Foto: Divulgação
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L’entrecôte: prato francês feito por um bistrô que virou moda no mundo das franquias (e já está em Goiânia) |
Parênteses: Escrevi esta pequena reportagem em 2010, publicada no jornal Tribuna do Planalto, em Goiânia. Mas o jornal renovou seu conteúdo online, e o texto se perdeu. Então decidi ressuscitá-lo aqui.
A única coisa que desatualizou a informação sobre o restaurante do chef André Barros, que estava prestes a ser inaugurado na ocasião. Foi de fato inaugurado, mas já fechou as portas. As ideias de Barros, no entanto, e o modo como ele vê a gastronomia continuam valendo.
O texto entra aqui pelo vínculo com a literatura, já que cito três nomes importantes para quem gosta de ler. Feita a ressalva, boa leitura!
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Quem nunca foi convidado para um almoço ou um jantar? Quem, mesmo que tenha sido na infância, não ofereceu a alguém um pedaço de pão com o intuito de fazer amizade, desfazer mal-entendidos?
A comida sempre foi um elemento poderoso nas relações sociais. Elemento essencial da vida, é uma força capaz não só de matar a fome, mas também de criar vínculos entre pessoas.
Como laço de convívio social, o alimento pode ser usado para nutrir uma amizade, mas também para desfazer vínculos, pode inclusive virar armadilha para capturar o inimigo. É tão importante na cultura anglo-saxã que a frase usada pelos ingleses para dizer que a comida não lhe caiu bem é “the food didn’t agree with me” (“a comida não concordou comigo”).
De acordo com o chef de cozinha, André Barros, a gastronomia não é privilégio dos profissionais, pelo contrário, faz parte de uma rede de sociabilidade que leva as pessoas às casas umas das outras ou aos restaurantes.
“O fechamento de um contrato de negócios, o início de um namoro, a visita à casa da namorada ou do namorado para conhecer os futuros sogros, nessas ocasiões sempre há uma boa comida para acompanhar”, diz Barros.
“Quanto melhor for o cardápio e o tempero, com maior naturalidade a conversa fluirá, mais harmônicos ficarão os ânimos, e mais positiva será a impressão entre as partes”, acrescenta o chef.
A cerimônia do alimento na cultura ocidental atravessou muitos costumes e valores até chegar aos dias de hoje. Agora concorre com um tipo de alimentação pouco agregador, que é a fast food (alimentação rápida).
A fast food prega o contrário da harmonia. As pessoas não conseguem se relacionar na hora da refeição. É rápido demais, prático, e o estômago se sacia com a mesma velocidade das conversas ralas, quando há alguém com quem conversar.
É contra esse massacre que entra o papel da gastronomia. Ela preza pelo que se chama slow food (alimentação saboreada sem pressa), que no Brasil começa a reagir sobre o avanço do pouco mastigar das comidas rápidas.
Vontade de voltar
A gastronomia “é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta”, diz Jean-Anthelme Brillat-Savarin, um juiz francês do século XVIII, que escreveu A fisiologia do gosto, livro que se tornou um clássico da área.
Brillat-Savarin era um amante da boa comida, mas também um entusiasta da amizade, da moderação e do prazer adquirido numa mesa bem-posta. Muito antes dele, no entanto, antes mesmo do nascimento da cultura ocidental, a alimentação como vínculo social já era compreendida e cultivada em várias civilizações, como na Grécia Antiga.
Segundo Junito de Souza Brandão, em seu livro Mitologia Grega (Vol. I), determinados alimentos têm um poder de fixação muito grande. Quem os come não resiste à vontade de voltar ao local onde os comeu para saboreá-los de novo.
O autor cita o mito grego de Perséfone que foi raptada por Hades, o senhor dos mortos e deus da riqueza. A pedido de sua mãe Deméter (Ceres, deusa da terra cultivada, de onde vem a palavra cereal), Perséfone teria de voltar à terra, junto aos mortais.
Hades não podia negar a solicitação de Deméter, mas não queria ficar sem ver a amada. Então pediu a ela que comesse uma semente de romã. Com isso, mesmo voltando para junto da mãe, Perséfone teria de retornar e ficar um terço do ano nas “terras brumosas do Hades”, num eterno ciclo de idas e vindas.
Segundo Brandão, o poder de fixação de certos alimentos ultrapassa o limite do simbólico, e chega aos dias de hoje ajudando a manter boa parte das relações sociais, do nascimento de novas amizades.
Brandão também cita Câmara Cascudo, estudioso da cultura popular brasileira, para dizer algo semelhante ao que já dissera da cultura grega: “Quem come e bebe certos alimentos ou líquidos não pode esquecer ou deixar de regressar aos lugares onde os consumiu.”
Na lista de comidas e bebidas que têm esse poder de fazer o apreciador regressar, diz Brandão, incluem o Cabrito assado do Cáucaso, o “Puchero” da Argentina, a “Olla podrida” da Espanha, o “Porridge” da Escócia, o Iogurte da Bulgária, o Pato de Rouen (cidade próxima a Paris), o “Coq au vin du Languedoc”, o Vatapá e o Caruru da Bahia, a Água da Fontana di Trevi, em Roma, o Açaí de Belém do Pará, entre muitos outros de tantas outras regiões.
Para o açaí, existe até uma quadrinha que reforça o poder de fixação do alimento: “Quem vai ao Pará,/ parou./ Bebeu açaí,/ ficou.”
André Barros não foi ao Pará, mas viajou para bem próximo. Foi para Manaus, local aonde retorna sempre. Segundo o chef, toda vez que viaja para lá, a trabalho ou não, vai ao restaurante preferido comer uma Caldeirada de Tambaqui.
Este, no entanto, não é o único prato que faz Barros chegar a Manaus já com água na boca. “O Tacacá e o Filé de Pirarucu com Tucupi (caldo da mandioca brava) são outros dois pratos deliciosos. Gosto muito dessa cozinha regional brasileira”, enfatiza.
Respeito pela comida
Quando o assunto é gastronomia, Barros não perde o fio da meada. Começa logo a falar de seus projetos de culinárias, de receitas e até de um restaurante que está prestes a inaugurar em Goiânia, o Malauí, nome de um país do sudeste da África, de origem banta, que quer dizer “fogo”, “chama”.
A ideia de Barros é justamente fazer em Goiânia o que, segundo ele, ainda existe pouco em termos de gastronomia, um espaço que valoriza também a arte de apreciar o convívio social.
O restaurante que está prestes a inaugurar, com área climatizada de 60 lugares, oferecerá um lounge e um ambiente para pocket shows, como jazz, blues, bossa nova, performance de DJs e stand-up comedy.
Além disso, haverá um fumoir, com seleção de charutos cubanos e nacionais, e uma pequena butique gastronômica na recepção. Dentro desse projeto, Barros quer dar continuidade àquilo que já sabe fazer muito bem, comida que desperte nas pessoas a vontade de voltar para comer mais.
Trabalhando atualmente no restaurante do Country Clube, o Bobó de Camarão que ele faz lá é muito apreciado. É um bobó mais encorpado, com lascas de coco fresco e castanha do Pará.
“Há pessoas que acompanham o boletim do clube e vão lá pelo menos uma vez por mês. E se têm uma visita aqui em Goiânia, levam para conhecer essa releitura que fiz do bobó”, comenta Barros, orgulhoso.
Orgulho maior, ele sentiu quando o empresário carioca Max Araújo veio do Rio de Janeiro para fechar sociedade com ele na abertura do Malauí. Araújo é o investidor no negócio de mais de R$ 1 milhão.
Araújo também é um grande connoisseur de gastronomia, tendo possuído restaurantes bem frequentados no Rio de Janeiro, além de já ter viajado para muitos países. Por onde passa, traz uma história de vínculo social proporcionado pela gastronomia.
Araújo e Barros, portanto, comungam os mesmos ideais. Ambos mantêm um profundo respeito pela comida, acham inclusive que ela tem sentimento, na medida em que é feita com amor, envolta a afetividades, elementos que acabam sendo transmitidos junto com os ingredientes à pessoa que vai comer.
O caso mais ilustrativo dessa história de vínculos por meio da comida é a própria visita de Araújo a Goiânia, quando Barros ofereceu um jantar para receber o sócio. Araújo aproveitou a ocasião para convidar as pessoas que ele gostaria de agradecer e de conhecer melhor. “O resultado foi uma reunião de conversas agradáveis”, diz.
Ecos agradáveis
A experiência internacional dos dois também dá boas histórias de sociabilidade construída em torno de um bom prato, que também reforça a mística da fixação. Neste caso, Araújo cita um pequeno restaurante (bistrô) chamado L’entrecôte, em Paris (vale abrir um parêntese aqui para explicar que no fim de 2009, já estava chegando ao Brasil uma franquia desse bistrô, e atualmente, em pleno 2020, há uma rede gigantesca dele espalhada pelo país, que seguiu o exemplo do mundo inteiro; mas Araújo estava se referindo era mesmo à matriz, em Paris).
As pessoas ficam duas horas numa fila, muito bem organizada e plena de atenção, no L’entrecôte, para comer filés em tiras, acompanhados de um molho (cuja receita é mantida em segredo) e batatas fritas em caracol. “Sempre que vou a Paris me sinto atraído pelo restaurante, para comer aquele prato”, diz.
Um dos diferenciais do “L’entrecôte, diz Araújo, é o atendimento feito pelas duas chefes, que vão de mesa em mesa conversar com cada um dos clientes. “Elas são impressionantes. Têm um bom papo e são atenciosas. Por isso, já vi gente do mundo inteiro lá. Vão para comer, mas também para fazer amizade, conversar. Ou seja, a comida é o poder desse local”, comenta.
As histórias de Barros e Araújo são tantas e tão variadas, com cheiros, sabores e ambientações diversificados que, para quem escuta, ficam como ecos agradáveis na memória. Eles reforçam que o Malauí, com previsão de ser inaugurado no começo de dezembro (2010), terá espaço para todas essas delícias que giram em torno da gastronomia.
O Brasil tem uma afabilidade natural, e a comida faz parte dela. A feijoada e o churrasco, por exemplo, são manifestações populares de reuniões gastronômicas. Quem se propõe a conhecer o país e não se interessar por esses dois grandes pratos não chegará a tocar na essência do brasileiro.
Por ouro lado, numa descrição mais sofisticada da gastronomia, um de seus elementos é a moderação, conforme lembra Barros. “Comer, sim, se empanturrar, não”, diz. Segundo o chef, em termos de variedade gastronômica, o Brasil ainda precisa aprender muito. Já em termos de ingredientes, é um dos mais ricos do mundo.
O que falta é a exploração dessa riqueza. “Mas isso está melhorando. Hoje em dia, há pessoas que viajam atrás de comida, os chamados fooders, que vão a festivais conhecer a comida de um chef, tomar um vinho diferente. São pessoas que vão à feira, pesquisam ingredientes, conversam umas com as outras, descobrindo o país. Neste sentido, estamos vivendo um boom enograstronômico”, diz Barros.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 20/06/2010)
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