Emile Durkheim (1858-1917) era filósofo, mas ninguém dava bola para sua filosofia. Ele então decidiu criar um novo brinquedinho epistemológico, a sociologia (embora o termo tenha sido cunhado por Auguste Comte). E se deu muito bem.
Algo parecido aconteceu com Pierre Bourdieu. Ele não criou uma ciência nova, mas revolucionou a sociologia, desenvolvendo conceitos como a teoria do campo, depois de cursar filosofia e perceber que este campo específico já estava ocupado por Sartre, uma espécie de latifundiário do pensamento filosófico de um luminoso período do século XX, sobretudo dos anos 1940 até sua morte em 1980.
Depois da trinca Karl Marx, Durkheim e Max Weber, Bourdieu é o maior pensador da sociedade, e se destaca como ferramenta necessária para se estudar a contemporaneidade. Mas Bourdieu tem um modo de se debruçar sobre o mundo muito complexo.
É comum o leitor patinar sobre as páginas de seus livros, ler, ler, acompanhar as imagens criadas e sentir que está faltando alguma coisa, não no corpo teórico, mas no entendimento de quem lê. Isso porque ele não é de explicar muito os conceitos. Vai falando, falando, falando, e o leitor precisa acompanhar seu raciocínio denso e longo, em parágrafos espichados que não acabam mais.
Obviamente, há diversas maneiras de se contornar o problema. O leitor pode fincar o pé, e só sair depois de diversas leituras, com uma compreensão na cabeça. Mas há também muitos diluidores à disposição. Um deles é o livro organizado por Michael Grenfell (professor e conferencista inglês, especialista em estudos franceses), intitulado Pierre Bourdieu - conceitos fundamentais (Vozes, 2018, 394 páginas, tradução de Fábio Ribeiro), que traz vários estudiosos da obra bourdieusiana para explicá-la.
Pierre Bourdieu - conceitos fundamentais é interessante porque dá uma mastigada boa no repasto teórico de Bourdieu. Dividido em cinco partes, o livro começa com “Biografia, teoria e prática”, espécie de introdução ao universo bourdieusiano, em que sua vida é confrontada com seu método de pesquisa, que procura justamente descobrir a intenção por trás do ato.
Ou seja, para Bourdieu, não existe ato desinteressado, e se o pensamento é um fato social, logo, tudo que se pensa tem um interesse por trás. Tudo que se vive, tudo que se sente, experimenta, alegrias e tristezas, tem um fundamento social.
Como o próprio sociólogo também pensa para fazer sua pesquisa, ele de igual modo entra no rol da produção de interesses. “Seu trabalho era uma espécie de ‘autossocioanálise’”, diz Grenfell, na introdução dessa primeira parte.
O homem
Bourdieu nasceu em 1930 na vila de Denguin, numa região tão afastada dos grandes centros franceses a ponto de a língua da família nem ser francês, e sim um dialeto chamado gascão. Seus pais estudaram pouco. O pai era meeiro, e mais tarde se tornou funcionário público dos correios.
Bourdieu tinha apetite intelectual. Foi galgando os degraus da educação com competência até chegar à École Normale Supérieure, em Paris, formadora da elite francesa, onde se graduou em filosofia, tendo como colega nomes que também se tornariam importantes, como Jacques Derrida.
No período que ficou na Argélia, servindo o exército francês em tarefas burocráticas, ele transferiu seu interesse para os estudos sociais, e iniciou a carreira como sociólogo. Tornou-se assistente de Raymond Aron, em Paris, em 1960, depois professor na Universidade de Lille (1961-1964), e, posteriormente, diretor de Estudos na École Pratique des Hautes Études (“precursora da École des Hautes Études en Sciences Sociales”), em Paris, de novo.
Em 1981, Bourdieu atingiu seu máximo posto acadêmico, sendo eleito catedrático de Sociologia no Collège de France. A essa altura, já era um autor conhecido, com livros como A distinção - crítica social do julgamento, de 1979, e O amor pela arte (1966). Seu primeiro livro foi Os herdeiros, publicado em 1964.
Dos anos de 1980 para cá, seu prestígio só cresceu, fazendo dele um dos maiores pensadores sociais de nosso tempo, autor de clássicos como A miséria do mundo, A economia das trocas simbólicas, Coisas ditas, O poder simbólico, Meditações pascalianas, Razões práticas - sobre a teoria da ação, A dominação masculina - a condição feminina e a violência simbólica etc.. Morreu em 2002.
Dos anos de 1980 para cá, seu prestígio só cresceu, fazendo dele um dos maiores pensadores sociais de nosso tempo, autor de clássicos como A miséria do mundo, A economia das trocas simbólicas, Coisas ditas, O poder simbólico, Meditações pascalianas, Razões práticas - sobre a teoria da ação, A dominação masculina - a condição feminina e a violência simbólica etc.. Morreu em 2002.
A teoria
Segundo Grenfell, “o que preocupava Bourdieu era uma missão de explicar as práticas sociais, políticas e culturais ao seu redor.” A função de sua sociologia é devolver aos homens “‘o sentido de seus atos’, relacionados a um pano de fundo de eventos sociais e históricos.”
Para tanto, ao mesmo tempo que criava conceitos aos moldes da filosofia, fincava seus estudos no chão mais profundo das pesquisas sociais, sintetizando o pensamento sociológico da trinca fundamental da sociologia, Marx, Weber e Durkheim.
O diferencial de sua sociologia, no entanto, é que Bourdieu criou uma ferramenta capaz de olhar para a própria sociologia com distanciamento crítico, pensando, por exemplo, Marx contra Marx, Weber contra Weber e Durkheim contra Durkheim, “para chegar a uma ‘terceira via realista’”, uma via epistemológica que “reinstaurou uma filosofia da ação marxista, livre da retórica política do século XX e da propaganda ideológica do comunismo com a qual muitos intelectuais conspiraram.”
Ou seja, só a sociologia é capaz de descobrir o que há por trás dos fatos sociais, não importa onde eles estejam, se na política, na arte, na academia etc.. Se pensamento é ação (fato social), só a sociologia é capaz de descobrir o que está por trás de qualquer pensamento, incluindo o filosófico e o sociológico.
Por isso mesmo, Bourdieu foi estruturando sua sociologia em conceitos vigorosos como o de campo e habitus, suas duas principais ferramentas, segundo Grenfell. A segunda parte deste livro, intitulada “Teoria do campo - para além da subjetividade e da objetividade”, enfatiza esses dois conceitos, um interpenetrando no outro, caminhando inseparáveis na jornada da interpretação dos fatos sociais.
Quem fala sobre habitus é Karl Maton, e sobre campo, Patricia Thomson. Segundo Maton, o habitus é um componente subjetivo que resulta da experiência do indivíduo, desde o nascimento até a morte, dentro das relações sociais. Ou seja, nossa vida prática, o modo como vivemos, não é fruto de ações livres, por mais conscientes que venhamos a ser já adultos, mas das decisões cotidianas “em pressuposições sobre o caráter, comportamento e atitudes previsíveis de outras pessoas.”
Por isso, diz Maton, “os filhos da classe operária tendem a obter empregos da classe operária, leitores de classe média tendem a apreciar literatura de nível intelectual médio”, e assim por diante, tudo mais ou menos estruturado pelo habitus.
Aquilo que fazemos com naturalidade, e que julgamos ser natural, é habitus, e de natural não tem absolutamente nada. Nem o tesão que sentimos, nem o sentimento de perda, nem as tristezas, muito menos as alegrias.
Aquilo que fazemos com naturalidade, e que julgamos ser natural, é habitus, e de natural não tem absolutamente nada. Nem o tesão que sentimos, nem o sentimento de perda, nem as tristezas, muito menos as alegrias.
Mas, ao mesmo tempo em que o habitus estrutura os atos sociais do indivíduo, ele é estruturado pelo campo social dentro do qual o indivíduo atua junto com outros indivíduos. Eis uma das complexidades de compreensão desse conceito.
O habitus é, portanto, o que Bourdieu chama de elemento estruturante e estruturado do campo social (o raio de atuação da vida social do operário, por exemplo, seria um campo; mas os campos também estão nas divisões do trabalho e das práticas sociais, como o campo jurídico, o campo acadêmico, o campo político etc.).
Espaço de disputa
Ler Pierre Bourdieu - conceitos fundamentais está longe de isentar qualquer um - que esteja interessado em avançar no estudo da sociologia - da leitura dos livros de Bourdieu, mas vai ajudá-lo a se manter de pé na caminhada pedregosa que é compreender os conceitos sociológicos do autor.
Já Patricia Thomson aborda a questão do campo sob diversas perspectivas para clarear as nuanças do significado do conceito na perspectiva sociológica de Bourdieu. Ela monta a metáfora do campo de futebol, do campo de força da ficção científica, do campo de força da física, e com isso demonstra bem que o campo é um espaço de disputa de forças moldado pelas condições específicas do próprio campo.
Mas se o leitor vislumbrar o campo como um espaço social em que a sociedade se movimenta com suas peças, a saber, os indivíduos, que fazem trocas simbólicas e disputam influências, já conseguiu captar o grosso do sentido. Agora é só afinar os instrumentos para manejar os significados relacionais entre campo e habitus, porque um não pode ser conferido sem o outro.
O habitus está no indivíduo, moldando-o na sua relação com o campo, e o campo é o social. O indivíduo está no campo, e é só no campo que ele se faz como indivíduo. Por isso mesmo, “o habitus é o social incorporado.” Habitus e campo são duas estruturas autônomas, mas “uma ajuda a moldar a outra.”
Como já falei, o campo pode ser o campo social, em que a sociedade inteira está em jogo, o ápice da complexidade, mas também pode ser um recorte social, como o campo acadêmico, o campo político, o campo jurídico, o campo jornalístico, o campo literário, e assim por diante.
Capital
Outro conceito fundamental que se junta a estes dois é o de capital, que é estudado na parte III do livro, intitulada “Mecanismos de campo”. O capital é a aquisição do indivíduo nas disputas do campo, e varia de acordo com o campo.
Bourdieu apontou quatro tipos de capital: “econômico (dinheiro e bens); cultural (formas de conhecimento; preferências de gosto, estéticas e culturais; linguagem, narrativa e voz); social (afiliações e redes, herança familiar, religiosa e cultural); e simbólico (coisas que representam todas as outras formas de capital e podem ser ‘trocadas’ em outros campos).”
Neste sentido de capital simbólico, há um amplo espectro de denominações. Se o campo é político, o capital que se consegue é político; se o campo é acadêmico, o capital é acadêmico; se o campo é literário, o capital é literário.
Pierre Bourdieu - conceitos fundamentais pode ser explorado de várias maneiras. Pode ser lido antes de se enfrentar a obra de Bourdieu, ou ao mesmo tempo, para ir-se diluindo a árdua tarefa de compreender esses conceitos, difíceis de se explicarem. Mesmo este manual, é preciso ler com cuidado, devagar, observando os exemplos, pensando, questionando, dialogando, ora com os diluidores, ora com a própria obra do sociólogo.