Foto: Divulgacão
Clóvis de Barros Filho, professor da Universidade de São Paulo (USP): a potência de agir aumentada é alegria e beleza |
Em uma
aula magnífica sobre estética, postada no Youtube, o professor Clóvis de Barros Filho comenta rapidamente a frase “a beleza está nos olhos de quem vê”. Segundo Clóvis,
um de seus alunos perguntou quem teria dito a frase.
Já vi em
vídeo várias dessas aulas de Clóvis, professor da Universidade de São Paulo
(USP), detentor de vários títulos de doutorado e um de Livre Docência (que pra
ele é seu maior troféu). Para mim, é como se eu estivesse assistindo a uma aula
de modo presencial, é tão válida quanto. Muitas delas têm uma qualidade didática
sem igual. Sua erudição é impressionante, e o modo como ele fala dos gregos me
encanta.
À medida
que você vai assistindo às aulas do professor Clóvis, sobre Nietzsche, Kant,
Maquiavel, em cursos sobre Ética, Política, Estética etc, você vai
invariavelmente aprendendo sobre a biografia dele também: filho único de um
policial de Ribeirão Preto, estudou com bolsa em escola de rico em São Paulo,
entrou na faculdade de direito do Largo de São Francisco, da USP, aos 15 anos, segundo ele.
Graduou-se também em jornalismo e filosofia. Um de seus doutorados é em sociologia, feito na França sob a orientação de Pierre Bourdieu. Não é pouca coisa. Foi colega de quarto de Joaquim Barbosa, em Paris. Foi atleta de natação, campeão brasileiro e sul-americano, colega de Ricardo Prado, inclusive fazendo parte da equipe do revezamento 4 X 100 nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, segundo informação do próprio Clóvis.
Graduou-se também em jornalismo e filosofia. Um de seus doutorados é em sociologia, feito na França sob a orientação de Pierre Bourdieu. Não é pouca coisa. Foi colega de quarto de Joaquim Barbosa, em Paris. Foi atleta de natação, campeão brasileiro e sul-americano, colega de Ricardo Prado, inclusive fazendo parte da equipe do revezamento 4 X 100 nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, segundo informação do próprio Clóvis.
Quem leu
Coisas Ditas, de Bourdieu, compreende logo onde Clóvis buscou seu método.
A aula sobre Kant e o século XXI é incrível. As aulas sobre literatura francesa
à luz da filosofia também são muito proveitosas, com destaque para as aulas sobre
O vermelho e o negro, de Stendhal, e Os miseráveis, de Victor
Hugo. Está tudo no Youtube.
Clóvis
parece saber tudo. Eis que ao falar da frase “a beleza está nos olhos de quem
vê”, ele surpreende a mim duplamente. Surpreende-me porque não sabe de onde a
frase vem, ou sugere que não sabe, e porque faz um comentário absolutamente
preciso, certeiro, sobre de onde ela poderá ter vindo.
“O
pensamento moderno se caracteriza por uma revolução”, diz o professor. “É belo
o que agrada, o que alegra, o que de certa forma cai bem a quem contempla. A
ideia de beleza, portanto, se desloca definitivamente para a sensibilidade,
para o corpo, para a singularidade do observador.”
Quando
um de seus alunos lhe pergunta por quem a frase “a beleza está nos olhos de
quem vê” poderia ter sido dita, Clóvis responde: “Certamente não poderia ter
sido dita por Platão, que acreditava na beleza do triângulo equilátero, e o
triângulo equilátero é o mesmo, independentemente dos olhos de quem vê.
Certamente, não por Aristóteles, porque a beleza em Aristóteles pressupunha algum
tipo de eudaimonia e, portanto, uma inscrição num todo ordenado que transcende,
e não apenas nos olhos de quem vê. Portanto, você percebe que quando você fala
que a beleza está nos olhos de quem vê, você reduz a beleza a uma questão de
sensibilidade que é, digamos, uma revolução tipicamente moderna, e poderíamos
pensar a frase a partir de 1600, a considerar essa perspectiva como
historicamente confiável.”
Ao
fazer esta observação, Clóvis diz: “Mas não é só uma questão dos olhos de quem
vê, é uma questão de corpo inteiro.” Com suas palavras, ele então cita
Espinosa: “O mundo nos afeta na medida em que afeta nossa essência, e nossa
essência é nossa potência de agir. (...) O mundo pode aumentar nossa potência
de agir e nos alegrar, ou diminuir nossa potência de agir e nos entristecer. Aí
está o fundamento filosófico da beleza: o mundo é belo porque, e na medida em
que, nos alegra; o mundo é feio porque, e na medida em que, nos entristece. Nosso
corpo inteiro é o critério da beleza do mundo.”
O professor poderia ter sido um
pouco mais dialético e entendido a frase “a beleza está nos olhos de quem vê”
como uma metonímia, em que se usa a parte pelo todo. E aí, a frase se
encaixaria justamente na definição espinosiana dada por ele. Ao longo de todo o
resto de sua palestra sobre beleza, a definição era semelhante ao significado
da frase em questão.
Foi uma bela aula, como sempre,
mas eu poderia discordar sobre o
critério de beleza discorrido pelo professor. Parece-me que beleza na
modernidade é mais que um conceito unívoco, um conceito em torno de uma
qualidade específica das coisas, ou seja, do belo, cujo contrário seria a feiura.
Parece-me
que, na modernidade, a beleza é uma categoria estética cuja imagem é a de um
cacho no qual cabem muitas coisas, inclusive o feio, o horrendo, o sublime, o
grotesco, o cômico e o próprio belo. Eu poderia, inclusive, estender-me e dizer
que a beleza é sinônimo de estética, que é a essência da arte, sua conditio
sine qua non, e que a estética age na obra como um elemento transgressor,
transgressor da moral, dos costumes e da própria linguagem.
Logo,
diante de uma obra como Criança morta, de Candido Portinari, não ficamos
alegres e por isso reconhecemos a beleza da obra. Ficamos tristes e, ainda
assim, reconhecemos sua beleza. Eu poderia enveredar por Edgar Allan Poe, um
dos pais da estética moderna, na literatura, e dizer que a obra que nos enche
de melancolia, enche-nos de beleza, porque a tristeza é o tom da mais alta
manifestação da beleza, daí, Yasunari Kawabata ter um romance com o título Beleza
e tristeza, por exemplo.
“O
mundo pode aumentar nossa potência de agir e nos alegrar, ou diminuir nossa
potência de agir e nos entristecer.” É verdade. Mas isso não tem a ver com o
efeito da beleza em nossa alma, absolutamente, não. O mundo pode nos
entristecer, e ainda assim, considerarmos aquele efeito da tristeza um efeito
de beleza, de arte.
Mas,
voltando para a frase “a beleza está nos olhos de quem vê”, trata-se de um
ditado popular inglês, que o leitor pode encontrar no Dicionário Oxford:
“Beauty is in the eye of the beholder” (buscando pela palavra-chave ‘beholder’ - "a beleza está nos olhos de quem vê"),
significando que diferentes pessoas podem não considerar bonita a mesma coisa
olhada.
Esse
mesmo ditado pode ser encontrado numa peça de Shakespeare, Love’s Labour’s
Lost (Trabalhos de amor perdidos, tradução canônica em português), de
um modo levemente modificado: “Beauty is bought by judgement of the eye”. A
peça foi escrita 1595. Logo, o professor tem razão em dizer que esse modo de
ver a beleza só pode ter nascido por volta de 1600. Mas não tem razão,
parece-me, na exposição sobre o conceito de beleza na modernidade, sobretudo,
na pós-modernidade.
Clóvis
é arredio à literatura em si; acha que é uma perda de tempo ficar lendo ao
bel-prazer. Mas em suas palestras, o volume de citação literária é
impressionante, indo de Gilgamesh a Vidas secas. Por outro lado
(por esse mesmo lado de minha argumentação), nunca vi Clóvis citando John
Milton, Shakespeare, Dante ou Goethe em suas aulas.
Para
contextualizar a frase citada na peça Trabalhos de amor perdidos, o rei Ferdinando de Navarra
decreta um período de três anos vivendo no castelo, junto com três amigos, sem
mulheres e, por um dia da semana, sem comida. Nos outros dias, a refeição seria
servida uma vez por dia. Dormir, só seria permitido durante três horas, sem
cochilar depois. Tudo deveria girar em torno de um banquete de palavras.
Estudar, ler, comentar literatura, palavras, palavras, palavras (para citar um
jargão shakespeariano, em Hamlet), era a ordem.
Eis que entra um séquito de
mulheres e homens da corte francesa, que chega ao castelo sem ser convidado, enviado do rei francês, tendo à frente a princesa da França, que não tem nome na peça.
E começa a confusão. E um dos lordes da companhia da princesa, Boyet (que pelo
nome devia ser bem jovem - talvez Boyet signifique mesmo apenas 'rapazinho', 'garoto', dada a palavra boy, 'rapaz', e o sufixo et, ou let, conferindo ao prefixo um status de pequeno, como em tablet, leaflet etc.) aconselha-a a entrar para falar com Ferdinando, para
fazer-lhe a corte, apresentando-se da melhor maneira possível, mostrando-lhe a
graça, a educação, a inteligência, o brilhantismo inteiro como se a
Natureza, no dia de sua concepção, não tivesse concedido nada a ninguém mais.
E aí, a princesa da
França, vem com essa: “Beauty is bought
by judgement of the eye/ Not uttered by base sale of chapmen’s tongue.” Ou
seja, algo extremamente dialógico, como tudo escrito por Shakespeare, algo do
tipo: “A beleza é uma negociação feita com os olhos de quem vê; não é expressa aos
moldes de um leilão ordinário pela língua de um rapazinho.”