Pensar no Egito é ver imagens de camelos, faraós, múmias, pirâmides, uma escrita estranha e rainhas chiques e antigas, como Nefertiti, como Cleópatra e tutti quanti. Ninguém se liga, talvez nem mesmo acredite que foi lá que se ouviram os primeiros gritos de carnaval, ainda como canções em volta do fogo e corpos em movimento.
A festa mais popular do Brasil, o maior espetáculo da Terra nasceu no Egito, há seis mil anos, segundo o pesquisador Hiram Araújo, em seu livro Carnaval – seis milênios de história (Gryphus, 2003, 600 páginas).
O autor perpassa o corpo histórico do carnaval desde as origens até os recentes desfiles na Marquês de Sapucaí, em que se vê o glamour abraçando o morro, entre uivos e urro de alegria e de libertação.
Pensar no carnaval como elemento libertador do corpo que se joga na folia e sorri os quatro dias de pulo é interessante, principalmente, quando se alia essa ideia ao fato de que outra figura libertadora também nasceu no Egito.
Moisés nasceu às margens do rio Nilo, sobre o qual navegou ainda bebê aprendendo os segredos das águas e se aproximando de Deus de tal forma que seria ele, o irmão de Arão, o escolhido para libertar o povo de Israel das terras dos faraós. Naqueles tempos, de priscas eras, ainda não havia Jesus Cristo, e nem consta que Moisés usou máscara para correr atrás de algum trio elétrico.
Só séculos depois, após o carnaval ser assimilado pelos gregos e pelos romanos, depois de Cristo já ter nascido e influenciado uma renque de seguidores que criaram uma nova religião, o Cristianismo, após cristãos terem sido perseguidos em Roma, depois de o Cristianismo ter se tornado a religião oficial do Império e, por sua vez, perseguir os pagãos, tentarem derrubar essa festa pagã, só depois de tudo isso, vendo que nada se podia fazer contra aquela muvuca orgíaca é que o Cristianismo resolveu assimilar o golpe duro, assear o movimento, e incluir o carnaval como festa móvel do calendário cristão.
Muito tempo depois de transes e salamaleques. Muito tempo depois de Dioniso, o deus do vinho e do entusiasmo. Dioniso, o deus do êxtase, do teatro e da loucura poética. O deus da metamorfose, como máscaras que transformam os foliões em reis e rainhas (Cleópatras?), como vozes que cantam e corpos que dançam feito seres livres. Livres só nos dias de carnaval.
Muito tempo depois de tudo isso, depois dos bailes de máscaras, após o requinte de Veneza e Paris, é que o carnaval se popularizou no Brasil. No Rio de Janeiro, nos anos 30 do século passado, o carnaval ganhou mais fôlego e se preparou para ser indústria, sob os auspícios, advinha de quem?, de Getúlio Vargas. Ele, o pai dos pobres, a mãe dos ricos. Ele, tinha de ser ele, o homem que mandou fazer festas de chicotes nas costas de Luís Carlos Prestes, aquele da Coluna, que depois viria a ser aliado de seu próprio algoz. Como no carnaval, em que a máscara encobre a real face.
Getúlio Vargas, unindo pobres e ricos em desfiles sem máscaras de agremiações recreativas, que se tornariam o mais caro, o mais fino, o mais deslumbrante espetáculo de festa popular. Popular? Sim, o carnaval é muito popular. Mas no Egito, quando nasceu, segundo Hiram Araújo, ainda era um transe modesto.
A democracia do êxtase
O carnaval nasceu como culto agrário no Egito antigo, às margens do Nilo, porque ali era terreno fértil em que se plantando tudo dava. Tudo dava depois das cheias terríveis do Nilo. As águas abaixavam e deixavam “uma espessa camada de terra negra, o húmus ou limo extremamente fértil e propício para o cultivo”, não por acaso fazendo nascer na região a primeira prática do que se chama hoje agricultura.
Para agradecer a fartura de alimentos, após dias ruins de chuvas torrenciais e alagamentos (não, não é o Rio de Janeiro ainda, nem São Paulo) dos meses de agosto e setembro, os povos da região do delta do Nilo se rendiam à deusa Ísis com danças e cânticos, ritos que se tornariam cada vez mais influentes em todos os cultos agrários ao longo do Mediterrâneo.
Segundo Araújo, com este rito inicial, o Egito pode ser considerado o primeiro centro de excelência do carnaval. “É o modelo mais simples de carnaval”, diz o pesquisador, “e consta de danças e cânticos em torno de fogueiras, logo se incorporando aos festejos, máscaras e adereços.” Em seguida, começam a aparecer orgias e libertinagens, “acepção de liberdade, culto ao corpo, ao belo humano.”
Talvez a expressão de liberdade (em outras palavras, orgia e libertinagem) mais forte no rito do carnaval tenha começado nos eventos da Grécia Antiga, que junto com Roma, segundo Araújo, se tornou o segundo centro de excelência do carnaval, o chamado carnaval pagão, que fazia arrepiar os cabelos cristãos.
Neste momento, em Atenas, a festa se ligou a Dioniso, o deus mais subversivo do Olimpo, o mais genial e orgânico, fortemente marcado pela sensibilidade corpórea, símbolo da ruptura de qualquer repressão e recalque.
Deus do vinho, Dioniso, ou Baco, também foi cultuado no campo como deus da vegetação. Foi para a cidade como elemento de libertação de um modelo moralmente repressivo. Foi levado por uma multidão de pessoas que passavam o ano inteiro sob leis e ordens e queriam um momento de alívio das tensões. Quem percebeu o fenômeno foi Pisístrato, governante de Atenas entre 605 e 527 a.C., que viu um potencial político a seu favor nas festas dionisíacas.
Pisístrato concedeu aos dionisíacos o direito de se esbaldar nas comemorações em homenagem ao deus. Nesse ambiente, a imagem de Dioniso era carregada numa embarcação com rodas, puxada por sátiros. Dentro do veículo (trio elétrico movido pela energia humana) vinham homens e mulheres nus, os bacantes, seguidos por uma multidão de mascarados, todos se sentindo livres para fazer o que quisessem.
Comemorações semelhantes também existiam em Roma com o nome de saturnálias, porque o deus homenageado lá era Saturno, que na mitologia grega equivalia a Crono, nada menos que o mais poderoso do Olimpo, pai de Zeus, que depois destronaria Crono, tornando-se o deus dos deuses. Mas em Roma, Saturno era o deus da agricultura, que pregava a igualdade entre os homens.
Como na Grécia com Dioniso, ao chegar a primavera, as pessoas saíam às ruas para saudar Saturno com “festas e um período de liberação das convenções sociais.” Durante as saturnálias, diz Araújo, “os escravos tomavam os lugares dos senhores (...) e iam comemorar a liberdade e a igualdade entre os homens.”
Nas festas de Roma, a livre expressão do corpo e da alma era de fazer inveja à manifestação carnavalesca do beijo nas ruas de Salvador. “Todos os participantes e os escravos podiam dizer verdades aos seus senhores, indo ao extremo de ridicularizá-los do jeito que bem entendessem.”
Da máscara ao samba
O terceiro centro de excelência do carnaval, segundo Araújo, foram as cidades de Paris, Nice, na França, Roma e Veneza, na Itália, onde se consagrou o carnaval cristão. Depois de perceber que não seria possível acabar com a festa, a Igreja Católica adotou a estratégia mais manjada da história, e que quase sempre dá certo: “Não pode vencer o inimigo? Junte-se a ele.” Neste caso, deu certo. Em 1545, a festa entrou para o calendário cristão sob o consentimento do Concílio de Trento.
Naquele momento, as orgias saíram das ruas, mas, claro, não acabaram. O divertido dessa história é que muita coisa continuou valendo. “Os cléricos usavam máscaras e roupas de mulheres, ou vestiam os hábitos de trás para frente, seguravam os missais invertidos, jogavam cartas [baralho], cantavam cânticos imorais e xingavam a congregação.”
Por muito tempo, os bailes de máscaras nas cidades europeias foram os mais suntuosos dos festejos carnavalescos. Mas daí apareceu uma nova organização festiva, marcada por um sincretismo de ritmo, em que a cultura negra se integra, encaixando como luva. O quarto centro de excelência do carnaval surgiu no novo mundo, onde o Brasil reina como a maior potência no gênero.
Na festa milenar foi incluído o samba, enriquecendo em ritmo e harmonia a composição das marchinhas. Mais tarde elas se transformariam em samba-enredos que, dentro das escolas de samba, fariam explodir em alegria e êxtase o maior carnaval do mundo. É a este centro de excelência que Araújo se debruça mais tempo, destrinchando todos os fios que tecem a organização carnavalesca no Brasil.
Carnaval – seis milênios de história é um livro indispensável. Pesquisadores da cultura popular, carnavalescos, compositores de samba-enredo, estudantes, leitores heterogêneos, todos encontrarão uma informação interessante sobre o comportamento humano e sua propensão às comemorações festivas e ritos que libertam, por determinado momento, das necessárias amarras morais, que permitem a convivência em sociedade. Vê-se que o carnaval é uma espécie de catarse coletiva.
Conceituado historiador do carnaval do Rio de Janeiro, o médico e escritor Hiram Araújo fez um honesto e minucioso trabalho de pesquisa para a publicação de seu livro. Exemplo de minúcia é a explicação do nome ‘carnaval’. Segundo ele, há várias versões, mas duas delas levam vantagem pela lógica. A palavra teria vindo do fato de a Quaresma, período de 40 dias até a Páscoa, suspender o consumo de carne entre os cristãos.
O Domingo de Páscoa foi intitulado dominica ad carne levandas, expressão que se abreviaria para carne levandas, carne levale, carne levamen, carneval e, finalmente, carnaval. A noite de terça-feira (mardi-grass), portanto, seria a noite do carne levandas (a última antes da proibição de se comer carne).
Uma explicação razoável, mas que se apaga diante da outra, segunda a qual, os romanos gostaram tanto da engenhoca dos gregos, em que os sátiros puxavam um carro com rodas, sugerindo que Dioniso chegava do mar, que acabaram dando à embarcação orgíaca o nome de carrum navalis.
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