Sem contar as viagens de avião (que não
foram tantas assim), o lugar mais acima do nível do mar em que já estive talvez
tenha sido a Serra do Mar na Estrada da Graciosa, num precioso passeio de carro
até o litoral paranaense, ou o topo da Torre do Banespa, no centro de São
Paulo. A nenhum desses lugares tive de subir com meu esforço físico. Agora,
acabo de escalar meu Everest particular, também sem uma corda sequer. Nada de
jumares, piolets ou grampões.
É que li No ar rarefeito (Companhia de
Bolso, 2006, 288 páginas, tradução de Beth Vieira, R$ 24), de Jon Krakauer, um
craque da narrativa de aventuras. Adquiri o livro de duas referências do nome
do autor. A primeira é cinematográfica, quando em 2009 vi o filme Into the wild
(Na natureza selvagem), dirigido por Sean Penn (outro craque), baseado no livro
homônimo de Krakauer.
Nesse filme, senti que havia mais do que
uma boa adaptação, havia o espírito de um grande escritor. Fiquei com o nome do
autor do livro na cabeça, e quando li A turma que não escrevia direito, de Marc
Weingarten, em 2011, lá estava ele sendo citado pelo título desta mínima
resenha. No ar rarefeito é considerado uma obra prima do jornalismo literário,
e eu paguei para ver. Não saiu caro.
Em Na natureza selvagem (1996), Krakauer
conta a história de um rapaz de classe média alta que se desentende com o pai e
decide viver sua vida da maneira que sempre quis, explorando a densidade da
vida na selva, em lugares inóspitos do norte dos EUA.
Já No ar rarefeito, publicado
originalmente em 1997, narra a história da escalada do Monte Everest, em 1996,
em que o autor acompanhou como jornalista a expedição de uma equipe
profissional que levava alpinistas amadores até o topo do monte mais alto do
mundo, a 8848 metros de altura.
É um thriller psicológico, sem dúvida,
uma aventura humana, um conto moderno de como algumas pessoas desafiam os
limites impostos pela natureza com o objetivo de angariar força interior,
realização pessoal, ou fama e prestígio.
O livro de Krakauer é tudo isso, mas é
sobretudo a história de pessoas abnegadas, apaixonadas pelo alpinismo, pela
força bruta da natureza envolvendo-as no limite (na linha tênue) entre a vida e
a morte. Neste caso, a linha tênue se rompeu várias vezes, e muitos – dessa
turma – que tentaram escalar o Everest (e até escalaram) morreram antes de descer
para o ar denso do mundo cá embaixo.
Subi com eles. O talento de Krakauer é o
de levar o leitor como quem nos toma pelo braço e nos põe na rota certa, no ângulo
privilegiado da melhor paisagem. O Everest só não está por inteiro neste livro
porque é impossível assimilá-lo por completo, assim nos sugere o autor.
“Montado no topo do mundo, um pé na
China, outro no Nepal, limpei o gelo de minha máscara de oxigênio, curvei o
ombro para me proteger do vento e fixei o olhar distraído na vastidão do
Tibete. Compreendia, em algum recanto obscuro e distante da mente, que aquela
imensidão sob meus pés era uma visão espetacular. Durante meses a fio, eu
tecera fantasias sobre esse momento, sobre as intensas emoções que o
acompanhariam. Porém, agora que estava finalmente ali, de pé sobre o cume do
monte Everest, não conseguia juntar energia suficiente para me dar conta do
feito.”
É assim que começa o texto de Krakauer,
que foi ao Everest contratado pela revista Outside na expedição de Rob Hall,
que morreu junto com outras várias pessoas, inclusive o líder de outra
expedição, Scott Fischer, durante uma tempestade no topo do monte, enquanto se preparavam
para descer.
Escalar montanhas é uma aventura e tanto,
mas é também uma prática quase religiosa, no sentido de religar o espírito à
energia vital do homem, ao senso de responsabilidade, a um sentido existencial
muito forte.
Eu mesmo não tenho essa predisposição. Mas
se um dia fosse subir qualquer morro, como o fictício Ninho dos Gaviões (para
citar aqui José Maviael Monteiro, que li quando adolescente), voltaria com uma
nova maneira de encarar a vida. Essa é a impressão que tive quando li No ar
rarefeito. Eis a dica.
Trechos
"Velhos alpinistas experimentados, que
durante a vida inteira escaparam da morte por um triz, gostam de aconselhar
seus jovens protegidos e sempre dizem que permanecer vivo depende muito de
ouvir com atenção a sua ‘voz interior’. Não faltam histórias de um ou outro
alpinista que decidiu permanecer dentro do saco de dormir após detectar alguma
vibração etérea pouco auspiciosa, sobrevivendo assim à catástrofe que
liquidaria com todos os outros que não ouviram os presságios.
Eu não duvidava do valor em potencial das
dicas do subconsciente. Enquanto esperava Rob, que iria liderar o caminho, o
gelo a meus pés emitiu uma série de estalos sonoros, como pequenas árvores
sendo partidas ao meio, e eu estremecia a cada estalido e a cada rugido vindos das profundezas do
glaciar movediço. O problema é que essa voz interna vivia berrando que eu
estava prestes a me esborrachar; ela fazia isso toda vez que eu me abaixava
para amarrar o cordão das botas. Portanto fiz o possível e o impossível para
ignorar minha imaginação histriônica e segui carrancudo atrás de Rob rumo ao
sinistro labirinto azulado."
(...)
Pequeno conto sobre o lendário heroísmo
de Pete Schoening, membro sexagenário do grupo de Scott Fischer que subia o
Everest naquela temporada. Seu grande feito, segundo Krakauer teria sido em
1953, quando escalava o monte K2, o segundo pico mais alto do mundo, também no
Himalaia, com 8611 metros.
"A equipe de oito homens foi apanhada por
uma feroz nevasca, no alto do K2, e esperava para atacar o cume quando um dos
integrantes do grupo, chamado Art Gilkey, sofreu uma tromboflebite provocada
pela altitude, ou seja, estava com um coágulo sanguíneo que poderia ser fatal.
Percebendo que teriam de descer Gilkey imediatamente, para que houvesse a
mínima chance de salvá-lo, Schoening e os outros começaram a baixá-lo pela
empinada crista Abruzzi, em meio à furiosa tempestade. Aos 7620 metros, um
alpinista chamado George Bell escorregou e levou quatro outros consigo. Por
puro reflexo, Pete Schoening enrolou a corda em volta dos ombros e do piolet e
conseguiu, sabe-se lá como, segurar Gilkey sozinho e ao mesmo tempo sustar o
escorregão dos cinco sem ser puxado montanha abaixo também. Esse foi um dos
feitos mais incríveis registrados nos anais do alpinismo e passou a ser
chamado, dali em diante, simplesmente de The Belay."
(...)
"As pessoas que não praticam o alpinismo –
vale dizer, a grande maioria da humanidade – costumam achar que esse é um
esporte irresponsável, que se trata de uma busca dionisíaca de todas as emoções
que uma escalada possa fornecer. Porém essa noção de que o alpinista não passa
de um viciado em adrenalina, sempre à cata de uma dose legítima da droga, é uma
mentira, pelo menos no caso do Everest. O que eu estava fazendo lá em cima não
tinha nada em comum com pular de bungee, saltar em queda livre de um
para-quedas ou andar de motocicleta a 190 quilômetros por hora.
Acima dos confortos do acampamento-base,
a expedição tornou-se na verdade uma empreitada quase calvinista. O coeficiente
de aborrecimentos, em relação ao prazer, era de uma magnitude infinitamente
maior do que qualquer outra montanha que eu tivesse escalado; logo percebi que
escalar o Eeverest dizia respeito sobretudo à capacidade de suportar dor."