso tem metade do que precisa para apreciar Toda Poesia (Companhia das Letras, 2013, 422 páginas), publicação
que reúne num só volume os magros mas voltaicos livros de poemas desse
curitibano que morreu de cirrose hepática aos 44 anos, em 1989.
O volume chega em tempo de arrebatar uma
nova geração de leitores, trazendo de volta às livrarias muitos títulos da
bibliografia de Leminski esgotados há tempos, como Quarenta clicks em Curitiba (1976) e o póstumo Winterverno (2001). A essência de sua obra poética também está
aqui: Caprichos & Relaxos
(1983), Distraídos venceremos (1987),
La vie en close e O ex-estranho, estes dois últimos
também publicados postumamente (1991 e 1996).
O legal da poesia de Leminski é a
espontaneidade dos versos, uma criatividade imensamente lúdica, que nos arrasta
sem pretensão para novos significados das palavras e do mundo. Uma vez ele
disse que “os verdadeiros poetas são uma espécie de erro na programação
genética”. E é com essa lógica dando pirueta que ele nos ajuda a encontrar o
rumo, como no velho ditado “Deus escreve certo por linhas tortas”.
De caso sentido, desalinhando o verbo
para plainar a verve, Leminski nos leva além, põe-nos à frente, ao nos fazer
mudar de rota. E faz isso de várias formas, valendo-se de poemas curtos à moda
dos haicais ou esticando um pouco mais as possibilidades dos versos e das
rimas.
No caso das rimas, formado numa escola
plural que privilegia a forma, manipulando-a em diversos níveis, produzindo
sentido em cada metro, cada pé, Leminski cria coisas incríveis, como neste
trecho: “um passarinho/ volta pra árvore/ que não mais existe// meu pensamento
voa até você/ só pra ficar triste.”
As principais rimas, a rigor, são
“existe” e “triste”, alinhando uma leveza de pássaro a uma existência
melancólica pela impossibilidade da volta. O passarinho não pode mais voltar
para a árvore, e o pensamento não alcança mais a existência de alguém que se
foi, que morreu ou se separou do sujeito poético.
Mas a grande rima escondida, e Leminksi
certamente tinha essa intenção, é a de “árvore” com “triste”, porque árvore em
inglês é tree, e essa afirmação se confirma porque é a árvore que não existe,
rimando, portanto, com a palavra que indica o estado de espírito de alguém pela
falta de outrem, “triste”. As barreiras línguísticas são sempre quebradas na
poesia leminskiana.
Metalinguagem
Para acentuar seu modo semiótico de fazer
poesia, Leminski nos brinda com um poema metalinguístico que a um só tempo
explica a si mesmo e nos encanta: “isso sim me assombra e deslumbra/ como é que
o som penetra na sombra/ e a pena sai da penumbra?”. Não só som rima com sombra
como está embutido na segunda palavra, da mesma forma que pena em penumbra, mas
indo além, porque “umbra” é sombra em latim.
Esta é a poesia de Leminski. O jogo de
rimas, de construção e desvelamento da palavra, das possibilidades das coisas,
faz parte de seu projeto poético. Tudo isso quase sempre evocando os desvios,
as rotas refeitas, as novas explosões de sentido. “um poema/ que não se
entende/ é digno de nota// a dignidade suprema/ de um navio/ perdendo a rota.”
E ele pode ser mais explícito, a começar
pelo título: erra uma vez. “nunca cometo o mesmo erro/ duas vezes/ já cometo
duas três/ quatro cinco seis/ até esse erro aprender/ que só o erro tem vez.”
O desvio de rota, o erro – não no sentido
pejorativo segundo o qual quem erra se ferra – é no sentido de que quem erra
pode se encontrar depois. É mais a consciência de que estamos todos sujeitos ao
erro, é a clareza de que ver o mundo pelos olhos das certezas e das convicções
é terrível e pouco poético. Neste sentido, Leminski era anticlássico, era
pós-moderno, era pura liquidez, e ao mesmo tempo sabia como funcionavam as
ideias clássicas, tanto as que deram certo quanto as que se equivocaram.
Estética do desencontro
Para falar do amor e da vida, ele
escreveu, com espanto de adolescente, como são o amor e a vida em descobertas e
erros:
Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
Por essas e por outras, muitas mais,
Paulo Leminski vale ser lido. Ele não está no Olimpo como Drummond e Murilo
Mendes, mas é uma ponte incomum entre os grandes poetas e os deuses. Se o
leitor se perguntar: enquanto o mundo lá fora está se acabando, por que abrir
um livro de poemas? A resposta pode ser esta: porque a poesia é capaz de
quebrar os átomos da indiferença dentro de nós, da tranquilidade mesquinha, da
pobreza de espírito. Leminski consegue fazer isso. Não é pouca coisa.
Além disso, Toda Poesia nos dá como brinde os poemas esparsos e uma mini
fortuna crítica, com textos de José Miguel Wisnik, Haroldo de Campos, Caetano
Veloso, Leyla Perrone-Moisés, Wilson Bueno e Alice Ruiz, poeta e companheira de
Leminski até a morte dele.
Leminski foi o bandido que sabia latim, o
ateu que escreveu uma biografia de Jesus Cristo, o poeta branco apaixonado por
Cruz e Sousa, o erudito de chinelo, o provinciano mais universal de que se tem
notícia em terras brasílis, o criador da estética do desencontro. É deus e
diabo.
Morreu cedo por encher a lata demais,
todos os dias, sem feriado, entre uísque e os cálidos goles de cachaça nos
bares pouco invisíveis de Curitiba, que existem até hoje, até hoje sobrevivendo
à sombra do poeta, que escreveu: “madrugada bar aberto/ deve haver algum engano/
por perto.” Leminski saiu da gramática para entrar para a poesia.
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