Marco Lucchesi, poeta e tradutor, professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, lançou recentemente em Goiânia a tradução do livro Moradas
(Martelo Casa Editorial, 2017, 88 páginas), de Angelus Silesius, poeta
germânico do século XVII, disseminador da mística cristã. Publiquei uma resenha
no caderno de Cultura do Jornal Opção, que edito, mas trago para este espaço
mais um pouco dessa apreciação.
A poesia há muito tempo vem ocupando o lugar da resistência. Aliás, a
literatura como um todo. No caso da mística cristã, trata-se de um front
especial porque é ainda mais complexo, por ser um texto difícil, falando da
relação entre o terreno e o espiritual por metáforas deslizantes, mas ainda
assim, ainda hoje, talvez por isso, por ser hoje, são versos interessantes.
São poemas curtinhos, com dois versos, conhecidos como dísticos, mas de
uma densidade digna do esforço que se faz para compreendê-los. Lucchesi não só
traduz os dísticos de Silesius como também trava um diálogo com o leitor por
meio de dois textos, um antes dos poemas, “Uma Palavra”, à guisa de explicação
das traduções, e outro, ao modo dos posfácios, mas escrito em sua época alemã,
posto após os dísticos, “Com Silesius na Catedral”.
Em ambos, Lucchesi se refere aos haicais, gênero poético criado pelo
japonês Matsu Bashô, caracterizado pelo rigor formal de 17 sílabas em três
versos, sendo que os extremos são feitos com cinco sílabas e o do meio com
sete, com a condição imperativa de se referir a uma das quatro estações do ano,
estas, servindo como uma espécie de lado de fora do poema, a exterioridade do
mundo, porque quase sempre a natureza do que se fala é interior, o que ocorre
de fato no significado real do poema é o estado d´alma.
E aí, as duas formas, os dísticos místicos de Silesius, e os trísticos
metafóricos de Bashô, se comunicam. A tradução foi feita em meados da década de
1990, quando Lucchesi estava na Alemanha, estudando filosofia. “Os versos de
Silesius me aqueciam, como fósforos na madrugada, como frágeis salva-vidas”,
diz Lucchesi no primeiro texto. Nessa mesma época, ele também era atraído pela
concisão dos haicais. “Silesius e Bashô me acompanham neste território de
pedra, em que tudo se concentra e se dispersa”, diz ele no segundo texto.
O diálogo entre as duas formas é interessante porque ambos conferem à
poesia uma busca pela interioridade da vida, seja a fé ou a integração à
natureza, uma espécie de diluição, de revelação da espiritualidade.
Cartografia das lutas internas
Quando Lucchesi
esteve em Goiânia para divulgar o livro, ele disse que os dísticos são uma
brevidade desconcertante, mas explosiva, com camadas de reflexões sobre a
mística. “É uma espécie de vade-mécum espiritual, um atlas, uma pequena
cartografia das grandes lutas internas, que a viagem mística é obrigada a
enfrentar”, disse.
Em muitos dísticos, a comparação com o mineral, sendo o homem um corpo
organizado no reino animal, e as metáforas do carbono, ao mesmo tempo que nos
lembram o que somos, e o que sempre seremos se não houver a busca pela
espiritualidade, também nos liga a uma força ancestral, quando existe esse laço
entre homem e Deus. Como vemos em:
“Um homem virtuoso é como a pedra:
Desaba a tempestade, ele não quebra”
ou
“Homem, és um carvão e Deus é fogo e chama:
Escuro e tenebroso, se ele não te inflama.”
Por serem versos rápidos, além do significado da palavra, exige-se também
a interpretação do silêncio, entre um dístico e outro. “É uma mística extremamente
breve, mas nessa brevidade é como se ela rompesse com uma pequena centelha que
rompe o silêncio e volta ao próprio silêncio de onde ela se originou”, lembra
Lucchesi.
Neste caso, o poeta
acessa um reino edificante, e ao leitor cabe uma aproximação dessa experiência,
pois “toda a vivência da experiência mística é sempre transformadora e
revolucionária.” Segundo Lucchesi, essa busca pela espiritualidade está
presente em todas as culturas, de um modo ou de outro, logo, ela é universal e
universalizante. “A literatura é tudo em todos, como a ideia do panteísmo, segundo
o qual, Deus é tudo em todos.”
Espessura do ateísmo
Quem ficou de fora foram os ateus, tidos pelo poeta místico como “ovelha
sem pastor”, “fonte sem água”. Mas Lucchesi dá um jeito de rearranjar isso, uma
vez que Silesius é pré-iluminista, e via na linguagem um caráter divino.
Para o tradutor, neste momento, o que importa é o capacidade de diálogo
que a poesia tem. O caráter revolucionário da mística cristã passa pela
possibilidade dialogante da linguagem. “Independentemente de qual seja
a religião, ou a espessura do ateísmo, não nos importa isso agora, o que nos importa
é a construção do diálogo”, diz ele numa palestra, ao falar sobre o livro que
traduzira. Vale conferir.
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