sábado, 1 de setembro de 2012

Vida e morte de uma guerrilheira



Maria Augusta Thomaz (1947-1973)



“Quantas vidas nós temos? Quantas vezes morremos?” Essas duas perguntas são do filme 21 gramas, de Alejandro González, com roteiro de Guillermo Arriaga, mas poderiam ter nascido da conversa de uma pessoa real, principalmente se fosse alguém ainda na flor da idade. É da natureza dos jovens acharem que têm muitas vidas, e dependendo da época, o número calculado em seus espíritos flerta com o infinito.

Essa realidade de uma ingênua e corajosa pretensão de ser eterno e poder tudo foi vista durante os chamados Anos de Chumbo da ditadura militar, quando os estudantes decidiram brigar pela liberdade e pela restauração das instituições democráticas no país. Trata-se de um zeitgeist específico, heroico e quixotesco, de nossa história.

A crise daquele regime de exceção abriu feridas que parecem jamais se apagar. A bibliografia sobre o assunto cresce, pela literatura, pelo cinema, seriados de TV, telenovelas e muitos livros de história. Agora mesmo acaba de sair nova publicação que lança luz sobre um canto particular dessa luta, As 4 mortes de Maria Augusta Thomaz (RD Movimento, 2012, 240 páginas, R$ 50), do jornalista goianiense Renato Dias.

O livro reportagem narra a espetacular ascensão e vertiginosa queda de uma menina de classe média do interior de São Paulo que se envolveu com militantes de esquerda da época da repressão, foi para Cuba, fez treinamento de guerrilha e acabou morrendo assassinada pela polícia política no município de Rio Verde, aos 26 anos.

Para escrever seu livro, Dias entrevistou 55 pessoas, entre jornalistas, pesquisadores, familiares de Maria Augusta e militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura. Além disso, leu dezenas de livros e uma fileira de jornais e revistas que retratam o período histórico.

Num rápido panorama daqueles tempos, temos a impressão de que os anos 60 e 70 eram mágicos. De vez em quando uma história emocionante surge de lá. As narrativas que cobrem o período trazem sempre um contorno trágico, mas ao mesmo tempo oferecem como legado uma seiva de ensinamento de que – quando se quer e luta – é possível construir um mundo melhor.

Anos utópicos

Há um misto de utopia e vigor, esperança e luta nessa visão. Também surge nas tramas narradas, nas histórias da literatura, do cinema dos estudos históricos, da apuração jornalística, um sem número de desilusão, de violência, repressão e morte, e uma entrega absoluta que nunca mais se viu no palco de ação da juventude tupiniquim.

Era possível ver isso na música, carregada de metáforas que puxavam o significado da luta política pela liberdade para os versos das letras, a tensão dos conflitos para os sons e ritmos das canções. Sempre que se lê alguma coisa nova que surge sobre esse tempo, é nesse pano de fundo de uma juventude ousada, inteligente e brava que devemos ler.

É assim que se lê o livro de Renato Dias. Ele começa pela descrição do sequestro em Buenos Aires do Boing 707, no dia 4 de novembro de 1969, executado por um grupo de guerrilheiros brasileiros que iam fazer treinamento em Cuba. Entre eles, a jovem Maria Augusta Thomaz.

Dias a descreve como uma moça bonita e inteligente, “magra, loira, com as madeixas na cintura, olhos verdes, boca carnuda”. Quando sequestrou o avião era “uma morena de cabelos lisos, boca carnuda, olhos claros e fundos”. Havia mudado seu visual para a ação na clandestinidade.

Os lances seguintes do livro de Dias procuram recuperar a figura humana de Maria Augusta, mostrando-a desde a menininha bem articulada na escola tirando boas notas, passando pelo lado família da garota que protegia os irmãos mais novos, e que gostava de comer pernil de porco com batata doce, feita pela avó materna, e beber suco de laranja.

A menina que brincava na chuva, que adorava o cheiro de barro molhado e de sentir os pingos de água carregados pelo vento baterem-lhe no rosto, a menina que se apaixonou pelo professor, como toda adolescente, um dia se tornaria a mulher valente que levou às últimas consequências sua missão de salvar o país das garras da ditadura.

Filha de Aniz Thomaz e Olga Michael, Maria Augusta Thomaz era a terceira de cinco filhos do casal. Nasceu em 1947, em Leme, interior de São Paulo, viveu sua infância ali e em Presidente Bernardes, a 578 quilômetros da capital paulista.

Rebeldia

Quando o golpe militar se deu, em 1964, ela tinha 16 anos e, segundo Dias, vivia alheia ao turbilhão que se tornara a vida política brasileira (fazia o primeiro ano do curso de normalista, magistério). Nessa época, namorava apenas entre beijos e abraços, nada de sexo. Era católica e seguia os preceitos da moral cristã, ia à missa aos domingos, fez a primeira comunhão, e era apaixonada pela Jovem Guarda.

Não tinha absolutamente nada a ver com a nervura intelectual dos garotos de São Paulo, muitos dos quais se politizavam ainda no ensino secundário. O máximo de rebeldia que Maria Augusta podia fazer nessa época ela fez depois de um desentendimento com o pai. Havia ficado noiva, ia se casar e provavelmente viver a vida de professora de cidade do interior.

Mas para implicar com o velho, terminou o noivado e foi namorar um homem separado. Para Dias, essa atitude já denotava uma rebeldia incontrolável. “Seu comportamento era contemporâneo da revolução dos costumes dos anos 60”, analisa o autor.

Logo Maria Augusta desistiu do método primitivo de implicância com o pai. E a pulsão de morte afloraria alguns anos mais tarde. Em 1968, aos 21 anos, passou no vestibular para filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e se mudou para a metrópole.

Ao mesmo tempo que a menina bonita do interior, um pouco ingênua, segundo uma das fontes de Dias, entrava num mundo mais agitado intelectualmente, o Brasil, que já vivia sob o governo militar, passava a sofrer os primeiros traumas daquilo que se tornaria um regime de exceção absoluta.

No ano que não acabou, conforme disse Zueni Ventura em seu best-seller de 1989, Maria Augusta dava início à sua vida acadêmica e política, mergulhando de cabeça nos eventos contra a ditadura, começando pelas manifestações estudantis e terminando na luta armada.

No final de 1968, ela se tornaria companheira de José Wilson Lessa Sabag e entraria para a Aliança Nacional Libertadora (ANL), com o codinome de Sofia, sob o comando de Carlos Marighella, líder de esquerda que defendia a luta armada que acabou sendo assassinado pelo regime em novembro de 1969, meses depois de um de seus braços direitos, Sabag, também ser morto pela polícia.

Nesse ano, Maria Augusta participa do plano de sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, coordenado pela ANL e pelo MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Entre os autores do plano estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira. Eles queriam libertar, e libertaram, presos políticos como José Dirceu e Wladimir Palmeira.

O fim

Depois disso, Maria Augusta já estava noutra ação tática dos militantes, em viagem a Buenos Aires. Foi lá que ela protagonizaria um dos lances mais ousados da esquerda guerrilheira da América Latina, o sequestro do Boing 707 da Varig com 101 pessoas a bordo, no dia 4 de novembro de 1969, enquanto em São Paulo, Marighella era assassinado.

O avião fora usado para levar os militantes a Havana, onde fariam um treinamento de guerrilha. Aylton Adalberto Mortati, novo companheiro de Maria Augusta em Cuba, volta com ela e outros militantes para o Brasil, em 1971, após criarem o Molipo (Movimento de Libertação Popular), no ano anterior.

Organizam-se e decolam em São Paulo, onde praticam assaltos e roubos que chamam de expropriação de bens, para conseguir dinheiro, enquanto traçam estratégias de luta. Ao longo dos anos seguintes, um a um foi tombando pelo cerco da ditadura, inclusive Mortati. Ainda assim, o Molipo conseguiu montar o grupo que começaria a guerrilha rural.

Alguns de seus membros, como Maria Augusta, vêm para Goiás fazer o que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia. Segundo Dias, os militantes do Molipo oriundos das camadas médias intelectualizadas correspondiam a 80% dos seus membros. Maria Augusta fazia parte dessa estatística. Mas o exercício intelectual às vezes não dá conta da brutalidade e das táticas do mais armado.

Maria Augusta foi para o campo como única alternativa de continuar lutando, pois o cerco se fechava nas grandes cidades. Em 1973, ela e seu novo companheiro são assassinados e enterrados nas imediações da BR 060. Sete anos depois seus restos mortais seriam exumados e levados dali para nunca mais serem encontrados.

Em seu livro, Renato Dias procura a objetividade e a clareza, quer uma prosa enxuta, apontando para as marcas decisivas do cenário sociopolítico da época. Quer captar a essência de Maria Augusta e desenha muito bem o ambiente – reconstrói a atmosfera – em que se insere sua personagem. É um bom livro.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

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