quarta-feira, 25 de julho de 2012

Perdas servem para descobertas

Sandra Bullock, Thomas Horn e Tom Hanks: mãe, filho e pai em Tão forte e tão perto, filme ambientado na Nova York pós-11/09

Poderia se dizer que o Oscar 2012 trocou a sensibilidade pela mudez. Seria apenas uma boutade, mas certamente retrataria o fato de Tão forte e tão perto não ter ganhado o prêmio de melhor filme, que merecia, perdendo para o francês, em preto e branco e mudo, O artista. Mas isso também não é desculpa para se deixar de ver essa boa versão do livro Extremamente alto e incrivelmente perto (2005), do norte-americano Jonathan Safran Foer.

É possível começar por qualquer um dos dois, o livro ou o filme, mas vale a pena mergulhar nas cenas trabalhadas por Stephen Daldry, cineasta craque nesse negócio de abordar o universo sensível das pessoas, como nos ótimos Billy Elliot, As horas e O leitor. Em Tão perto e tão forte, um menino de cerca de dez anos perde o pai no atentado de 11 de setembro e acaba ficando angustiado, saindo em busca de respostas para perguntas que ele mal sabe formular.

Oscar, o garoto interpretado pelo mirim Thomas Horn, é um típico novaiorquino da classe média de Manhattan, bem informado, bem nutrido, inteligente e cheio de sonhos. Ao não aceitar a morte do pai (Tom Hanks), espera reencontrá-lo num lugar especial. O pai era um contador de histórias que instigava o espírito aventureiro e curioso do menino.

Escarafunchando nas coisas do pai morto, Oscar acha uma chave dentro de um envelope que traz também um bilhete escrito “não pare de procurar”. E com essa chave, vai à procura do mistério que envolveu sua vida a partir de então. Agora órfão paterno, morando só com a mãe (Sandra Bullock) e se comunicando com a avó, que mora no apartamento no prédio em frente, por meio de um walkie-talkie, o garoto traça um plano de exploração de Manhattan para saber o que abre aquela chave.

É um garoto tentando lidar com suas angústias. O corpo do pai não é encontrado, desaparece com milhares de outros entre concreto, poeira e dor. O enterro é simbólico, um caixão vazio, e Oscar não entende nada disso. Ao longo de sua curta vida de criança, o que ele fazia era mergulhar nas histórias fantásticas de expedição e descobertas contadas pelo pai.

Ele então decide fazer uma dessas expedições. O que antes era um faz de conta que ele levava a sério, agora é uma jornada real pelas ruas de Manhattan, em que Oscar vai atrás de um tal Black, nome escrito no envelope onde estava a chave. Mas há vários Blacks, e ele quer visitar um por um para desvendar esse mistério da chave.

Anda pela cidade imensa sozinho pela primeira vez. Descobre pessoas, várias, cada uma de um jeito diferente, descobre um mundo plural. Pelo caminho, encontra hare krishnas, crentes, malucos, gente silenciosa, gente barulhenta, descobre a vida. Ele, que vivia num fantástico mundo de faz de contas, descobriu o mundo real, pulsando a velocidade de Nova York.

Imagens

Se Oscar descobre o mundo, o espectador descobre uma história de pais e filhos. Uma história de encontros e desencontros. Descobre um pai de outro filho e um filho de outro pai, histórias cruzadas pelo acaso, mas descobertas e reativadas para a vida pela insistência de um garoto que queria simplesmente encontrar respostas íntimas que religassem ele e seu pai de novo.

O filme inicia com a fala de Oscar tentando arrumar a bagunça de seu mundo que virara de cabeça para baixo. “Existe mais gente viva agora do que todas as que morreram em toda a história da humanidade. Mas o número de mortos só faz aumentar. Um dia não haverá mais onde enterrar os que morrerem.”

Ele então fala da possibilidade de – tal como os arranha-céus – se construírem imensos edifícios terra abaixo para depositar os corpos das pessoas que morrem, criando um lugar onde se poderiam fazer visitas de elevador. Essa imagem é literária ao extremo, e vemos aí o talento do autor do livro surgir com força.

A ideia de um arranha-céu ao contrário para enterrar mortos é a imagem das Torres Gêmeas, símbolo máximo do capitalismo e da imponência americana, caindo por terra e levando consigo milhares de pessoas que tinham suas vidas, suas famílias, seus filhos, seus pais, mães, empregos.

As falas seguintes de Oscar também criam belas e tristes imagens da angústia que o envolve, entre luz e sombra. “Se o sol explodisse, só daríamos conta oito minutos depois, porque esse é o tempo que leva para a luz chegar até a gente. Durante oito minutos ainda haveria claridade. E ainda faria calor. Fazia um ano que meu pai morrera. E eu sabia que meus oito minutos com ele estavam se esgotando.”

Sutilezas

Tão forte e tão perto é um filme cheio de sutilezas, de cenas desencadeadoras de emoção, como a de Oscar embaixo da cama, abatido, e a avó deitada no chão para falar com ele, a cena da briga entre ele e a mãe, quando ela diz que não se podia compreender tudo na vida, que não sabia porque o marido havia morrido, porque tinha de estar lá naquele instante.

A cena de Oscar ouvindo o pai na secretária eletrônica ao vivo, sem querer atender até a ligação cair no momento exato em que as torres desabam, e o menino também desabando ali na sala, é catalisadora da emoção dessa história, que acaba sendo uma história de filho e pai, um pai que mesmo ausente pela morte, não deixa de estar presente pela força máxima do afeto.

Neste sentido, Tão forte e tão perto pode ser uma boa dica para pais e filhos se descobrirem. O mérito do roteirista Eric Roth (Forrest Gump - o contador de histórias e O curioso caso de Bejamin Button) em trabalhar as palavras de Foer não pode ser negado.

Muitas vezes, as cenas ganham força justamente por causa do argumento por traz delas, o que demonstra a força incrível das palavras que vêm do romance de Foer. Talvez por isso não tenha sido indicado ao Oscar de roteiro adaptado, porque ficou próximo demais da atmosfera romanesca. Por outro lado, ver o filme pode ser também uma boa oportunidade de se descobrir um belo livro.

Filme e livro

Se Daldry é hábil em pôr nas telas a emoção dos indivíduos, as descobertas do que nos dá sentido para viver, Foer é genial no retrato de pessoas que saem em busca de sua identidade, no esclarecimento daquilo que as move. Em suas histórias, há sempre uma origem do mal ou do bem.

O pai de Oscar era, por sua vez, filho de um homem vindo da Alemanha, que o abandonara, sendo ele criado apenas pela mãe. O trágico na vida de Oscar era justamente o fato de ter um pai que jamais o abandonaria, mas sofreu a infelicidade do acaso que o deixou órfão, sendo criado também apenas pela mãe.

Essa busca pelo outro, a expedição que nos leva ao encontro de nossa identidade é tema recorrente na obra de Jonathan Safran Foer, que Daldry e Roth souberam captar bem. Em outro romance do autor, Tudo se ilumina, primeiro livro de Foer de 2002, quando ele tinha apenas 23 anos, a trama também gira em torno de uma procura.

Curiosamente, ali é contada a história de um jovem escritor judeu que quer saber mais sobre seu avô, que viera da Alemanha para a América, cuja família havia sido assassinada pelos nazistas, só ele escapando. O avô de Oscar cruza com o avô desse escritor no cerne da criação de Foer.

Digo isso para mostrar a importância dos dramas de família na obra de Foer e a importância do filme de Daldry como um meio de compreensão das relações familiares, de como se podem descobrir formas de um pai se aproximar do filho, antes que um dos dois se vá. A vida é como a chave encontrada por Oscar.

É como lhe disse um chaveiro, quando ainda procurava saber por onde começar: “nunca se sabe o que ela [a chave] pode abrir. Há milhões de possibilidades.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

sábado, 21 de julho de 2012

A modernidade encalacrada na memória: vida e tempo


“Não se tem história sem erudição”, diz Jacques Le Goff em seu livro História e memória, publicado originalmente em 1977, na França, e em 1990, no Brasil. Ele agora sai de novo em 6ª edição (Unicamp, 2012, 526 páginas, tradução de Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges, R$ 78). A essa observação sagaz de Le Goff, é preciso acrescentar o fato de que tampouco se tem erudição sem memória.

Le Goff é um dos historiadores mais fecundos do século XX. Não que ele tenha deixado de produzir neste início de novo milênio. Em 2003, publicou Em busca da Idade Média, livro que saiu aqui em 2005. Mas suas grandes contribuições datam da segunda metade do século passado.

Uma dessas contribuições é o fato de ter jogado luz sobre a Idade Média, procurando retirar o velho ranço impetrado pela Igreja Católica de que nada havia além de seres brutos e escuridão no período anterior ao Cristianismo. Em História e memória, Le Goff, que em 2014 fará 90 anos, cerca-se de todos os lados para criar uma obra seminal a historiadores, pensadores, homens de letras e demais interessados no processo de passagens da cultura humana.

Primeiro ele enumera as diversas faces da história, que procuram captar os fatos de todas as maneiras possíveis, não levando em conta apenas o centro, e muito menos o dono das canetadas e das tomadas de decisão. Há, portanto, "realidades" históricas que foram negligenciadas por muito tempo pelos historiadores, mas que desde o século XX começaram a ser trabalhadas.

Nesse campo fértil, existem a história política, a história econômica e social e a história cultural. Junto a elas, segundo Le Goff, nasceu a história das representações, que “assumiu formas diversas”, como história das ideologias, história das mentalidades, história do imaginário, história do simbólico, e, por fim, “a própria ciência histórica, com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história.”

Problemas

A partir daí, Le Goff levanta uma série de problemas com os quais ele vai lidar em seu livro. “Matéria fundamental da história é o tempo”, diz ele. “Portanto, não é de hoje que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar da história.”

E assim o autor vai delimitando um espaço e um campo formidavelmente complexo, cheio de referências e de observações sobre como a humanidade lida com o passado para forjar o presente ou mesmo para negar certos traços teoricamente negativos do que já existiu. “O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta”, diz.

“A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência do tempo. (...) A oposição presente/passado não é um dado natural, mas sim uma construção”, continua. Neste livro, Le Goff quer analisar a temporalidade, o curso do tempo e as ferramentas humanas usadas para segurar o mínimo de traços, de vestígios deixados pelo próprio homem ao longo dessa passagem temporal, ofício que é da história.

Em muitos casos, o autor segue a metodologia da dicotomia platônica. Na segunda parte, os termos são discutidos justamente dentro dessa dicotomia: Antigo/Moderno, Passado/Presente e Progresso/Reação. Mas há também exposições magníficas sobre “o imaginário do tempo”, em que discute as idades míticas, e “a ordem da memória”, passando pela memória étnica, o DNA, até os registros escritos, depositário com o qual se forjou a modernidade.

Diante de tantos caminhos, é preciso escolher um para finalizar esta resenha. O debate em torno de Antigo/Moderno é uma boa oportunidade de exercício sobre o que o Ocidente recebeu de herança e o que forjou de novo, o que apenas renomeia e o que há de característico como sendo realmente um dado revolucionário.

Neste capítulo, Le Goff faz um preâmbulo geral dos dois termos e seus significados. Ele se utiliza de uma série de recursos epistemológicos para desenvolver sua tese sobre a dualidade antigo/moderno, como antropologia, etimologia e genealogia do saber. E aí segue escavando, desenterrando os significados das palavras que giram em torno do binômio antigo/moderno.

Palavras

A ideia de modernidade foi construída ao longo dos séculos. Primeiro veio a palavra ‘moderno’, termo que apareceu já no baixo latim, a partir do século V d.C. Já ‘modernidade’ só veio a ser cunhado no século XIX por Charles Baudelaire. Segundo Le Goff, “modernidade é a tomada de consciência das rupturas com o passado e a vontade coletiva de as assumir”

Mas essa ruptura sempre esteve em volta a retornos e revoltas, avanços (vanguarda) e retrocessos. Por isso mesmo o estudo do binômio Antigo/Moderno e suas ambiguidades são importantes para compreender esse processo. Os dois termos nem sempre se opuseram um ao outro, e ambos podiam ser afirmativos, pejorativos ou neutros.

No século XVI houve a divisão da história em Antiga, Medieval e Moderna. Depois, o termo ‘moderno’ passa a se opor mais a medieval. E o termo ‘antigo’ passa a se referir à Antiguidade, e a Antiguidade se refere à época anterior ao triunfo do Cristianismo no mundo greco-romano.

Esse jogo conceitual tomou outro rumo quando o Renascimento passou a considerar o antigo como Antiguidade, e esta um modelo a se imitar. Passa ser um combate entre duas formas de progresso, não como combate entre passado e presente.

Le Goff então passa para a análise dos termos novidade e progresso e os sentidos do ‘novo’: esquecimento ou ausência do passado. Ao longo da história, até que se alcance a modernidade, progresso é outra palavra que ganha fôlego, se desdobra e deixa o termo moderno para trás.

Pode-se usar ‘progredir’, ‘progressista’, já no século XIX. Ligados à revolução industrial, novo é igual a ‘fresco,’ ‘inocente’; ‘progresso’ é igual a ‘dinamismo’. E o termo ‘moderno’ fica para trás porque não tem nada disso.

Alteridade

Segundo o autor, o termo modernitas surge no século XII, mas só no XIX entra nas línguas vulgares. Depois dessa briga, antigos e modernos se reconciliam porque os modernos renascentistas redescobrem a antiguidade clássica, contrapondo o moderno à Idade Média, o início das trevas (como pregava a Igreja Católica).

Em 1900, começam a pipocar as relações da palavra modernismo, literário, religioso e o que se convencionou a chamar modern style. Com este último, o objetivo era “produzir objetos, invadir a vida cotidiana e abolir a barreira entre artes maiores e menores; a produção artística torna-se social, não se dirige mais a uma elite.”

Aí vem uma sucessão de novidades: revistas, museus, artistas que se tornam renomados dentro dessa nova proposta, como Gaudi, arquiteto que deu vida a Barcelona, aquilo que a gente vê em filmes espanhóis. A conclusão de Le Goff é que “enquanto o espírito antigo se alimentava de heróis, chefes, gestas, o espírito moderno vive do cotidiano, do massivo, do difuso (mistura).” O movimento modern style vai até 1910. De seus restos nasce o kitsch.

Le Goff argumenta que “o primeiro embate total entre antigo e moderno foi, talvez, o dos índios da América com os europeus”. E neste caso, vale citar aqui um livro importante que mostra como a relação entre o Velho Mundo e o Novo fez nascer a cultura moderna. Em A conquista da América: a questão do outro (1982), Tzvetan Todorov diz que a chegada dos espanhóis ao continente americano fundou o problema moderno da alteridade.

“A descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na ‘descoberta’ dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza”, diz Todorov.

“Em 1500”, comenta Todorov, “a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 [milhões] habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, restam 10 [milhões]. Ou seja, se nos restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão.”

“A descoberta do outro”, conclui o grande pensador da modernidade, “tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias.”

Consciência

Voltando a Le Goff e seu livro seminal, toda essa discussão é resgatada pela história e pela memória, mas nada de consciência da modernidade até então, que só viria acontecer nessa passagem do século XIX para o XX.

Repetindo, modernidade é a “tomada de consciência das rupturas com o passado e da vontade coletiva de as assumir.”

Quatro elementos se evidenciam, portanto, nessa tomada de consciência: 1) Percepção da aceleração da história; 2) pressão do progresso material sobre a mentalidade; 3) Filosofia grega e as obras dos pensadores árabes, isso entra como choque externo; 4) intelectuais e tecnocratas como receptores dessa afirmação da modernidade.

A sociedade moderna é aquela que tende a valorizar o novo pelo novo. Le Goff conclui que “o moderno adquiriu um ritmo de aceleração desenfreado.” (...) “Outro paradoxo ou ambiguidade: o moderno, à beira do abismo do presente, volta-se para passado. (...) “Este período, que se diz e quer totalmente novo, deixa-se obcecar pelo passado: memória, história.”

O que ganhamos com isso? Mais consciência de que estamos afundados numa areia movediça dos conceitos, do tempo e da história. Le Goff não dedica uma linha aos termos pós-moderno, pós-modernidade, e nem podia se lembrar dos mais recentes, como modernidade líquida.

(Gilberto G. Pereira. Versão ampliada do texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 15/07/2012)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Deu a louca na Barbara Gancia?

Esse negócio de criticar é mesmo passível de cegueira, quando não se quer entender o outro, quando se quer apenas descer a lenha no que ele faz, escreve, diz.

A jornalista e colunista da Folha de S. Paulo, Barbara Gancia, parece ter sofrido uma espécie de lapso intelectual, se é que isso existe, ou bebeu muito no dia que resolveu responder a um texto do psicanalista Contardo Calligares, também colunista da Folha.

Sem levar em conta minha preferência intelectual, e o fato de eu raramente ler tanto Calligaris quanto Barbara, me deparei com os dois textos, que seguem abaixo e vejam vocês mesmos que loucura.

............................................................................................................................

CONTARDO CALLIGARIS [Folha de S. Paulo, Ilustrada 12 de julho de 2012]

Os outros que ajudam (ou não)

Amigos e próximos, em vez de nos ajudar com reforços positivos, torcem contra nossos esforços para mudar

Muitos anos atrás, conheci um alcoólatra, que, aos 40 anos, quis parar de beber. O que o levou a decidir foi um acidente no qual ele, bêbado, quase provocara a morte da companheira que ele amava, por quem se sentia amado e que esperava um filho dele.

O homem frequentou os Alcoólatras Anônimos. Deu certo, mas, depois de um tempo, houve uma recaída brutal. Desanimado, mas não menos decidido, com o consenso de seu grupo dos AA, o homem se internou numa clínica especializada, onde ficou quase um ano -renunciando a conviver com o filho bebê.

Ele voltou para casa (e para as reuniões dos AA), convencido de que nunca deixaria de ser um alcoólatra -apenas poderia se tornar, um dia, um "alcoólatra abstêmio".

Mesmo assim, um dia, depois de dois anos, ele se declarou relativamente fora de perigo. Naquele dia, o homem colocou o filhinho na cama e, enfim, sentou-se na mesa para festejar e jantar.

E eis que a mulher dele chegou da cozinha erguendo, triunfalmente, uma garrafa de "premier cru" de Château Lafite: agora que ele estava bem, certamente ele poderia apreciar um grande vinho, para brindar, não é?

O homem saiu na noite batendo a porta. A mulher que ele amava era uma idiota? Ou ela era (e sempre tinha sido) companheira, não da vida do marido, mas de sua autodestruição? Seja como for, a mulher dessa história não é um caso isolado.

Quem foi fumante e conseguiu parar, quase certamente encontrou um dia um amigo que lhe propôs um cigarro "sem drama": agora que você parou, vai poder fumar de vez em quando -só um não pode fazer mal.

Também há parentes e próximos que patrocinam qualquer exceção ao regime que você tenta manter estoicamente: se for só hoje, uma massa não vai fazer diferença, nem uma carne vermelha. Seja qual for a razão de seu regime e a autoridade de quem o prescreveu, para parentes e próximos, parece que há um prazer em você transgredir.

Em suma, há hábitos que encurtam a vida, comprometem as chances de se relacionar amorosa e sexualmente e, mais geralmente, levam o indivíduo a lidar com um desprezo do qual ele não sabe mais se vem dos outros ou dele mesmo.

Se você precisar se desfazer de um desses hábitos, procure encorajamento em qualquer programa que o leve a encontrar outros que vivem o mesmo drama e querem os mesmos resultados que você. É desses outros que você pode esperar respeito pelo seu esforço -e até elogio (quando merecido).

Hoje, encontrar esses outros é fácil. Há comunidades on-line de pessoas que querem se livrar de seu sedentarismo, de sua obesidade, do fumo, do alcoolismo, da toxicomania etc. Os membros de uma comunidade registram e transmitem, todos os dias, seus fracassos e seus sucessos. No caso do peso, por exemplo, há uma comunidade cujos membros instalam em casa uma balança conectada à internet: o indivíduo se pesa, e a comunidade sabe imediatamente se ele progrediu ou não.

Parêntese. A balança on-line não funciona pela vergonha que provoca em quem engorda, mas pelos elogios conquistados por quem emagrece. Podemos modificar nossos hábitos por sentirmos que nossos esforços estão sendo reconhecidos e encorajados, mas as punições não têm a mesma eficácia. Ou seja, Skinner e o comportamentalismo têm razão: uma chave da mudança de comportamento, quando ela se revela possível, está no reforço que vem dos outros ("Valeu! Força!").

Já as ideias de Pavlov são menos úteis: os reflexos condicionados existem, mas, em geral, se você estapeia alguém a cada vez que ele come, fuma ou bebe demais, ele não parará de comer, fumar ou beber -apenas passará a comer, fumar e beber com medo.

Volto ao que me importa: por que, na hora de tentar mudar um hábito, é aconselhável procurar um grupo de companheiros de infortúnio desconhecidos? Por que os próximos da gente, na hora em que um reforço positivo seria bem-vindo, preferem nos encorajar a trair nossas próprias intenções?

Há duas hipóteses. Uma é que eles tenham (ou tenham tido) propósitos parecidos com os nossos, mas fracassados; produzindo nosso malogro, eles encontrariam uma reconfortante explicação pelo seu.

Outra, aparentemente mais nobre, diz que é porque eles nos amam e, portanto, querem ser nossa exceção, ou seja, querem ser aqueles que nós amamos mais do que nossa própria decisão de mudar. Como disse Voltaire, "Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu".

......................................................................................................................

BARBARA GANCIA [Folha de S. Paulo, Cotidiano, 13 de julho de 2012 ]

Um convite a Contardo Calligaris

Alguém consegue explicar a má vontade dos médicos tapuias em relação aos Alcoólicos Anônimos?

A COLUNA do Contardo Calligaris de ontem, que menciona seu amigo alcoólatra esti­mulado a voltar a beber pela mulher foi um clássico. Um clássico equívoco a ser evitado.

Costumo ler o Contardo de joe­lhos. Mas não ontem. Ali ele trivia­lizou um assunto que não só conhe­ço bem, como sou testemunha diá­ria dos efeitos devastadores que produz, inclusive pela negligência com que é tratado. Não dá para en­tender a má vontade dos profissio­nais do país com os Alcoólicos Anô­nimos, uma irmandade reconheci­da no mundo todo pelos excelentes serviços que presta.

O texto de Calligaris me remeteu ao hepatologista de Tarso de Cas­tro, que chegou ao cúmulo de libe­rar o jornalista, dependente, para tomar uma taça de vinho ao dia.

Não sou especialista, apenas al­guém que padece de uma doença que a Organização Mundial da Saú­de define como "incurável, pro­gressiva e mortal". E posso atestar que o texto serviu de luva para rea­firmar o propósito de que proble­mas relativos ao álcool devem ser tratados dentro da sala dos Alcoóli­cos Anônimos, bem longe do divã do psicanalista.

Veja. Quem conhece minima­mente os 12 Passos dos AA sabe que o programa não oferece garantias. Mas, a dada altura, por negligência ou mero infortúnio, Contardo diz o seguinte: "O homem frequentou os AA e deu certo". Ora, para nós, membros dos AA, ao contrário, o programa funciona, se muito, "só por hoje", nunca "dá certo", inexis­te esse conceito. Eu posso voltar à ativa daqui a 20 minutos, corro esse risco, é da natureza da doença.

Um dos maiores predicados dos AA, inclusive, é esse. O de me colo­car o tempo todo no presente para que eu consiga reduzir a angústia que a lembrança do passado me traz e diminuir a ansiedade que o peso do futuro pode vir a me causar.

Mas de que importa a filosofia dos AA? Bom mesmo é teorizar, não é para isso que serve psiquiatra? Calligaris menciona ainda que, acon­selhado pelo seu grupo, o su­jeito passou por uma "internação de um ano". De onde tirou um ab­surdo desses, só Deus sabe. Inter­nação longa nos AA? Em 20 anos de Alcoólicos Anônimos nunca vi essa picaretagem. Aliás, é cada vez mais comum no país a prática criminosa da internação longa que isola o de­pendente da família e coloca o mé­dico como intermediário todo-po­deroso, sem que ninguém fiscalize.

Adoro ler o Contardo, ele me ex­plica muitas coisas. Mas não me ex­plica tudo. A psicanálise é aleijada da dimensão espiritual, um cami­nho muito indicado, senão impres­cindível, para alguém como eu, que produz pouca endorfina, dopami­na e outros opiatos naturais por conta dos anos que passei maman­do destilados. Jung já advertia so­bre isso a Bill e Bob, os dois sujeitos que fundaram os Alcoólicos Anôni­mos. Está documentado.

Fico me perguntando a quem Calligaris refere os casos mais graves de dependência. Não gosto nem de pensar na resposta. Em todo caso, uma atividade não interfere na outra, não é mesmo? O colunista é um, o médico é outro. Vamos dei­xar assim.

E deixar também um convite para que o amigo Contardo venha assis­tir a qualquer próxima edição que eu for dar da palestra "Do Fundo da Garrafa ao Domínio da Minha Vi­da", em que conto um pouco sobre meu trágico envolvimento com o álcool e como consegui sair desse inferno. Quem sabe ele não se ani­ma a vir conhecer uma sala dos AA por dentro? Só por hoje. Funciona.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Uma história sustentável



As histórias infantis cruzam a vida dos adultos de diversas formas, quer pelo fato de termos de lê-las, ou contá-las aos nossos filhos, quer pelas lições de afeto que recebemos delas quando nossas crianças aprendem a reproduzi-las, citá-las nas brincadeiras ou simplesmente porque, quando nós mesmos éramos crianças, convivíamos com uma série de experiências que trazemos para a fase adulta e recontamos a filhos e sobrinhos.

Essas rememorações podem ficar apenas em nosso círculo íntimo, ou podem virar novas histórias para outras crianças. É aí que nasce o escritor. E foi assim que nasceu uma nova autora de livros infantis, a jornalista Débora Rubin, de São Paulo. Ela acaba de lançar seu primeiro livro, A horta do vovô Manduca (Lafonte Júnior, selo da Larousse, 2012, R$ 29,80).

O livro conta a história do senhor Manduca, velhinho que mora numa cidadezinha do interior que de tão calma e pacata, de tão silenciosa e devagar se chama Caramujo. Nas férias, uma porção de meninas vai passear na casa dele. São suas netas, que vivem uma série de aventuras na casa do vovô Manduca.

A narração é em terceira pessoa, mas claramente passa pelo elemento da memória. Lembra o que fazia o vovô, como vivia e o que havia de mais legal na sua casa. São lembranças da infância, e a horta do vovô Manduca é eleita o assunto mais marcante dessas memórias.

Débora construiu um texto fluido, fácil, rápido, apoiado nas ótimas ilustrações de Fabiana Salomão. É uma bela história de criança, com um olhar diferente para as coisas, porque tenta resgatar uma espécie de sustentabilidade que existia nas cidades do interior.

Infância vivida

Se vier a ler este texto, a autora provavelmente ficará horrorizada com as categorias intelectualizadas que utilizo para resenhar seu livro. Isso porque ela sabe muito bem que a literatura infantil tenta justamente fugir disso, mesmo quando fala de elementos complexos como a morte e a própria existência, que é o caso de seu livro.

Também sabemos que a criança constrói um universo pleno de representações sem passar pela mediação simbólica dos adultos. Existo no mundo, e as pessoas que amo também existem, e isso basta. O resto não é literatura, é brincadeira e jogos. É mais ou menos assim que funciona.

Na história do vovô manduca, podem-se discutir as questões da passagem do tempo, da alimentação saudável e também da morte, ou simplesmente mostrar que as memórias são importantes. O vovô não vive para sempre fisicamente, mas as lembranças que permanecem na história contada é uma prova viva de que ele permanece de alguma forma. E isso é o legal do livro.

Vovô manduca é um velhinho ativo e plural, dinâmico, cheio de coisas pra fazer. Não joga no time daqueles senhorzinhos aposentados e sedentários das grandes cidades que vivem enfurnados em apartamentos com medo de tudo, e com certa razão.

Refúgios

Vovô Manduca faz doces, conta histórias a suas netas, e depois aos outros netos que surgem pelo meio do caminho da narração, costura ternos (e há aqui uma sutil sugestão de que, com isso, o que o vovô confecciona mesmo é ternura), torce para o Corinthians e, sobretudo, se manifesta sempre com um sentimento democrático, de dar voz a todos, outra lição às crianças.

É um vovô que produzia a plenos pulmões a frase “Eeee netaiada bonita do vô!!!”. Depois, esse entusiasmo vai diminuindo, passando para o pensamento até ficar apenas no imaginário da infância, à memória afetiva. A horta do vovô Manduca é uma história rápida, passa como um pequeno furacão, mas deixa impressa no leitor\ouvinte a sensação agradável de infância vivida.

A cidade de Caramujo é o contraponto das grandes cidades, em que as crianças perdem o contato quase que completo com a natureza. Carros, avenidas tumultuadas, televisão, internet são ícones da sociedade de consumo, um meio de costas viradas para a natureza e, espantosamente, um meio sem o qual ninguém, ou quase, consegue viver. Nem mesmo a autora deste livro, nem mesmo o autor deste texto.

Neste sentido, o livro de Débora é uma pequena lição e delícia de leitura que se pode fazer com os filhos, aproveitando o momento de infância que eles têm, possuindo um vovô Manduca ou não.

O resgate do equilíbrio é necessário. Que as histórias infantis como esta não sejam apenas reminiscências, mas uma inspiração aos futuros adultos, para que, ao crescerem, explorem seu imaginário infantil e encontrem refúgios semelhantes.

domingo, 15 de julho de 2012

Globo: a biblioteca Jorge Amado

A bela Juliana Paes, representando Gabriela, personagem que mexe com a libido masculina

Quem nunca ouviu falar de Teresa Batista, Perpétua, Tieta, Rosa Palmeirão, Maria Machadão, Gabriela, nomes que, sem nenhuma coincidência, são femininos. A maioria dos brasileiros raramente lê um livro por ano, mas sabe bem quem são estes personagens, todos eles saídos do fantástico universo imaginativo do baiano Jorge Amado (1912-2001).


A emissora de televisão que mais contribuiu para que Jorge Amado fosse tão reconhecido como escritor foi a Rede Globo, com telenovelas como Gabriela, Cravo e Canela, que recentemente voltou ao ar numa segunda versão, com Juliana Paes no papel principal (papel este que outrora fora da deslumbrante Sônia Braga), Porto dos Milagres, Tieta, e séries como Teresa Batista, Cansada de Guerra, O compadre de Ogum e Dona Flor e seus dois Maridos.

Mas não só a Globo desempenha esse papel. Em 1989, a TV Bandeirantes exibiu uma série baseada no livro Capitães da Areia, que no ano passado também virou filme. A série foi um sucesso, e em função dela muita gente, principalmente os garotos, correram ao livro e aprenderam a ler literatura.

Vários outros trabalhos do escritor baiano sempre estiveram na mira da televisão e do cinema, do teatro, da crítica literária, das dissertações de metrado, das palestras sobre literatura. Mas é a Globo, sem dúvida, que aparece como uma espécie de Biblioteca Jorge Amado, o acesso mais democrático aos personagens sensuais, polêmicos até hoje e realistas ao extremo.

Figuras

Uma das figuras que sempre aparecem desse acervo, entre sexo, nudez e voluptuosidade, é a da mulher casada, mulher de família, certinha e bem comportada, que de repente rompe-lhe o senso moral, ou quebram-lhe as amarras dos bons costumes e descobre que a felicidade é virar puta.

Para que isso aconteça, claro, é preciso o retrato do prostíbulo. Nos livros de Jorge Amado, que aborda a realidade social, político e econômica do Nordeste baiano, há sempre um bom lugar para os lupanares. Nas telenovelas, então, isso é catapultado à enésima potência, e mulheres deslumbrantes, sensualmente lindas e fartas de peitos e bundas aparecem rebolando em cenas e mais cenas.

E é aí que entra a representação da dona de casa recatada, cujo marido é uma pedra roliça, grosseirão, sem a menor sensibilidade, nem na hora da mesa, e muito menos na hora da cama. Na visão de Jorge Amado, que conhecia bem a realidade social brasileira, principalmente na decadente região do cacau, que não difere em nada do Brasil adentro, a delícia do sexo acontecia mesmo era nos prostíbulos.

Por isso, quando uma mulher casada, carola, entristecida ou não, mas no fundo da alma carente, conhecia, por acidente ou por curiosidade, a Casa da Luz Vermelha, sentia-se como se o mundo inteiro lhe fosse jogado no colo apenas com o calor das coisas boas. A partir daí, ou ela quer virar uma das Tias Chininhas ou quer ser tratada como tal.

Em Tieta, por exemplo, há casos exemplares, a começar pela protagonista de mesmo nome (Betty Faria), que após ser expulsa da cidadezinha de Santana do Agreste, vai para São Paulo e lá se torna prostituta, ganha não só a vida e a liberdade, mas muito dinheiro também como cafetina. Volta à cidade para se vingar, mas sem que ninguém saiba que ela fora mulher da vida. É quando a história deslancha.

Dentro dessa história deslanchada, no entanto, há a irmã de Tieta, Elisa (Tássia Camar­go), a mulher de Timó­teo D'Alembert (Paulo Betti), que não comparecia com tanta ansiedade quanto Elisa gostaria. Isso acabou desenvolvendo na mulher duas taras, uma por Tarcísio Meira, que só aparece na novela em sonhos do personagem de Tássia, e outra pela fatídica vontade de querer ser tratada como puta.

Várias histórias

Em Porto dos Milagres, baseada no romance Mar Morto e na novela A descoberta da América pelos turcos, de Jorge Amado, essa vontade acabou se tornando realidade. O personagem de Mônica Carvalho, Maria do Socorro, entrou por curiosidade num lupanar e, como mariposa à luz, cheia de encantos, de lá não saiu nunca mais. Em Gabriela, um dos pontos centrais da trama exibida pela TV Globo como novelas das 23 horas é o prostíbulo.

Nos primeiros capítulos, ali, uma mulher da alta roda, vivida por Maitê Proença, teve um entrevero de deslumbres e quase sucumbe ao feitiço da ‘vida fácil’. Agora nos próximos capítulos vai se desenvolver a história de um casal de artistas, cuja mulher é vivida pela bela Bruna Linzmeyer, cujo personagem traz no nome o que ela é de fato, Anabela.

Ela vai fazer shows justamente na Casa da Perdição, no extraordinário lugar da fuga e do esquecimento, o Bataclã. E a tentação estará à solta. Por essas e por outras, que se tornam debates de nossa cultura popular, é que vale Jorge Amado.

Vale lembrar que há a opressão, as histórias de conflitos sociais, da arbitrariedade dos coronéis, da submissão feminina, da vida difícil no sertão, do mar, o mar, o belo mar azul do litoral, o entrelace de vidas e desejos, fogo e ardência sob o sol do Nordeste, poder e polícia, discriminação, marginalidade, a vida e a morte de um povo. Há tudo isso na obra de Jorge amado.

Se a Globo é biblioteca de sua obra, a visita aos livros de verdade do autor de A morte e a morte de Quincas Berro D’água, também vale. As telenovelas podem ser apenas uma porta de entrada, mas uma porta bem servida, diga-se de passagem.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Os idiotas

"As pessoas acham que escritores são pessoas iluminadas, muito inteligentes e que sabem muito sobre o mundo. Na verdade é o contrário: a maioria deles é ignorante e pouco imaginativa. Há uma porcentagem de gente muito idiota nesse meio." Enrique Vila-Matas, em entrevista à Folha de S. Paulo desta quinta-feira.

Agora, sim, me sinto incluído. Vou virar escritor.