A fama de mau de Erasmo Carlos, parceiro
da vida toda do rei Roberto Carlos, não passa de uma leve casca de desencontros
na sucessão de grandes encontros deste cantor e compositor boa praça. É isso
que se nota em Minha fama de mau
(Objetiva, 2009, 360 páginas), autobiografia em que, no lugar de maldades e
playboyzices, que ele nunca teve, joga luz sobre sua vida desde a infância até
os dias de hoje, compondo o cenário quase ingênuo de sua turma.
Até as brigas eram bestas, muitas vezes
encenadas. Diferente das animalidades cometidas em portas de boates, hoje em
dia. Além disso, nas entrelinhas, ele nos diz que ser pobre no Rio de Janeiro
daquela época era muito mais fácil. Vale lembrar que o ambiente envolvido por certa
ingenuidade não significa que o homem também seja ingênuo. Tanto é que o autor
demonstra consciência do alcance de sua obra aliado a seu grau de profundidade,
com letras “primitivas e ingênuas”, em relação à tropicália, por exemplo.
Dito isso, que o leitor, Em Minha fama de mau, não espere uma
linguagem de alto teor plasmático, como se lê em Vale tudo, o som e a fúria de Tim Maia, biografia publicada pela
mesma editora e feita por Nelson Motta, em 2007, que conseguiu trazer no corpo
da escrita a ginga e a verve do autor de Não
quero dinheiro e Azul da cor do mar.
Erasmo Carlos não sabe escrever tão bem quanto o outro, esta é a verdade. Por
outro lado, também não quer fazer literatura, como vem tentando Mota. Mas é um
grande contador de histórias, e escreve no estilo de um bom papo de botequim.
Razão para se correr atrás de suas palavras.
Erasmo não faz profundas revelações, não
oferece a análise de seu tempo nem de sua alma, não quer refletir, não conta os
podres dos colegas, não fala da perna mecânica de Roberto Carlos, mas narra
várias outras histórias: de amor, de composições, de brigas, de amizades, de
viagens, de sexo, de shows, de vaias e algumas situações dramáticas.
De vez em quando solta uma ou outra
maldadezinha, sempre com fim cômico, como quando conta da noite em que
estacionou seu carro num restaurante perto de uma boate GLS. Ficou dentro do
carro esperando seu secretário voltar com a comida, e o porteiro da boate foi
várias vezes falar com ele, insistindo para entrar, tratando-o como um velho
frequentador. Só quando acendeu a luz do interior do veículo para pagar a conta
do restaurante é que o porteiro o reconheceu: “Você é o Erasmo Carlos! Me
desculpe! Você aí na sua e eu te enchendo o saco esse tempo todo, te
confundindo com o Agnaldo Timóteo.”
Leitura tremendinha
O livro vale por essa forma descontraída
de narrar, como se olhássemos o autor do outro lado da mesa, espetando uma
azeitona, enquanto leva o copo de uísque à boca, para depois dizer:
“Tim Maia me ensinou três acordes, com os
quais dei meus primeiros passos. Eu treinava num violão dado por minha avó
Maria Luiza, a primeira a apostar em meu talento. Foi nesse violão que ouvi
pela primeira vez, lá em casa, um cara do bairro de Lins de Vasconcelos, que eu
tinha acabado de conhecer. Adorei vê-lo cantando aqueles rocks americanos no
meu quarto.”
Como assim, Tremendão! Diríamos. Mas tudo
bem. Já nesse parágrafo, no começo do livro, tomamos nota de que o narrador não
é tão mal assim. O cara a que ele se refere é Roberto Carlos, e nessa época
ambos contavam 17 anos de idade. A história dos dois é batida, e ao mesmo tempo
é o fluxo principal da biografia de Erasmo, junto com as sucessivas lembranças
de Nara, mulher e grande amor da sua vida, mãe de seus dois filhos e musa da
canção Mulher, de 1981.
Para não seguir monótona, a narração
entra num ritmo de alternância. A introdução e o primeiro capítulo dão tom
falso do que será a aventura de ler Erasmo Carlos, porque quer fazer
transparecer de onde nasceu sua fama de mau. Mas torna-se caricato. Grandalhão,
com 1,86 m, não se dava muito bem com as garotas na adolescência. Só com a
projeção de sua música é que começou a colecionar mulheres e também a se
envolver em algumas brigas pela amizade com o rei. Isso até conhecer Nara, em
1969.
No veio desses dois personagens estão
todas as histórias. E também é quando acompanhamos a marcha da Jovem Guarda e
os grandes encontros com nomes muito conhecidos, que se tornariam amigos de
Erasmo, como Wanderléa, Jorge Ben, Caetano Veloso, Chico Buarque. Entre estes
está Paulo Silvino, que no começo da carreira atacava de cantor, com o
pseudônimo Dixon Savannah, e de escritor de livros eróticos, assinando Brigitte
Bijou (no site Estante Virtual, há dezenas de livros assinados por Brigitte
Bijou).
Aliás, livros como os de Bijou, ou
melhor, de Paulo Silvino, A carne,
de Júlio Ribeiro, e revistas em quadrinhos, incluindo as de Carlos Zéfiro,
parecem ser todo o acervo de leituras de Erasmo Carlos na adolescência. Ao longo
das páginas de Minha fama de mau, o autor só fala de outros dois escritores,
Marcel Proust e Nietzsche, quando lembra o começo de sua amizade com o dândi
Ronnie Von, o então Pequeno Príncipe:
“Fiquei impressionado com ele”, diz
Erasmo. “Seu nome de batismo era Ronaldo Lindenberg von Schilgen Cintra
Nogueira, estudava economia, pilotava aviões, não usava gírias, citava Proust e
Nietzsche – que eu nem sabia que existiam –, era filho de diplomata, elegante e
educado.”
Em compensação, enumera listas e listas
de filmes, junto com a vasta cultura pop de bandas de rock, das quais retira
seu repertório para ilustrar situações do cotidiano. Como ninguém esperaria um
tratado filosófico, o papo de butiquim do Tremendão consegue honrar seu papel:
contar as peripécias de um dos ícones da Jovem Guarda, que nasceu no bairro da
Tijuca, em 1941, com o nome de Erasmo Esteves.
Melhor amigo
Filho único de Maria Diva, foi criado sem
pai. Quando este não quis assumir a gravidez, a mãe, que era baiana, viajou de
sua terra natal para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar como diarista
para pagar o quarto em que morava com o filho. “A imagem dela encerando o chão
com o escovão (...) e lavando roupa para os treze moradores da casa, de pés
descalços, até altas horas, sobretudo nos dias de chuva, doía em mim”, comenta.
Mas Erasmo tira de letra seu pedigree e
vai adiante, conquistando fama, dinheiro, mulheres, carrões, construindo
família e deixando uma memória capaz de provocar boas risadas no leitor.
Exemplo da comicidade de suas histórias está em casos como o de quando travou
um diálogo surreal sobre amizade com Roberto Carlos, ao urinarem num banheiro,
em Los Angeles:
“Meu piru”, dizia Erasmo, “é o símbolo da
minha virilidade, é o instrumento do meu prazer, me obedece, me entende, não me
pede nada, não dá trabalho nenhum, está sempre pronto para a guerra. Quer
saber? Acho que ele é meu melhor amigo!”
Ao
me ouvir falar isso, Roberto rebateu na hora:
—
Seu melhor amigo?
Já
enxugando as mãos, após tê-las lavado, eu disse:
—
É bicho, ele sou eu, eu sou ele, somos um só, enfrentando a vida perseguindo
nossa felicidade, nos aturando um ao outro. Não posso viver sem ele.
Pensando
que a conversa chegara ao fim, me preparei para abrir a porta com os ombros, já
pensando no cigarrinho que fumaria na volta à mesa. Foi quando Roberto me parou
e perguntou, com cara de gozador:
—
Seu piru já te emprestou dinheiro?
Sem
entender na hora a intenção da pergunta, respondi que não.
Foi
quando sua fisionomia se transformou. Com um largo sorriso comemorando minha
negativa, fez um sinal de positivo com o polegar, dizendo:
—
Ah! Então eu sou o seu melhor amigo!
De outras passagens, entre as várias
histórias engraçadas em que aparece Tim Maia, há uma que revela (sem análise) a
inteira personalidade do homem que só queria sossego. Segundo Erasmo, em 1980,
os dois gravaram Além do horizonte.
No estúdio, Tim Maia “implicou com as palmas do grupo de umas vinte pessoas que
marcavam o ritmo da música.”
Insistiu
que uma delas estava atravessada. Todos ficaram tensos e as sessões foram se
repetindo, sempre com ele apontando o mesmo erro. Já exaustos, depois de
inúmeras tentativas, eu e o produtor Jairo Pires cobramos:
—
Tim, assim não é possível. Diga logo quem está atravessando, porque não estamos
percebendo nada!
Foi
quando ele, com um sorriso sacana nos lábios, nos surpreendeu:
—
Ninguém está atravessando nada, meus nobres colegas. É que eu gosto de ver cada
um ficar sem graça pensando que é ele que está errando.
Em janeiro de 1985, acontecia no Brasil a
primeira edição do Rock in Rio. Esse evento foi palco de uma das maiores
tensões do Tremendão, que participou do mega show cantando suas musiquinhas de
pop rock, de letras suaves e toadas leves, principalmente em comparação aos
colegas que dividiriam a noite com ele: Iron Maiden, Whitesnake e Queen,
balanceado com o som de Ney Mato Grosso, Pepeu Gomes e Baby Consuelo (hoje Baby
do Brasil).
Não deu outra. Erasmo Carlos foi vaiado
pelos cinco mil fãs de heavy metal, em sua conta, que pendulavam entre os 95 mil
restantes. Atiraram-lhe areia, latas vazias, copos de plástico, pilhas, tudo.
Desse evento o roqueiro não se esquece.
Mas por razões diferentes da maioria das histórias que conta. Em suas memórias,
reserva um lugar especial, em que tenta exorcizar as lembranças fatídicas de
uma noite ruim. Chama os metaleiros de “seguidores da besta”, “exército do
mal”, que desfruta a presença de Satanás. Com essas palavras, a intenção do
autor, certamente, é de ofender. Mas é provável que, para a turba que o vaiou,
o vitupério soaria como doce elogio.
A editora Objetiva disponibilizou o
acervo musical de Erasmo Carlos na página www.objetiva.com.br/minhafamademau, tal como fizera com a biografia de Tim
Maia, www.objetiva.com.br/valetudo. Ambos valem a pena ser acessados.
Ambos, ainda hoje, estão lá para quem quiser acessar e se deliciar.
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