sábado, 21 de julho de 2012

A modernidade encalacrada na memória: vida e tempo


“Não se tem história sem erudição”, diz Jacques Le Goff em seu livro História e memória, publicado originalmente em 1977, na França, e em 1990, no Brasil. Ele agora sai de novo em 6ª edição (Unicamp, 2012, 526 páginas, tradução de Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges, R$ 78). A essa observação sagaz de Le Goff, é preciso acrescentar o fato de que tampouco se tem erudição sem memória.

Le Goff é um dos historiadores mais fecundos do século XX. Não que ele tenha deixado de produzir neste início de novo milênio. Em 2003, publicou Em busca da Idade Média, livro que saiu aqui em 2005. Mas suas grandes contribuições datam da segunda metade do século passado.

Uma dessas contribuições é o fato de ter jogado luz sobre a Idade Média, procurando retirar o velho ranço impetrado pela Igreja Católica de que nada havia além de seres brutos e escuridão no período anterior ao Cristianismo. Em História e memória, Le Goff, que em 2014 fará 90 anos, cerca-se de todos os lados para criar uma obra seminal a historiadores, pensadores, homens de letras e demais interessados no processo de passagens da cultura humana.

Primeiro ele enumera as diversas faces da história, que procuram captar os fatos de todas as maneiras possíveis, não levando em conta apenas o centro, e muito menos o dono das canetadas e das tomadas de decisão. Há, portanto, "realidades" históricas que foram negligenciadas por muito tempo pelos historiadores, mas que desde o século XX começaram a ser trabalhadas.

Nesse campo fértil, existem a história política, a história econômica e social e a história cultural. Junto a elas, segundo Le Goff, nasceu a história das representações, que “assumiu formas diversas”, como história das ideologias, história das mentalidades, história do imaginário, história do simbólico, e, por fim, “a própria ciência histórica, com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história.”

Problemas

A partir daí, Le Goff levanta uma série de problemas com os quais ele vai lidar em seu livro. “Matéria fundamental da história é o tempo”, diz ele. “Portanto, não é de hoje que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar da história.”

E assim o autor vai delimitando um espaço e um campo formidavelmente complexo, cheio de referências e de observações sobre como a humanidade lida com o passado para forjar o presente ou mesmo para negar certos traços teoricamente negativos do que já existiu. “O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta”, diz.

“A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência do tempo. (...) A oposição presente/passado não é um dado natural, mas sim uma construção”, continua. Neste livro, Le Goff quer analisar a temporalidade, o curso do tempo e as ferramentas humanas usadas para segurar o mínimo de traços, de vestígios deixados pelo próprio homem ao longo dessa passagem temporal, ofício que é da história.

Em muitos casos, o autor segue a metodologia da dicotomia platônica. Na segunda parte, os termos são discutidos justamente dentro dessa dicotomia: Antigo/Moderno, Passado/Presente e Progresso/Reação. Mas há também exposições magníficas sobre “o imaginário do tempo”, em que discute as idades míticas, e “a ordem da memória”, passando pela memória étnica, o DNA, até os registros escritos, depositário com o qual se forjou a modernidade.

Diante de tantos caminhos, é preciso escolher um para finalizar esta resenha. O debate em torno de Antigo/Moderno é uma boa oportunidade de exercício sobre o que o Ocidente recebeu de herança e o que forjou de novo, o que apenas renomeia e o que há de característico como sendo realmente um dado revolucionário.

Neste capítulo, Le Goff faz um preâmbulo geral dos dois termos e seus significados. Ele se utiliza de uma série de recursos epistemológicos para desenvolver sua tese sobre a dualidade antigo/moderno, como antropologia, etimologia e genealogia do saber. E aí segue escavando, desenterrando os significados das palavras que giram em torno do binômio antigo/moderno.

Palavras

A ideia de modernidade foi construída ao longo dos séculos. Primeiro veio a palavra ‘moderno’, termo que apareceu já no baixo latim, a partir do século V d.C. Já ‘modernidade’ só veio a ser cunhado no século XIX por Charles Baudelaire. Segundo Le Goff, “modernidade é a tomada de consciência das rupturas com o passado e a vontade coletiva de as assumir”

Mas essa ruptura sempre esteve em volta a retornos e revoltas, avanços (vanguarda) e retrocessos. Por isso mesmo o estudo do binômio Antigo/Moderno e suas ambiguidades são importantes para compreender esse processo. Os dois termos nem sempre se opuseram um ao outro, e ambos podiam ser afirmativos, pejorativos ou neutros.

No século XVI houve a divisão da história em Antiga, Medieval e Moderna. Depois, o termo ‘moderno’ passa a se opor mais a medieval. E o termo ‘antigo’ passa a se referir à Antiguidade, e a Antiguidade se refere à época anterior ao triunfo do Cristianismo no mundo greco-romano.

Esse jogo conceitual tomou outro rumo quando o Renascimento passou a considerar o antigo como Antiguidade, e esta um modelo a se imitar. Passa ser um combate entre duas formas de progresso, não como combate entre passado e presente.

Le Goff então passa para a análise dos termos novidade e progresso e os sentidos do ‘novo’: esquecimento ou ausência do passado. Ao longo da história, até que se alcance a modernidade, progresso é outra palavra que ganha fôlego, se desdobra e deixa o termo moderno para trás.

Pode-se usar ‘progredir’, ‘progressista’, já no século XIX. Ligados à revolução industrial, novo é igual a ‘fresco,’ ‘inocente’; ‘progresso’ é igual a ‘dinamismo’. E o termo ‘moderno’ fica para trás porque não tem nada disso.

Alteridade

Segundo o autor, o termo modernitas surge no século XII, mas só no XIX entra nas línguas vulgares. Depois dessa briga, antigos e modernos se reconciliam porque os modernos renascentistas redescobrem a antiguidade clássica, contrapondo o moderno à Idade Média, o início das trevas (como pregava a Igreja Católica).

Em 1900, começam a pipocar as relações da palavra modernismo, literário, religioso e o que se convencionou a chamar modern style. Com este último, o objetivo era “produzir objetos, invadir a vida cotidiana e abolir a barreira entre artes maiores e menores; a produção artística torna-se social, não se dirige mais a uma elite.”

Aí vem uma sucessão de novidades: revistas, museus, artistas que se tornam renomados dentro dessa nova proposta, como Gaudi, arquiteto que deu vida a Barcelona, aquilo que a gente vê em filmes espanhóis. A conclusão de Le Goff é que “enquanto o espírito antigo se alimentava de heróis, chefes, gestas, o espírito moderno vive do cotidiano, do massivo, do difuso (mistura).” O movimento modern style vai até 1910. De seus restos nasce o kitsch.

Le Goff argumenta que “o primeiro embate total entre antigo e moderno foi, talvez, o dos índios da América com os europeus”. E neste caso, vale citar aqui um livro importante que mostra como a relação entre o Velho Mundo e o Novo fez nascer a cultura moderna. Em A conquista da América: a questão do outro (1982), Tzvetan Todorov diz que a chegada dos espanhóis ao continente americano fundou o problema moderno da alteridade.

“A descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na ‘descoberta’ dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza”, diz Todorov.

“Em 1500”, comenta Todorov, “a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 [milhões] habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, restam 10 [milhões]. Ou seja, se nos restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.”

“A descoberta do outro”, conclui o grande pensador da modernidade, “tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias.”

Consciência

Voltando a Le Goff e seu livro seminal, toda essa discussão é resgatada pela história e pela memória, mas nada de consciência da modernidade até então, que só viria acontecer nessa passagem do século XIX para o XX.

Repetindo, modernidade é a “tomada de consciência das rupturas com o passado e da vontade coletiva de as assumir.”

Quatro elementos se evidenciam, portanto, nessa tomada de consciência: 1) Percepção da aceleração da história; 2) pressão do progresso material sobre a mentalidade; 3) Filosofia grega e as obras dos pensadores árabes, isso entra como choque externo; 4) intelectuais e tecnocratas como receptores dessa afirmação da modernidade.

A sociedade moderna é aquela que tende a valorizar o novo pelo novo. Le Goff conclui que “o moderno adquiriu um ritmo de aceleração desenfreado.” (...) “Outro paradoxo ou ambiguidade: o moderno, à beira do abismo do presente, volta-se para passado. (...) “Este período, que se diz e quer totalmente novo, deixa-se obcecar pelo passado: memória, história.”

O que ganhamos com isso? Mais consciência de que estamos afundados numa areia movediça dos conceitos, do tempo e da história. Le Goff não dedica uma linha aos termos pós-moderno, pós-modernidade, e nem podia se lembrar dos mais recentes, como modernidade líquida.

(Gilberto G. Pereira. Versão ampliada do texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 15/07/2012)

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