quinta-feira, 28 de julho de 2016

Cool Heart – diário de viagem a Nova York (2)

                                                                                                                                                      Foto: Gilberto G. Pereira
Vista parcial da Ponte do Brooklyn ao anoitecer, tendo ao fundo a impotência luminosa dos prédios de Manhattan 

Dia 2 (7 de julho de 2016)

Saímos de Goiânia na noite de 6 de julho para pegar um voo da Avianca, com conexão em Bogotá, na manhã do dia seguinte. Chegamos ao Aeroporto Internacional de Guarulhos à 1 da madrugada. O check-in seguinte começaria às 3:30. Ficamos zumbizando pelo aeroporto, arrastando malas pra cima e pra baixo nos corredores de conexões até encontrar um ponto bacana perto do balcão da companhia. Não valeria a pena pagar um hotel.

Peregrinação com malas, mulher e filha. Balcão de informação, banheiro, bancos de espera, mesa de lanchonete (não tem café?), mesa de cafeteria, conversa fiada, jogos no celular, bocejos, banheiro, café, bocejos, água, bocejo, conversas rápidas, bocejo, olhos grudados no celular, bocejo, bocejo, bocejo (bateria fraca), bocejo, Penélope deixando cair uma garrafa vazia de água no chão, bocejo. Que horas são?

Na madrugada, não havia muito o que fazer. Trouxe um livro sobre o novo novo jornalismo, que havia lido pela metade, mas perdi a vontade de ter coragem de encará-lo no caminho aberto rumo ao alvorecer. Comecei a pensar nos cenários mais desoladores em que os homens param momentaneamente para se abrigarem, tipo o portal Rashomon, ou aquela casa em Depois da chuva, aquele supermercado em O nevoeiro, ou a vila fatídica comandada por Gary Oldman (e também na estrada, onde uma mulher intranquila arma ciladas para homens incautos), em O livro de Eli.

Em qualquer um desses cenários, os mais confortáveis são aqueles em que há mulheres tranquilas, conversando, rindo de alguma coisa. Se há mulheres tranquilas, o ambiente é de paz, dificilmente é doentio. Só na presença masculina é que não dá pra confiar. Somos sombrios demais para passar uma mensagem de confiança nesses ambientes, por mais tranquilos que pareçamos. Nosso horror nem sempre é exposto, é camuflado às vezes.

Acho que em todos os ambientes citados (à exceção da casa de Depois da chuva), havia mulheres, mas não tranquilas. Se, além de mulheres, houver crianças, então, e se todos estão tranquilos - as crianças com ar de despreocupação com o futuro -, o ambiente está favorável.

Nos bancos de espera dos corredores do aeroporto, não havia perigo eminente. Observei antes de sentar com a família para esperar. Havia dois homens recostados numa pilastra, um homem dormindo numa fileira de bancos sem os encostos laterais, uma mulher sozinha lendo recostada em outra pilastra (ao fundo). O ambiente interno de um aeroporto está longe de ser um lugar de perigo, na comparação com o mundo lá fora (será?).

Mais distante, outras pessoas trabalhavam na manutenção do aeroporto ou nos estabelecimentos 24 horas. De vez em quando, na madrugada longa, transeuntes transitavam. Do nosso lado, sentaram-se três desolados caras que haviam ido ao Morumbi assistir ao jogo do São Paulo contra o Atlético Nacional da Colômbia (que viria a ser campeão). O que viram naquela noite foi uma derrota tricolor. Era a primeira partida pelas semifinais da Libertadores (depois levaria mais um sacode na casa dos adversários e daria adeus à competição). Choramingaram mui civilizadamente, encostaram-se e tiraram uma soneca. Que horas são?

A Penélope aproveitou os dois bancos sem o apoio lateral, encostou a cabeça no colo da mãe e dormiu. Criança dorme em todo lugar. Quando eu era jovem, também dormia em qualquer lugar. Até meus 30 anos, já velho, casado, morando em São Paulo, conseguia dormir de qualquer jeito. Mas agora, aos 41, não consigo mais.

Já dormi em rede em lugares comuns e em lugares quentes. Já dormi em rede em lugares frios no garimpo, aos 13 anos, em rede de garimpeiro, de nylon, fininha, sem coberta. Nessas ocasiões, para não morrer de frio na madrugada, enrolava-me no tecido da rede, ficando de bruços, suspenso, num magistral equilíbrio. Qualquer movimento de desequilíbrio, de pesadelo ou não, me levaria ao chão.

Já dormi em cima de uma mesa (enquanto ouvia na sala de casa o papo de minhas irmãs mais velhas, que por sacanagem me deixaram lá quando peguei no sono). Já dormi em cima de  um pé de abacate no quintal de casa, fugido, para não apanhar do meu pai por causa de alguma acusação injusta contra minha pessoa de 10 ou 11 anos.

Já dormi no chão, em sofás, no colchão no chão sem cama, em colchão sobre cadeiras, já dormi dentro de carro e em cima de um caminhão tanque, estacionado ao léu, num posto de gasolina, sem cobertor, enquanto o motorista ressonava em sua cabine soberana. Já dormi numa rede amarrada debaixo de um caminhão (um outro). Tudo isso antes dos 15 anos.

Já dormir em poltrona de ônibus e de avião, e até em banco de ônibus coletivo (muitas vezes, ao voltar cansado do trabalho). Acho (mas não tenho certeza) que já dormir até na garupa da bicicleta, bem jovenzinho, com meu pai pedalando, bêbado, indo da cidade para um dos sítios onde morei com meus pais até os sete anos. Como não caí nenhuma vez e cheguei vivo, talvez esta memória seja falsa. Já dormi em vários lugares, mas em nenhum desses sonos sonhei com Nova York.

No voo de São Paulo a Bogotá, todo o time do Atlético Nacional estava a bordo. Esqueço-os para me lembrar de Garcia Márquez. Está puesto el recuerdo. No más! Adiós. Conectamos em Bogotá, chegamos a Nova York. Pisava agora em terra firme de novos sonhos.

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quinta-feira, 7 de julho de 2016

Cool Heart – diário de viagem a Nova York


Começa aqui uma série de textos tagueados pelo título acima, sobre minha viagem de duas semanas a Nova York. Os textos serão guiados pela força expressiva da leitura, sobretudo a literária. Afinal, foram os livros que me trouxeram até aqui, é sobre literatura que escrevo e de literatura minha alma abastece todos os dias. Uma das razões pelas quais transformo essa experiência em texto é o fato notório, sabemos disso, de que uma viagem transforma a alma, rediagrama o imaginário. Quero registrar essa transformação, quero averiguar sua extensão.

Quando a viagem é para um lugar que já ocupa o imaginário com um sem-número de símbolos, e este é o caso de Nova York, o que ela faz é redimensionar os horizontes do provável. É preciso dar importância a um evento desses. Por isso escrevo.

Obviamente, quem nasce no bojo das oportunidades e cresce fazendo altas viagens, falando várias línguas, imergindo em culturas diferentes, tem uma configuração diferente dos espaços. Não é o meu caso. Minha experiência é bem outra, que se revelará, espero, ao longo do caminho.

Um segundo motivo para a publicação é mostrar que tipo de aprendizado levarei comigo a partir da transformação no bojo desta viagem. A ideia é descobrir como a literatura e meus aprendizados anteriores me ajudarão a mergulhar num mundo estrangeiro em tão pouco tempo e sair de lá com algo novo. A pergunta crucial é: que tipo de diálogo, de tensão, de conflito, meu eu formado terá com essa nova experiência?

Meus interlocutores imaginários serão meus amigos que - por acaso ou de caso pensado - acessarem meu blog. Outro grupo especial de interlocutores que eu adoraria que acessasse o Leituras do Giba é o de pessoas parecidas comigo na origem social ou étnica.

Sou afro-indígena, pobre e do interior do país, filho de pais semianalfabetos que certamente nunca leram um livro na vida. Eles estão mortos agora. Minha mãe sequer me viu ingressando na faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, onde moro atualmente com mulher e filha (que estão viajando comigo). Meu Pai não me viu terminar a faculdade, em 2000, e ir pra São Paulo fazer o Curso Abril de Jornalismo em Revista.

Uma terceira interlocução, que não descarta a intersecção com as outras, é o grupo de quem aprecia diálogos e ama a literatura. Essa maçaroca de histórias, portanto, é para os que se interessam por viagens, por literatura, pela escrita e por Nova York.

Neste sentido, meu blog procura refletir uma qualidade humanista. Pretende atingir positivamente outras pessoas a partir da literatura e seu redor. Segundo Peter Sloterdijk, em Regras para o parque humano, a função do humanismo é criar uma “comunicação de amizade realizada à distância por meio da escrita.” Esta é a pretensão dos textos do Leituras do Giba, e agora, com mais ênfase, é o objetivo também deste diário.

A viagem a Nova York foi planejada com bastante tempo. Mas o tempo de estadia é curto, e Nova York, portanto, é só o pretexto. O contexto mesmo é Manhattan, mas não necessariamente a dos holofotes gigantes, embora tudo se ilumine na velha Nova Amsterdã, embora eu deva garimpar algum fôlego para explorar, um pouquinho que seja, os outros distritos.

A questão é: será que o encanto sobreviverá à viagem? Será que vou encontrar coisas novas, que ainda não vi nos jornais, nas revistas, nos filmes, nos livros, nas conversas sobre a cidade, na ficção fingida, aquela que translitera verdades como se fossem mentiras?

Nova York não me espera. Serei solenemente ignorado por milhões de olhos, passarei eufórico por arquiteturas soberbas que me ignorarão, por luzes velozes trincando minhas expectativas. Mas não receio o silêncio. Serei só mais um, eu sei. No entanto, sei também o que quero dela.

Quero o chão, o tato das ruas, o cheiro e o som conduzidos pelo vento. Quero o Harlem e sua renascença. Saberei quando for vento do leste e do oeste. Busco sua tessitura histórica. Evoco a claridade calorosa da Marcus Garvey Square, a resistência vivida da Washington Square. Quem conhece a biografia de Janet Jacobs sabe do que estou falando. Quero a sabedoria sistemática de Alain Locke.

A Estátua da Liberdade, coitada, não contém 1% de minhas expectativas. Statue of Liberty, what a pitty! Mas se não visitá-la para dizer “Hello!”, não terei ido a Nova York. Terei de subir lá para cumprimentá-la e dizer: “Hello, it’s not you I’m looking for”. Faz parte do show, e será uma parte tão pequena que sequer ameaça atrapalhar o show de sensações dentro de mim.

São as aventuras intelectuais que me levarão a Nova York, em meio a afagos e promessas de pai, nascida de conversas com uma certa infância, que me é cara também. Como já disse, minha mulher e minha filha me acompanham nessa viagem, e para cada coração há uma expectativa. Minha irmã mais velha se juntará a nós também, nesta quinta-feira (7 de julho), quando chegarmos ao JFK, vindo de Charleston, onde está passando uns meses com amigos.

Não me lembro mais quando foi que li ou ouvi o nome Nova York pela primeira vez. Mas acho que a origem de meu fascínio por Manhattan possa ser Gotham City (memórias fictícias?). Também há a história de um atlas, que virá depois (perchance).

Os prédios estilizados. Batman fitando a noite sobre os arranha-céus. Batman veloz no batmóvel em uma das ruas retas com prédios enfileirados. Estas são as únicas cenas de que me lembro das HQs do velho morcego. Não sou fã do herói taciturno da DC, mas confesso que ficava fascinado pelas sombras dos espigões de Gotham City ao folhear as revistas sem poder comprá-las, quando garoto, no pé de uma banca.

Nessa época, eu tinha uns 9 anos e morava numa cidadezinha de 4 mil habitantes no interior do Mato Grosso chamada Porto Alegre do Norte. O Homem-Aranha seria mais parecido comigo. Suas aventuras pelas paredes dos mesmos prédios, no entanto, não me chamaram a atenção naquela época. No soturno coração de Manhattan passeava Batman. Foi ele, o homem-morcego, que fez pulsar no meu rubro coração a primeira consciência de Nova York.

Não sei se já sabia que Gotham City era Nova York, e que as fileiras de prédios configuravam Manhattam. Mas em algum momento as duas coisas embaralharam em minha memória. De livro em livro, de leitura em leitura, Nova York foi criando contornos cujo cerne sempre foram os espigões da ilha dos lenapes.

Dia 1 (6 de julho de 2016)

O começo é mesmo pobre. Depois, talvez melhore, talvez algo aconteça pelo caminho, e o que era prosaico torna-se heroico e rico.

Saímos de casa, na Vila Nova em Goiânia, bairro que aprendi a amar como já amava Goiânia (o que amamos quando amamos uma cidade?) às 20:30, para pegar o voo de Goiânia a Guarulhos às 21:58. Iniciei a viagem com a ideia de desenvolver um conhecimento sensível de Nova York, e então pensei em exercer a sensibilidade simplista desde o começo. Mas ainda em Goiânia tive de amargar um taxista insensível, que não gostou de eu lhe perguntar se havia mudado o trajeto depois da reforma do aeroporto.

Pensando no jogo do São Paulo com o Atlético Nacional da Colômbia, no Estádio do Morumbi, na Pauliceia, pelas semifinais da Libertadores, embarquei com a família às 22h (com dois minutos de atraso), apostando numa vitória de 2 a 0 do tricolor. O voo, num Airbus A320, foi tranquilo. O lanche foi enroladinho de queijo com as opções de copo de guaraná,  coca-cola, suco de manga ou pêssego, em doses liliputianas. Escolhi guaraná.

A turbulência me sacudiu quando desci do avião. Às 23:25, chegamos a Guarulhos. Liguei o celular, e lá estava a derrocada. O Nacional havia metido 2 a 0 no São Paulo. Desisti ali da Libertas (quae, mano, será?). Também, numa puta aventura rumo a Nova York!

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