Não se trata da leitura de poesia concreta, mas poderia ser. O livro Culinária Japonesa (Larousse, 2009, 160 páginas), de Harumi Kurihara, além de trazer dezenas de receitas, diz por que os pratos tradicionais do Japão podem ser considerados arte. De modo geral, os chefs de qualquer cozinha do mundo vão afirmar a mesma coisa em relação a suas respectivas especialidades. Cozinhar é uma arte.
Mas, no caso da cultura nipônica, o interessante é ver os procedimentos artísticos próprios de sua culinária, que se assemelham aos de um tipo de poesia muito popular até hoje no Japão, que influenciou inclusive poetas do concretismo brasileiro, o haicai. Segundo Harumi, a comida japonesa prima pela preocupação com a saúde, mas não deixa de aliar o saudável ao estético.
Como o Japão é um país isolado do continente asiático, sendo composto por ilhas, o espaço é exíguo para a criação de animais e por isso sua base alimentar é feita de arroz, peixes (crus) e frutos do mar. Ao travar essa relação íntima com aquilo que a natureza lhes oferece, os japoneses criaram também o hábito de consumir só alimento fresco e de acordo com a estação, aliado à simplicidade da composição dos pratos, com a escolha certa de combinações, sempre com pouca quantidade de comida.
E é aqui que entra a ligação com a poesia. O haicai é um gênero poético criado por Matsu Bashô (1644-1694), feito em três versos, com cinco, sete e cinco sílabas respectivamente, tendo obrigatoriamente de colocar ou sugerir uma das estações do ano em um dos versos. A sazonalidade imprime no poema o estado de espírito do sujeito poético, faz a ponte entre interioridade e exterioridade, como no exemplo abaixo de um poema de Bashô:
A cigarra... Ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer (tradução de Manuel Bandeira)
Não é difícil ver aí a primavera, nem a sugestão de transitoriedade, da passagem do tempo que leva tudo embora, deixando apenas uma sensação de angústia e espanto, que é a interioridade do poeta. É claro que há muito mais nesses três versos, como o risco do efêmero e a beleza (a arte) desafiando a morte, mas o que interessa neste momento é esta relação de simplicidade, economia e leveza. Eis o laço entre a culinária japonesa e a poesia do haicai.
Segundo Harumi, na preparação de um prato, três princípios devem ser seguidos: a variedade, a sazonalidade e a apresentação. Dentro dessa proposta as técnicas devem ser precisas e cuidadosamente executadas, levando em conta o frescor do alimento e a escolha dos pratos (recipientes), em suas cores e tipo de material (porcelana, vidro, madeira). “No verão usamos muito os pratos de vidro, pois eles nos transmitem a sensação visual de frescor”, diz.
Essa preocupação estética vai aos mínimos detalhes. Cada prato, por exemplo, tem de ter “apenas uma pequena quantidade de comida, de forma que um deles (a comida ou o prato) possa ser visto e apreciado”, ensina a chef. A pouca comida de cada vez não significa miséria gastronômica. “Achamos que se devem comer cerca de 30 tipos de pratos diferentes por dia”, diz Harumi, mostrando que não há necessidade de se encher um prato até a borda, principalmente do tamanho e da fundura desses que se usam no Ocidente. Aliás, esse comportamento de glutão é uma ofensa aos japoneses tradicionais.
Harumi é uma sumidade em sua área no Japão de hoje. Suas receitas são muito requisitadas e seus livros devorados tanto quanto a comida que ensina a fazer. Apesar das observações acima levarem a crer que ela segue a linha tradicional da culinária japonesa, na verdade, a chef é adepta da fusion cuisine e mistura vários ingredientes ocidentais em suas preparações. Mas sempre com o maior respeito a suas raízes. Nada de extravagância. Tudo é feito com simplicidade, bom gosto e apreço à arte milenar do bem comer. “Acreditamos que a simplicidade seja um elemento essencial da beleza”, conclui.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
Mas, no caso da cultura nipônica, o interessante é ver os procedimentos artísticos próprios de sua culinária, que se assemelham aos de um tipo de poesia muito popular até hoje no Japão, que influenciou inclusive poetas do concretismo brasileiro, o haicai. Segundo Harumi, a comida japonesa prima pela preocupação com a saúde, mas não deixa de aliar o saudável ao estético.
Como o Japão é um país isolado do continente asiático, sendo composto por ilhas, o espaço é exíguo para a criação de animais e por isso sua base alimentar é feita de arroz, peixes (crus) e frutos do mar. Ao travar essa relação íntima com aquilo que a natureza lhes oferece, os japoneses criaram também o hábito de consumir só alimento fresco e de acordo com a estação, aliado à simplicidade da composição dos pratos, com a escolha certa de combinações, sempre com pouca quantidade de comida.
E é aqui que entra a ligação com a poesia. O haicai é um gênero poético criado por Matsu Bashô (1644-1694), feito em três versos, com cinco, sete e cinco sílabas respectivamente, tendo obrigatoriamente de colocar ou sugerir uma das estações do ano em um dos versos. A sazonalidade imprime no poema o estado de espírito do sujeito poético, faz a ponte entre interioridade e exterioridade, como no exemplo abaixo de um poema de Bashô:
A cigarra... Ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer (tradução de Manuel Bandeira)
Não é difícil ver aí a primavera, nem a sugestão de transitoriedade, da passagem do tempo que leva tudo embora, deixando apenas uma sensação de angústia e espanto, que é a interioridade do poeta. É claro que há muito mais nesses três versos, como o risco do efêmero e a beleza (a arte) desafiando a morte, mas o que interessa neste momento é esta relação de simplicidade, economia e leveza. Eis o laço entre a culinária japonesa e a poesia do haicai.
Segundo Harumi, na preparação de um prato, três princípios devem ser seguidos: a variedade, a sazonalidade e a apresentação. Dentro dessa proposta as técnicas devem ser precisas e cuidadosamente executadas, levando em conta o frescor do alimento e a escolha dos pratos (recipientes), em suas cores e tipo de material (porcelana, vidro, madeira). “No verão usamos muito os pratos de vidro, pois eles nos transmitem a sensação visual de frescor”, diz.
Essa preocupação estética vai aos mínimos detalhes. Cada prato, por exemplo, tem de ter “apenas uma pequena quantidade de comida, de forma que um deles (a comida ou o prato) possa ser visto e apreciado”, ensina a chef. A pouca comida de cada vez não significa miséria gastronômica. “Achamos que se devem comer cerca de 30 tipos de pratos diferentes por dia”, diz Harumi, mostrando que não há necessidade de se encher um prato até a borda, principalmente do tamanho e da fundura desses que se usam no Ocidente. Aliás, esse comportamento de glutão é uma ofensa aos japoneses tradicionais.
Harumi é uma sumidade em sua área no Japão de hoje. Suas receitas são muito requisitadas e seus livros devorados tanto quanto a comida que ensina a fazer. Apesar das observações acima levarem a crer que ela segue a linha tradicional da culinária japonesa, na verdade, a chef é adepta da fusion cuisine e mistura vários ingredientes ocidentais em suas preparações. Mas sempre com o maior respeito a suas raízes. Nada de extravagância. Tudo é feito com simplicidade, bom gosto e apreço à arte milenar do bem comer. “Acreditamos que a simplicidade seja um elemento essencial da beleza”, conclui.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)