A discussão sobre a herança africana na literatura brasileira chega tarde a nossa casa, mas finalmente deu um passo importante com a publicação de Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (UFMG, 2011, 4 volumes), que já está com edição esgotada.
Organizada pelos professores e pesquisadores Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca, a coleção procura recuperar os autores negros, contextualizá-los ao longo da história de nossa literatura e colocá-los na sua devida importância. No quarto volume, há o esboço de uma ensaística crítica em que alguns intelectuais e pesquisadores negros procuram teorizar essa produção.
Ainda no quarto volume, outra preocupação é a de mostrar como os afrodescendentes brasileiros são retratados na literatura, de que modo são retratados e o quanto o são, além de revelar o baixo número de escritores negros no país, principalmente romancistas.
O primeiro volume, subintitulado Precursores, traz 31 autores que atuaram entre os séculos XVIII e XX, começando com Domingos Caldas Barbosa, reconhecido artista, poeta e músico, que sabia latim e viveu em Lisboa gozando de relativa fama e prestígio, e finalizando com Carlos de Assumpção, nascido em 1927, considerado um mestre da poesia de protesto no Brasil.
Exemplo de como Assumpção pensava o conflito racial e expressava isso poeticamente são os versos de seu poema Alma branca.
Isso é discriminação
Deixe disso meu irmão
Mesmo quando me elogia
Você mostra é prevenção
Pare com isso por favor
Quem já viu a alma algum dia
Pra saber se ela tem cor?
Entre esses dois nomes, o primeiro volume vem repleto de autores importantes de nossa literatura, como Cruz e Sousa, Gonçalves Dias, Luiz Gama, Machado de Assis, João do Rio, José do Patrocínio, Lima Barreto, Solando Trindade, Abdias Nascimento e Carolina Maria de Jesus.
Esta última (que nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, e faleceu em 1977, em Parelheiros, Grande São Paulo), com apenas dois anos de estudos formais, trabalhando como empregada doméstica e catadora de papel, mantinha um diário que depois virou o livro Quarto de despejo, cuja qualidade literária a colocou na roda dos grandes escritores do começo da segunda metade do século passado.
Negação
O perfil de cada autor apresentado nos três primeiros volumes foi escrito por estudiosos profundamente engajados neste campo de pesquisa, como Marisa Lajolo, que escreveu sobre Gonçalves Dias, Marli Fantini (Machado de Assis), Vera Casa Nova, que falou sobre Domício Proença Filho, no segundo volume, e Elisângela Aparecida Lopes, sobre Júlio Emílio Braz, no terceiro volume.
Se no primeiro volume, é possível reconhecermos algumas figuras que já se cristalizaram na história de nossa produção literária, a partir do segundo, subintitulado Consolidação, junto com o terceiro, Contemporaneidade, muitos nomes de autores ainda vivos (dos 69 analisados nesses dois livros) permanecem anônimos para nós mesmos, nós afrodescendentes.
Ainda que se mantenha algum interesse sobre essa produção que diz respeito à identidade negra, o silêncio em torno desses autores é uma prova cabal do quanto os meios de comunicação negligenciam, ignoram esse lado, que é parte legítima e constitutiva da própria cultura brasileira.
A exceção de Oswaldo de Camargo – poeta, jornalista, autor de um livro importante do gênero histórico, chamado O negro escrito –, Joel Rufino dos Santos, Martinho da Vila, Muniz Sodré, Nei Lopes, Cuti, Paulo Lins, Cidinha da Silva e outros poucos nomes, os outros só são ouvidos num grupo cada vez mais restrito, porque o espaço na imprensa tradicional lhes é fechado.
Os romancistas que se identificam como afrodescendentes, criadores de personagens que trazem a marca do negro e da sua relação com a sociedade brasileira, sempre conflituosa e muitas vezes negadora do espaço e da identidade negra, esses ainda são poucos mesmo.
Mas, apesar da negação do espaço, Literatura e afrodescendência no Brasil nos mostra um grande avanço dos autores negros, no campo da poesia e de outras artes. Abdias Nascimento, que está na coletânea de autores, aparece no quarto volume, como intelectual e líder da consciência negra, para falar dessa realidade.
Produto intelectual
Falecido em 24 de maio de 2011, aos 97 anos de idade, Nascimento havia concedido a entrevista para os organizadores do livro em 2005. Nonagenário, mas sempre consciente, combatente e lúcido, ele disse nessa entrevista que os negros no Brasil, os afrodescendentes de modo geral, estamos produzindo mais e procurando ganhar esse chão negado.
“A juventude afro-brasileira está levando muito a sério a questão estética, a criatividade; ela produz ensaio, faz teatro etc. Então a gente vê que não está paralisada essa criatividade, está deslanchada e cada vez mais consciente. O mapa da criatividade da literatura afro-brasileira já está conquistando o seu espaço”, diz Nascimento.
Essa luta pelo espaço, no campo da arte e da cidadania, é legítima. Segundo Nascimento não há receita fácil, nem caminho sem pedras. O que se tem de fazer é mostrar aos outros que estamos acordados.
Perguntado sobre a importância da publicação de Literatura e afrodescendência no Brasil, Abdias Nascimento foi claro e sucinto: “só lamento que esse projeto esteja chegando tão tarde.” Segundo ele, é o tipo de ação que ajuda na conquista desse espaço que falta aos afrodescendentes, e não perde a oportunidade de dizer que não só a imprensa, mas também a universidade ignora a identidade negra como tal.
“Essa ideia é a oportunidade de mostrarmos o negro sujeito de sua própria criação literária, publicando urgentemente a produção intelectual desse segmento da sociedade. (...) Tenho feito acusações públicas terríveis à universidade brasileira exatamente pela posição que ocupa. Ela tem uma tradição eurocêntrica que vai se consolidando e funciona como o grande instrumento do racismo”, diz Nascimento, absolutamente consciente do que está dizendo.
Sua fala, nessa entrevista, no entanto, é para ressaltar a importância desse trabalho de esforço acadêmico, junto à Universidade Federal de Minas Gerais, uma das instituições públicas que mais tem investido em pesquisas sobre a identidade afro-brasileira. E arremata: “A África compõe e constrói a identidade brasileira desde a sua essência.”
Representação
Se a África compõe a identidade brasileira, essa identidade se esconde quando se trata da representação dela nas páginas dos livros. Uma pesquisa feita pela professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè, publicada neste livro, mostra a realidade dessa representação.
Ela analisou quase 400 romances brasileiros, em dois períodos de nossa história recente. Foram 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Rocco e Record, e 130 romances de autores também brasileiros publicados entre 1965 e 1979 pelas Civilização Brasileira e José Olympio.
Com essas duas análises, a pesquisadora chegou a uma série de dados sobre a produção e a representação social por meio da literatura. Segundo ela, 80% dos personagens desse período são brancos, “proporção que aumenta quando se isolam protagonistas ou narradores.” E acrescenta: “Isso sugere uma outra ausência, desta vez temática, em nossa literatura: o racismo.”
No corpo de romances publicados entre 1990 e 2004, apenas 7,9% dos personagens são negros. Quando a análise passa para cor e posição dos personagens, o disparate é bem maior, com 84,5% de protagonistas brancos e 5,8%, negros. Se se trata de narradores, o índice desce mais um pouco no escopo dos negros. Somente 2,7% dos narradores são negros, contra 86,9% de brancos.
Se, de modo geral, 80% dos personagens são brancos, e apenas 7,9% são negros, quando se trata da cor dos próprios romancistas, a realidade se afunda mais no disparate. Dos 165 autores analisados do período entre 1990 e 2004, 93,9% deles são brancos, e os não brancos, “como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%.” Segundo a pesquisadora, 3,6% não tiveram a cor identificada.
É claro que o estudo de Regina vai além dessas tipologias e analisa também a relação entre realidade e ficção, a questão estética, social, que junto com os dados de amostragem compõem o quadro que mostra a situação do negro no Brasil como representação.
Literatura e afrodescendência no Brasil é uma coletânea imprescindível para o país começar a se ver como unidade cultural. Se a publicação está esgotada, outra urgência é a de uma segunda edição dessa obra importante para todos nós.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
Organizada pelos professores e pesquisadores Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca, a coleção procura recuperar os autores negros, contextualizá-los ao longo da história de nossa literatura e colocá-los na sua devida importância. No quarto volume, há o esboço de uma ensaística crítica em que alguns intelectuais e pesquisadores negros procuram teorizar essa produção.
Ainda no quarto volume, outra preocupação é a de mostrar como os afrodescendentes brasileiros são retratados na literatura, de que modo são retratados e o quanto o são, além de revelar o baixo número de escritores negros no país, principalmente romancistas.
O primeiro volume, subintitulado Precursores, traz 31 autores que atuaram entre os séculos XVIII e XX, começando com Domingos Caldas Barbosa, reconhecido artista, poeta e músico, que sabia latim e viveu em Lisboa gozando de relativa fama e prestígio, e finalizando com Carlos de Assumpção, nascido em 1927, considerado um mestre da poesia de protesto no Brasil.
Exemplo de como Assumpção pensava o conflito racial e expressava isso poeticamente são os versos de seu poema Alma branca.
Isso é discriminação
Deixe disso meu irmão
Mesmo quando me elogia
Você mostra é prevenção
Pare com isso por favor
Quem já viu a alma algum dia
Pra saber se ela tem cor?
Entre esses dois nomes, o primeiro volume vem repleto de autores importantes de nossa literatura, como Cruz e Sousa, Gonçalves Dias, Luiz Gama, Machado de Assis, João do Rio, José do Patrocínio, Lima Barreto, Solando Trindade, Abdias Nascimento e Carolina Maria de Jesus.
Esta última (que nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, e faleceu em 1977, em Parelheiros, Grande São Paulo), com apenas dois anos de estudos formais, trabalhando como empregada doméstica e catadora de papel, mantinha um diário que depois virou o livro Quarto de despejo, cuja qualidade literária a colocou na roda dos grandes escritores do começo da segunda metade do século passado.
Negação
O perfil de cada autor apresentado nos três primeiros volumes foi escrito por estudiosos profundamente engajados neste campo de pesquisa, como Marisa Lajolo, que escreveu sobre Gonçalves Dias, Marli Fantini (Machado de Assis), Vera Casa Nova, que falou sobre Domício Proença Filho, no segundo volume, e Elisângela Aparecida Lopes, sobre Júlio Emílio Braz, no terceiro volume.
Se no primeiro volume, é possível reconhecermos algumas figuras que já se cristalizaram na história de nossa produção literária, a partir do segundo, subintitulado Consolidação, junto com o terceiro, Contemporaneidade, muitos nomes de autores ainda vivos (dos 69 analisados nesses dois livros) permanecem anônimos para nós mesmos, nós afrodescendentes.
Ainda que se mantenha algum interesse sobre essa produção que diz respeito à identidade negra, o silêncio em torno desses autores é uma prova cabal do quanto os meios de comunicação negligenciam, ignoram esse lado, que é parte legítima e constitutiva da própria cultura brasileira.
A exceção de Oswaldo de Camargo – poeta, jornalista, autor de um livro importante do gênero histórico, chamado O negro escrito –, Joel Rufino dos Santos, Martinho da Vila, Muniz Sodré, Nei Lopes, Cuti, Paulo Lins, Cidinha da Silva e outros poucos nomes, os outros só são ouvidos num grupo cada vez mais restrito, porque o espaço na imprensa tradicional lhes é fechado.
Os romancistas que se identificam como afrodescendentes, criadores de personagens que trazem a marca do negro e da sua relação com a sociedade brasileira, sempre conflituosa e muitas vezes negadora do espaço e da identidade negra, esses ainda são poucos mesmo.
Mas, apesar da negação do espaço, Literatura e afrodescendência no Brasil nos mostra um grande avanço dos autores negros, no campo da poesia e de outras artes. Abdias Nascimento, que está na coletânea de autores, aparece no quarto volume, como intelectual e líder da consciência negra, para falar dessa realidade.
Produto intelectual
Falecido em 24 de maio de 2011, aos 97 anos de idade, Nascimento havia concedido a entrevista para os organizadores do livro em 2005. Nonagenário, mas sempre consciente, combatente e lúcido, ele disse nessa entrevista que os negros no Brasil, os afrodescendentes de modo geral, estamos produzindo mais e procurando ganhar esse chão negado.
“A juventude afro-brasileira está levando muito a sério a questão estética, a criatividade; ela produz ensaio, faz teatro etc. Então a gente vê que não está paralisada essa criatividade, está deslanchada e cada vez mais consciente. O mapa da criatividade da literatura afro-brasileira já está conquistando o seu espaço”, diz Nascimento.
Essa luta pelo espaço, no campo da arte e da cidadania, é legítima. Segundo Nascimento não há receita fácil, nem caminho sem pedras. O que se tem de fazer é mostrar aos outros que estamos acordados.
Perguntado sobre a importância da publicação de Literatura e afrodescendência no Brasil, Abdias Nascimento foi claro e sucinto: “só lamento que esse projeto esteja chegando tão tarde.” Segundo ele, é o tipo de ação que ajuda na conquista desse espaço que falta aos afrodescendentes, e não perde a oportunidade de dizer que não só a imprensa, mas também a universidade ignora a identidade negra como tal.
“Essa ideia é a oportunidade de mostrarmos o negro sujeito de sua própria criação literária, publicando urgentemente a produção intelectual desse segmento da sociedade. (...) Tenho feito acusações públicas terríveis à universidade brasileira exatamente pela posição que ocupa. Ela tem uma tradição eurocêntrica que vai se consolidando e funciona como o grande instrumento do racismo”, diz Nascimento, absolutamente consciente do que está dizendo.
Sua fala, nessa entrevista, no entanto, é para ressaltar a importância desse trabalho de esforço acadêmico, junto à Universidade Federal de Minas Gerais, uma das instituições públicas que mais tem investido em pesquisas sobre a identidade afro-brasileira. E arremata: “A África compõe e constrói a identidade brasileira desde a sua essência.”
Representação
Se a África compõe a identidade brasileira, essa identidade se esconde quando se trata da representação dela nas páginas dos livros. Uma pesquisa feita pela professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè, publicada neste livro, mostra a realidade dessa representação.
Ela analisou quase 400 romances brasileiros, em dois períodos de nossa história recente. Foram 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Rocco e Record, e 130 romances de autores também brasileiros publicados entre 1965 e 1979 pelas Civilização Brasileira e José Olympio.
Com essas duas análises, a pesquisadora chegou a uma série de dados sobre a produção e a representação social por meio da literatura. Segundo ela, 80% dos personagens desse período são brancos, “proporção que aumenta quando se isolam protagonistas ou narradores.” E acrescenta: “Isso sugere uma outra ausência, desta vez temática, em nossa literatura: o racismo.”
No corpo de romances publicados entre 1990 e 2004, apenas 7,9% dos personagens são negros. Quando a análise passa para cor e posição dos personagens, o disparate é bem maior, com 84,5% de protagonistas brancos e 5,8%, negros. Se se trata de narradores, o índice desce mais um pouco no escopo dos negros. Somente 2,7% dos narradores são negros, contra 86,9% de brancos.
Se, de modo geral, 80% dos personagens são brancos, e apenas 7,9% são negros, quando se trata da cor dos próprios romancistas, a realidade se afunda mais no disparate. Dos 165 autores analisados do período entre 1990 e 2004, 93,9% deles são brancos, e os não brancos, “como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%.” Segundo a pesquisadora, 3,6% não tiveram a cor identificada.
É claro que o estudo de Regina vai além dessas tipologias e analisa também a relação entre realidade e ficção, a questão estética, social, que junto com os dados de amostragem compõem o quadro que mostra a situação do negro no Brasil como representação.
Literatura e afrodescendência no Brasil é uma coletânea imprescindível para o país começar a se ver como unidade cultural. Se a publicação está esgotada, outra urgência é a de uma segunda edição dessa obra importante para todos nós.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
2 comentários:
Gostei do texto, a internet está precisando do diferencial nas postagens e vc soube faze-lo em seu blog.
Muito bom,
Abraço,
Obrigado!
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