As histórias infantis cruzam a vida dos adultos de diversas formas, quer pelo fato de termos de lê-las, ou contá-las aos nossos filhos, quer pelas lições de afeto que recebemos delas quando nossas crianças aprendem a reproduzi-las, citá-las nas brincadeiras ou simplesmente porque, quando nós mesmos éramos crianças, convivíamos com uma série de experiências que trazemos para a fase adulta e recontamos a filhos e sobrinhos.
Essas rememorações podem ficar apenas em nosso círculo íntimo, ou podem virar novas histórias para outras crianças. É aí que nasce o escritor. E foi assim que nasceu uma nova autora de livros infantis, a jornalista Débora Rubin, de São Paulo. Ela acaba de lançar seu primeiro livro, A horta do vovô Manduca (Lafonte Júnior, selo da Larousse, 2012, R$ 29,80).
O livro conta a história do senhor Manduca, velhinho que mora numa cidadezinha do interior que de tão calma e pacata, de tão silenciosa e devagar se chama Caramujo. Nas férias, uma porção de meninas vai passear na casa dele. São suas netas, que vivem uma série de aventuras na casa do vovô Manduca.
A narração é em terceira pessoa, mas claramente passa pelo elemento da memória. Lembra o que fazia o vovô, como vivia e o que havia de mais legal na sua casa. São lembranças da infância, e a horta do vovô Manduca é eleita o assunto mais marcante dessas memórias.
Débora construiu um texto fluido, fácil, rápido, apoiado nas ótimas ilustrações de Fabiana Salomão. É uma bela história de criança, com um olhar diferente para as coisas, porque tenta resgatar uma espécie de sustentabilidade que existia nas cidades do interior.
Infância vivida
Se vier a ler este texto, a autora provavelmente ficará horrorizada com as categorias intelectualizadas que utilizo para resenhar seu livro. Isso porque ela sabe muito bem que a literatura infantil tenta justamente fugir disso, mesmo quando fala de elementos complexos como a morte e a própria existência, que é o caso de seu livro.
Também sabemos que a criança constrói um universo pleno de representações sem passar pela mediação simbólica dos adultos. Existo no mundo, e as pessoas que amo também existem, e isso basta. O resto não é literatura, é brincadeira e jogos. É mais ou menos assim que funciona.
Na história do vovô manduca, podem-se discutir as questões da passagem do tempo, da alimentação saudável e também da morte, ou simplesmente mostrar que as memórias são importantes. O vovô não vive para sempre fisicamente, mas as lembranças que permanecem na história contada é uma prova viva de que ele permanece de alguma forma. E isso é o legal do livro.
Vovô manduca é um velhinho ativo e plural, dinâmico, cheio de coisas pra fazer. Não joga no time daqueles senhorzinhos aposentados e sedentários das grandes cidades que vivem enfurnados em apartamentos com medo de tudo, e com certa razão.
Refúgios
Vovô Manduca faz doces, conta histórias a suas netas, e depois aos outros netos que surgem pelo meio do caminho da narração, costura ternos (e há aqui uma sutil sugestão de que, com isso, o que o vovô confecciona mesmo é ternura), torce para o Corinthians e, sobretudo, se manifesta sempre com um sentimento democrático, de dar voz a todos, outra lição às crianças.
É um vovô que produzia a plenos pulmões a frase “Eeee netaiada bonita do vô!!!”. Depois, esse entusiasmo vai diminuindo, passando para o pensamento até ficar apenas no imaginário da infância, à memória afetiva. A horta do vovô Manduca é uma história rápida, passa como um pequeno furacão, mas deixa impressa no leitor\ouvinte a sensação agradável de infância vivida.
A cidade de Caramujo é o contraponto das grandes cidades, em que as crianças perdem o contato quase que completo com a natureza. Carros, avenidas tumultuadas, televisão, internet são ícones da sociedade de consumo, um meio de costas viradas para a natureza e, espantosamente, um meio sem o qual ninguém, ou quase, consegue viver. Nem mesmo a autora deste livro, nem mesmo o autor deste texto.
Neste sentido, o livro de Débora é uma pequena lição e delícia de leitura que se pode fazer com os filhos, aproveitando o momento de infância que eles têm, possuindo um vovô Manduca ou não.
O resgate do equilíbrio é necessário. Que as histórias infantis como esta não sejam apenas reminiscências, mas uma inspiração aos futuros adultos, para que, ao crescerem, explorem seu imaginário infantil e encontrem refúgios semelhantes.
5 comentários:
Giba, fazia tempo que eu não passava por aqui e, mais uma vez, me deliciei com sua análise e mais uma vez fiquei com vontade de saber mais da história sobre a qual você se debruçou. Parabéns!
Abração
Obrigado pela visita e pelo comentário, Maria! Você é sempre bem vinda. Um abração!
Nossa, Giba!
Estou encantada!!
Como foi que você conseguiu produzir um texto tão incrível sobre um livro tão simples?
E me fez ver coisas que nem eu mesma tinha percebido no meu próprio livro...daí a grandeza do crítico.
Que coisa bela, vou compartilhar e exibir por aí, toda pimpona =)
Tenho visto seu blog desde que vc pediu o livro na editora e eu te redescobri aí, de volta a Goiás.
beijão e obrigada!
Débora
Giba, fiz um comentário enooorme e, tonta que sou, não salvei e perdi nessas artimanhas do Blogger...
Mas eu basicamente dizia que fiquei encantada com esse seu texto!! Muito surpresa em ver como você viu coisas que nem eu tinha visto. Um texto incrível sobre um livro absolutamente simples.
Adorei e vou compartilhar - e me exibir - por aí, tá?
Super obrigada!
Me senti honrada.
Vi teu blog quando você pediu o livro na editora. E só assim descobri que vc voltou pra Goiás =)
beijão
Débora
Oi, Débora! Obrigado pela visita, pelo comentário! O texto flui bem quando a leitura é boa, quando o livro tem um significado, né. Seu livro tem um grande significado. A Ellen leu para os aluninhos dela na escola e eles adoraram. A Penélope também gostou muito. Ela sempre pede pra gente ler, e de vez em quando a vejo sentada na cama folheando A horta do vovô Manduca. Ou seja, você merece mesmo os parabéns. Pois é. Voltei pra Goiás, voltei a estudar e continuo na batalha diária. Um beijo, e espero que você continue escrevendo.
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