Mulher mina, xilogravura de autor desconhecido, publicada em A travessia da Calunga Grande, de Carlos Eugênio M. de Moura (org.) |
Levamos porradas de todos os lados todos os dias, físicas e psicológicas. Somos desacreditados e desencorajados a desenvolver qualquer trabalho intelectual. À nossa força de trabalho são reservadas as piores funções. Nascemos pra isso, somos assim, dizem os racistas sem usar palavras. Eles dizem isso por meio do cinismo e do poder que têm nas instituições, no mercado de trabalho.
Somos figurinhas abjetas para a maioria dos
olhares transversalizados pelo discurso do poder que historicamente nos fez
negros oriundos de um mundo mau. Na época da escravidão, tratavam-nos como animais.
E ainda hoje nos veem com esse mesmo olhar, disfarçadamente.
Ser negro no Brasil é uma condição
qualificativa negativa, uma pele revestida de dificuldade. E quando você é
negro, se for mais alguma coisa além de negro, aí ferrou: mulher negra, gay
negro, pobre negro, menino negro, padre negro, cadeirante negro, velho negro, negro
negro (porque existem os negros brancos). Existem várias tonalidades de negros,
do retinto ao moreno claro, claro, mas o negro mais desenraizado é aquele que
acha que é branco, enquanto os brancos o olham e têm certeza de que ele é
negro.
Poderíamos antes de tudo ser negros para nós
mesmos, e talvez assim enxergássemos alguma força realizadora, poderosa e
consciente, qualquer poder de resistência. Muitas vezes, por não sermos negros
para nós mesmos, somos ignorados pelos outros, vilipendiados, subestimados, negados
como sujeitos.
Apanhamos assim. Somos mortos assim, por
policiais (que a rigor espancam negros e pobres sempre que têm oportunidade, e
as oportunidades são inúmeras, porque o que mais existe nesse país são negros e
pobres), muitas vezes. Somos barrados no baile (como Ícaro Silva, barrado no
próprio local onde fizera show minutos antes, em fevereiro deste ano), somos isto
e aquilo porque somos um raro artefato esportista do pensamento e do ato racistas.
Não existe racismo no Brasil, dizem os
racistas e seus replicadores de discurso. Se não existe racismo no Brasil, existe,
então, uma frustração geradora de ódio por parte de um grupo branco, por não
ter continuado fazendo-nos escravos e por ter percebido que os elementos
culturais mais fortes do país foram forjados por negros e brancos que não se
odeiam.
Se não existe racismo, essa prática
destruidora e negadora do negro no Brasil é tão forte que não há outro nome
para qualificá-la que não seja racismo. Logo, existe racismo no Brasil, sim. Existe
racismo, seja qual for a denominação que queiram dar a ele, para disfarçar.
Racismo é a crença de superioridade de uma
etnia sobre a outra, de um grupo definido pela língua e pela cor, pela cultura
e sua prática, sobre o outro, crença dentro da qual o racista reivindica para
si o direito de exercer o poder (da economia, da linguagem, da arte, da prática
religiosa, dos costumes, do uso moral do imaginário, do uso do corpo, do uso da
violência) absoluto e sem contestação (se contestar, está com mimimi) para
dominar o outro e reduzi-lo à insignificância.
O Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) é um
momento de reflexão sobre o que é ser negro, em que se busca compreender que
ser negro é uma construção identitária; é o dia em que se para para olhar ao
redor e compreender como se dá a prática racista e como se deve agir para
combatê-la; é uma espécie de farol, que deve ser usado para iluminar todos os
outros dias dos negros no Brasil.