Foto: Zeca Fonseca/Divulgação |
Rubem Fonseca (1925-2020): suas palavras permanecerão vivas por muito tempo, vivas e pulsantes na memória do leitor |
O carnaval é o período da mistura de cores, da mescla de máscaras e almas que constroem a tessitura dramática de todos os contos e romances de Rubem Fonseca, e que tece de igual modo o imaginário social do Brasil.
A literatura de Fonseca vem marcada pela insígnia do carnaval desde o começo. Não por acaso, o primeiro conto de Os prisioneiros, seu primeiro livro, de 1963, tem como título Fevereiro ou março.
De condessas a prostitutas, de punguistas a executivos, analfabetos e poliglotas, loucos e médicos, polícia e bandido, gente do morro e moradores solenes do Leblon e Copacabana desfilam em toda sua obra como quem passeia em carros alegóricos.
Neste pequeno texto, discorrerei sobre algumas questões da literatura fonsequiana produzida nas décadas de 1960 e 70. Com uma variação ou outra, é ela que dará o tom nas décadas seguintes até o fim. E para fazê-lo, nada melhor do que a imagética do carnaval e sua verve de misturas.
Em um dos contos de Lúcia McCartney, a terceira coletânea do autor, de 1969, o narrador diz que num baile de carnaval era “tudo misturado, puta, mãe de família, donzela, artista, estudante, ratazana de praia, filha da mamãe, comerciária, vedete, grã-fina, manicure. Mas o que tinha mais mesmo era puta. Tava assim de puta.”
Sua estética é isso, passa pela pluralidade. Mineiro de Juiz de Fora, radicado no Rio, Rubem Fonseca morreu no dia 15 de abril de 2020, aos 94 anos. Mas antes de partir, ao longo da vida criativa, construiu um legado estético muito importante para a literatura brasileira.
Autor de 32 livros, entre contos, romances e um de ensaios, Fonseca produziu uma obra que sai das entranhas cariocas para expressar o espectro social brasileiro. Seus contos respiram as mazelas e a festa.
Estética do acúmulo
Tudo na literatura de Fonseca aparece como jorro, por acúmulo. As citações, por exemplo, estão em todos os livros desde o começo, e surgem como erva daninha em terra fértil. Uma das funções é a ironia. “Todo mundo só sabe nomes e datas, e epígrafes”, diz um dos personagens (A opção, in: A coleira do cão).
Esse tipo de ironia chegou ao ponto máximo quando, no romance Buffalo & Spalanzani, o narrador cita Rubem Fonseca (narrativa narcisista). Os principais personagens são leitores contumazes ou mesmo escritores.
“Ermê olhou as estantes cheias de livros” (Nau Catrineta, in: Feliz ano novo). “Acordado a noite toda. Livro aberto em cima do peito” (Zoom, in: Lucia McCartney). “Via televisão, lia, dormia” (O outro, in: Feliz ano novo).
Se catássemos as citações de autores e títulos ao longo de contos e romances, ergueríamos uma biblioteca inteira. Há algo de estético nisso. Em alguns contos, os livros giram nos ambientes da história como circulariam ingredientes de um apetitoso prato numa cozinha - causando efeitos estimulantes nos leitores.
No conto A matéria do sonho (conto incrível e merecedor de atenção pela atualidade de sua proposta estética, pela intrigante relação entre homem, tecnologia e desejo), o narrador cita uma lista com mais de 100 livros.
Há também alguma coisa de exibicionismo nisso, por um lado, e de generosidade, por outro. Há algo de sugestivo, como se dissesse ‘hei!, leia esses livros aí pra ver se fica mais culto, mais educado, mais inteligente, mais interessante, com mais repertório, com mais conteúdo, com mais possibilidades de aprender alguma coisa para além da organicidade que emana de minhas narrativas.’
E, ao mesmo tempo, todo esse fluxo de citações é uma transfiguração da afetação da classe média. Neste caso, não só livros, mas o hábito de falar frases ou trechos de frases em inglês aparecem como efeito de comicidade e do ridículo.
Técnica inovadora
Quando surgiu na década de 1960, Rubem Fonseca foi considerado um renovador da prosa brasileira. Chamou a atenção da crítica pelo experimentalismo, misturando linguagem de cinema e de teatro aos procedimentos literários e uma profunda relação com o vocabulário do senso comum.
Os críticos chamaram isso de técnica inovadora. Fábio Lucas, em resenha da época, disse que a literatura de Fonseca inovava porque trazia expressões feitas “por meio de elipses, criando novos signos, organizando uma semiologia própria” - segundo cita Sergio Augusto, por ocasião do relançamento da obra completa do autor pela Editora Agir (que Augusto organizou, em 2009).
Fonseca imprimiu com precisão cenas do cotidiano, abertas, que apenas sugerem múltiplos desfechos, como se o leitor acabasse de chegar a um local onde alguma coisa estivesse acontecendo e saísse de lá antes do fim, só ficando com o “como estava acontecendo” pulsando na memória recente.
Mesmo lendo agora, o leitor pode sentir a mesma sensação. A técnica não envelheceu. As tramas são feitas numa naturalidade que plasma a violência, os desejos e a indiferença social. E a forma continua inteira, atualíssima.
Como autor, Fonseca nasceu tarde, mas já nasceu maduro. Os prisioneiros (1963) foi publicado quando ele tinha 38 anos. A crítica chamou o livro de primor.
As narrativas são concisas, cuja economia de movimento pode ser descrita tal como fez o advogado Mandrake, no conto Dia dos namorados, em Feliz Ano Novo (1975), quando diz: “(Sou) Mandrake, uma pessoa que não reza, e fala pouco, mas faz os gestos necessários.”
(É bom lembrar que Mandrake viria a aparecer em três romances, A grande arte, de 1983, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, de 1997, e o homônimo Mandrake, de 2005, além de em vários contos, mas sua primeira aparição fora em 1969, no conto O caso de FA, do livro Lúcia McCartney.)
Os finais ficam em aberto, com uma surpreendente atualidade e relevância, muitas vezes desenhando situações que viveríamos hoje com mais intensidade. O leitor fica meio que preso no suspense da trama cujo desfecho se realiza sempre na contramão da expectativa (anticlímax).
“A realidade do sr. Ruben Fonseca é inquietante, ou, pelo menos, ele sabe mostrar o que existe de inquietador sob as aparências exteriores da realidade”, diz Wilson Martins, em resenha publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 1° de fevereiro de 1964.
Apalpando a vida
Em A coleira do cão, seu segundo livro, de 1965, o primeiro conto, A força humana, exibe o momento exato em que o sujeito, ao se entregar à força do mundo, é invadido pelas sensações vitais, pela agonia da existência, pela dor de se perceber nesse mundo.
É como se trocasse sopapos com a realidade das coisas, numa tomada de consciência de que viver era mais do que a sensação física da existência, era uma angústia também. Essa angústia varria o cotidiano e tomava as pessoas de sobressalto. Ele estava sendo tomado por ela agora. Ele estava se descobrindo vivo, humano.
Ali, Fonseca demonstra um poder de síntese impressionante. Os contos trazem para o leitor de 2020 informação de um passado semilongínquo, da segunda metade do século XX, quando as mulheres ainda lutavam por direitos básicos. Mas também encerra um efeito estético admirável.
A narrativa nos fornece uma sensação de desconforto com o mundo, uma inquietação sensível, uma espécie de choque do eu com a realidade vivida, um conflito que é mais existencial do que social, embora aponte as relações sociais como parte fundadora do drama.
O conto O gravador demonstra com destreza a origem desse conflito. Expõe a relação do homem com a tecnologia, com a violência, com o amor, com a virtualidade.
Nesse conto, uma mulher muda completamente sua postura diante da vida ao travar relação pelo telefone com um sujeito que ela não conhece. É como se ela transferisse sua imaginação para uma relação paralela, que tampouco deixa de ser imaginativa.
No conto O grande e o pequeno, uma atmosfera comum é exposta em primeiro plano para dali, do subterrâneo das emoções, saírem os sentimentos, as sensações, a pulsação da vida em suas manifestações mais comezinhas, mas tão fortes, tão doloridas, tão presentes.
Nesta obra-prima de Fonseca, A coleira do cão, tudo aparece com clareza na mesma proporção que vem em poucas palavras. Tudo, o ambiente de sol, a praia e a noite cariocas, os bairros de classe média da década de 1960, o conflito familiar, as relações amorosas, o sexo, a violência, o dinheiro, tudo.
Os contos trazem narrativas marcadas pela angústia existencial, com personagens apalpando a vida para ver o que é, sem saber direito como viver, enganchados em alguma coisa, incomodados.
Mas o último conto, que traz o título do livro inteiro, A coleira do cão, é diferente dos demais. A angústia existencial está dispersa, em meio à tensão entre polícia e bandido. Tudo fica muito físico.
O conto trata dos assassinatos no morro e da investigação policial. Talvez aí, Fonseca comece a se tornar mais autor de literatura policial de fato. A coleira do cão mostra a rotina de uma investigação, mostra como são os ladrões e a corrupção da polícia e dos repórteres que cobrem essa área.
O morro aparece em A coleira do cão. A cor do morro é preta. Mas o morro se desvela na contramão do delegado que gosta de poesia e tem aversão a pobreza e tortura.
Barbárie e humanidade
O Rio de Janeiro que serve “de moldura ao eclético elenco de desajustados urbanos” nos primórdios da literatura de Rubem Fonseca, como diz Sérgio Augusto em 2009, é “um Rio de Janeiro violento, sensualista, socialmente injusto, mas ainda sem favelas dominadas pelo tráfico de drogas — só por bicheiros que no máximo se protegiam com uma pistola 45mm.”
Quando A coleira do cão foi lançado, Boris Schnaiderman ficou extasiado com a verve de “barbárie e humanidade” dos contos. Hoje, ao lermos, isso ainda nos inquieta de certa maneira, mas esse sentimento em especial foi superado pela realidade brutal dos noticiários e das narrativas policiais atuais, tanto no cinema quanto na literatura, inclusive a literatura posterior do próprio Rubem Fonseca.
Mas, nesta coletânea, o conto A força humana ainda continua intacto em sua capacidade de sugar o estranhamento da vida a partir da invisibilidade. Continua capaz de nos envolver sutilmente com esse estranhamento, como se nos envenenasse.
Na ocasião, Wilson Martins, escrevendo para O Estado de S. Paulo, vaticinou, segundo cita Sérgio Augusto: “(A força humana) não é apenas um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos; é, também, um dos melhores contos da literatura universal.” E até hoje esta observação de Martins ainda vale.
Em 2002, o professor e crítico literário Italo Moriconi selecionou algumas narrativas de Fonseca para a coletânea Os 100 melhores contos brasileiros. O primeiro deles foi A força humana. Isso demonstra a importância deste conto e sua força na história da contística brasileira.
Chutando a porta
Os primeiros livros de Fonseca não esgotam toda a criatividade do autor, mas expressam o que há de mais inovador em sua linguagem e no seu conteúdo. Depois disso, vieram os romances e mais contos.
Depois disso, veio muita sofisticação narrativa, mas vieram também as repetições. Muito das tramas de seus romances é uma releitura ou recuperação de ideias e personagens já existentes na série de contos desses livros primeiros.
Após lançar três coletâneas de contos (Os prisioneiros, A coleira do cão e Lúcia McCartney), Fonseca publicou seu primeiro romance, O caso Morel, em 1973. Em 1975, veio a público seu quinto livro, Feliz Ano Novo, o quarto de contos, que chegou chutando a porta da cozinha literária brasileira.
Feliz Ano Novo tem um tom de janeiro, no sentido de apresentar duas faces, olhando para o tempo que passou, por meio do estilo, e apontando para o que seria Fonseca no futuro, suas tramas, seus personagens, sempre ecoando de certo modo – com sofisticação e alguma novidade – o que já fizera.
Como já era marca do autor, os personagens de Feliz Ano Novo aparecem num ambiente aberto de possibilidades. Na maioria dos contos, estão “sem saber para onde ir”. É o que ocorre, por exemplo, em Abril, no Rio, em 1970.
Neste conto, um rapaz de 18 anos, contínuo numa empresa, tenta a carreira de jogador de futebol nos finais de semana. Ele espera alcançar o sucesso, sonha jogar um dia no time do Madureira, e assim alcançar a seleção brasileira. Mas, por enquanto, ele está mesmo é num time de várzea. Joga e perde. Sente-se um perdedor.
O conto Feliz ano novo, que estampa o título do livro, já não impressiona; a violência expressa nele está todos os dias nos jornais, na televisão, na internet. Mas na época de lançamento foi a maior sensação.
Em compensação, Passeio noturno (Parte I e Parte II) se mantém intacto em sua proposta narrativa. Nele, um homem de classe média desconectado da vida, ligado às máquinas e ao mundo dos negócios, combate seu tédio em escapadelas noturnas para, incógnito, atropelar alguém com seu Jaguar preto.
O tema, psicopata que age na calada da noite, não é o mais interessante, no entanto. A técnica, a economia dos gestos, a combinação de movimentos, como dinâmicos frames de cinema, é que mantêm a tensão e a beleza dessa narrativa.
Está lá um homem encalacrado na cidade, absolutamente violento e frio, narrador de suas experiências, de ficha limpa e bem-sucedido na sociedade, com mulher e um casal de filhos já adultos que não trabalham, um predador urbano que age com classe e anonimato na imensidão noturna da cidade grande.
A violência aparece de modo brutal nas duas partes do conto, brutal por causa das mortes e porque a cidade não se importa. A cidade não está nem aí. A tese do conto é a de que o cérebro pode ser uma máquina assassina, capaz de ficar à espreita da oportunidade criminosa.
A mesma tese aparece em Dia dos namorados, conto interessante na problematização dos personagens e no modo de narrar, bicameral. Um banqueiro está dirigindo pela Avenida Atlântica e vê uma moça linda andando pela calçada.
O banqueiro oferece carona. A moça aceita, diz que tem 16 anos. Ele a leva para uma suíte presidencial de um hotel. Lá, o banqueiro descobre que ela é ele, e tenta se livrar do problema, mas o garoto saca uma lâmina e começa a se cortar dizendo “eu sempre quis morrer destruindo um poderoso, como no filme A viúva negra!”
E aí, a jovem travesti põe a lâmina na própria carótida, ameaçando se matar com um corte na garganta. O banqueiro liga para Mandrake, seu advogado, para resolver o caso.
É Mandrake que narra a história – costurando os movimentos dele e do banqueiro – em dupla perspectiva, mostrando o que ocorria com ele, Mandrake, no momento do encontro do banqueiro com a jovem travesti. O desfecho pouco importa. A vertigem da narrativa é o que mais interessa neste conto.
O conto O pedido também está intacto em sua proposta estética. Não é uma narrativa inovadora, mas o sentimento pulsante em seu interior permanece atual. É a história de uma amizade desfeita por razões emocionais completamente idiotas entre dois imigrantes portugueses que vieram juntos de Portugal ainda criança, e sobre a miséria material de um que reflete a miséria afetiva do outro.
Já Agruras de um jovem escritor é a gênese dos personagens masculinos que matam mulheres nos contos e romances de Fonseca, como em Búfalo e Spalanzanni e Diário de um fescenino.
Outra história que também tem citações genéticas do romance Diário de um fescenino é Nau Catrineta, um incrível conto de canibalismo. “As minhas tias cuidaram de mim desde que nasci. Minha mãe morreu de parto, e meu pai, primo-irmão de minha mãe, suicidou-se um mês depois”, diz José, o narrador de Nau Catrineta.
Em Diário de um fescenino, Rufus, o narrador, diz que sua mãe morreu ao lhe dar à luz e que seu pai morreu de enfarte, quando Rufus ainda era bebê. Uma professora aposentada, sua vizinha, o levou para morar com ela.
A vizinha “tinha três irmãs, e todas, além de velhas, eram muito doentes, creio que tinham uma forma grave de diabetes. Cuidavam de mim com desvelo, era como se eu tivesse quatro mães”, lembra Rufus.
Como o narrador de Diário de um fescenino, José, de Nau Catrineta, mata a amante. A diferença é que este confessa o que fez, mata por motivos antropofágicos, enquanto Rufus não confessa nada abertamente.
No conto Intestino grosso, há uma passagem que também se repete em Diário de um fescenino:
“Quantos livros você tem aqui nesta sala?”
“Cerca de cinco mil.”
“Você já leu todos?”
“Quase.”
“Você lê diariamente? Quantos? Qual a velocidade?”
“Leio no mínimo um livro por dia. Minha velocidade, hoje, é de cem páginas por hora. Já li mais rápido.”
Em Diário de um fescenino, Rufus diz: “Respondi que não gostava de estudar, mas de ler e de escrever, e ela me perguntou o que eu havia lido, e eu disse que ia ter que ficar falando o dia inteiro, pois lia um livro por dia desde que tinha dez anos.”
Na literatura de Rubem Fonseca, tudo se permeia. É como um carnaval, dialogando em metáforas com comida, tiros, livros, filmes, cores, questões sociais de raça e de classe, força física e nuanças intelectuais, além do amor e a violência atravessando filtros morais, chegando à permissividade do sexo e das trocas de sensações.
Vários de seus romances se tornaram filmes e seriados, como A grande arte, Agosto, Mandrake, Bufo & Spallanzani, além de contos. Seu último livro publicado é a coletânea de contos Carne crua, de 2018.
A característica marcante de sua técnica narrativa é o que os teóricos chamam de “showing” (mostrar), que difere da técnica “telling” (dizer) por essa capacidade de conduzir o leitor pelas imagens vivas de suas palavras. E vivas elas permanecerão por muito tempo, vivas e pulsantes na memória do leitor.