O novo romance de Rubem Fonseca, O seminarista (Agir, 2009, 184 páginas),
não traz nenhuma proposta inovadora em termos de linguagem. Mas o ritmo da
narrativa do autor de A grande arte ainda
é capaz de deixar um rastro que demora a apagar na memória do leitor. Para quem
desconhece sua literatura, o título oferece a primeira pista falsa desta
história policial narrada em primeira pessoa e lotada de caminhos que não vão a
lugar nenhum, como é de praxe no gênero.
José é um ex-seminarista que
deixou a vida monástica por ser exageradamente libidinoso e não conseguir viver
sem sexo. Depois disso, poderia ser muitas coisas, segundo ele mesmo, mas
decidiu ser assassino profissional. Por alguma razão não explicitada, talvez
por puro exercício da escrita, como quem usa a pena para matar o tempo, ele
quer contar a história de como ficou sua situação ao tentar deixar o crime.
Logo após decidir se aposentar da
vida de pistolagem, José se vê às voltas de criminosos querendo assassiná-lo. Para
não morrer, passa a matar de novo. Nesse ínterim conhece uma mulher chamada Kirsten,
uma alemã que se diz tradutora e que está vertendo para sua língua O triste fim de Policarpo Quaresma, de
Lima Barreto. É dentro desse esquema de conspiração, amor, sexo e morte, que a
história de José se constrói.
“Sou conhecido como o
Especialista, contratado para serviços específicos. O despachante diz quem é o
freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço. Antes de entrar no que
interessa – Kirsten, Ziff, D.S., Sangue de Boi – eu vou contar como foram
alguns de meus serviços.” É assim que abre o primeiro parágrafo, demonstrando
que não há espaço para a reflexão.
Na verdade, o narrador é direto,
objetivo, embora sugira o contrário, fazendo parecer que está a fim de enrolar
um pouco. À medida que avança, o leitor se envolve nos desenhos precisos das
cenas de ação. De vez em quando, a tensão traz à tona sutis pinceladas de inflexões
emotivas ou críticas. É a cartada do mestre Fonseca, cuja habilidade para
construir uma narrativa que respira o real é admirável.
José sabe escrever e, mesmo não sendo
um escritor profissional, narra com facilidade. Apesar de ser um metido a culto,
que passa o tempo todo citando frases em latim, vício do seminário, sua narração
é límpida, clara, sem embustes. Neste quesito, este é semelhante a todos os
outros romances de Fonseca. A diferença vem na maneira como o autor faz a fusão
entre literatura, gastronomia, sexo e violência. Talvez esteja aí a razão de
José narrar seus feitos. Talvez ele queira comparar o prazer de matar ao de
fazer sexo, ler, comer e se exibir, fazendo do leitor um voyeur.
Duas cenas descritas em momentos
diferentes lapidam a junção do prazer gastronômico e o de matar. No primeiro
caso, José leva seu amigo D.S. para almoçar num restaurante português, e o resultado
disso é uma receita inteira impressa no romance, estendendo o prazer da leitura
ao prazer da comida.
“‘O que temos hoje em matéria de
bacalhau, seu João?’
‘Temos bacalhau à Gomes de Sá,
bacalhau à Zé do Pipo e bacalhau à João do Buraco. O senhor sabe que há mais de
cem maneiras de fazer bacalhau?’
‘Sei, seu João, sei. O que o
senhor nos aconselha?’
‘Estão todos muito bons’, disse o
seu João com um forte sotaque, ‘mas o bacalhau à Gomes de Sá eu mesmo preparei,
comecei ontem, pu-lo de molho numa bacia de água, trocando a água seis vezes,
depois escorri o bacalhau, retirei-lhe as peles e as espinhas e desfi-lo em
pequenas lascas que coloquei numa panela funda, cobri-a com leite bem quente e
deixei ficar em infusão por três horas. Enquanto isso, cortei as cebolas em
rodelas e o dente de alho e levei a alourar ligeiramente numa frigideira de
ferro com um trisco de azeite até que ficassem translúcidas e levemente
amarronzadas, em seguida juntei batatas, que haviam sido cozidas com a pele e
depois peladas e cortadas também em rodelas, e juntei o bacalhau escorrido,
mexi tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar, temperei com sal e pimenta,
coloquei num tabuleiro de barro e levei-o a um forno bem quente durante quinze
minutos, o Joaquim deixa ficar vinte, mas eu prefiro quinze minutos, com o
forno a duzentos graus. Depois que tiro do forno deito-lhe salsa picada e
enfeito-o com rodelas de ovo cozido e azeitonas pretas. É somente para oito
pessoas. Não gosto de fazer em grande quantidade.’”
Na outra cena, o leitor se
espanta enquanto o narrador se delicia, mesmo não demonstrando.
“Quebrei outro dedo e ele sorriu
para mim, um sorriso de desprezo. Já tive um dedo quebrado, doeu para caralho,
até hoje é uma parte morta do meu corpo, parece um arame retorcido. Mas eu
também aguentei a barra. Igual aquele cara. Ele não ia abrir o bico nunca,
conheço as pessoas. Além do mais, e principalmente, eu estava me sentindo mal
em torturar aquele cara, odeio fazer os outros sofrerem, é por isso que sempre
dei um tiro na cabeça dos meus fregueses, li em um livro de medicina que a
morte é instantânea e sem dor. Coloquei o silenciador na Glock. Dei um tiro na
sua testa, com o cano afastado, não queria abrir uma cratera no seu rosto.
Confesso que lamentei ter que matar o cara, ele tinha caráter.”
E assim segue a narração de O seminarista, cumprindo o sacerdócio
que ele mesmo escolheu. Entre um assassinato e outro, José leva seus pares para
almoçar ou é convidado por eles a um jantar, um café. Foi numa delicatéssen,
quando tomava café, que ele conheceu Kirsten. Ela havia derrubado
acidentalmente um expresso no braço dele, e aí a conversa foi inevitável. Para
um leitor de romance policial, a primeira imagem que vem à cabeça é a de uma
cilada. Quando se sabe que ela é tradutora, outra associação se junta à
primeira: tradutora/traidora. Esse jogo de tensão entre leitor e narrador é um
procedimento típico do gênero que Fonseca sabe criar com precisão.
Outra característica de sua obra
é que os narradores adotam sempre um ponto de vista da classe média. São
intelectualizados, sempre citando algum livro que leram e forjando estereótipos
sobre as classes menos favorecidas, socioeconômica ou intelectualmente. José
segue a regra. A certa altura da narração, ele diz: “A choldra agora era assim,
falante, devia ser influência da televisão, bigbrothers, filmes de sacanagem,
essa merda.” Ou: “Todo pé-rapado que ascende socialmente acaba aprendendo a
jogar golfe, a andar a cavalo e a escolher vinhos finos.”
O esnobismo e o pernosticismo
(não da escrita, mas do personagem) são características muito presentes na
literatura de Fonseca, aparecendo ali como crítica social. A ironia, o
sarcasmo, o humor negro também surgem, muitas vezes, diluídos na narrativa. Dessa
maneira, a caracterização dos personagens principais é muitas vezes um sarcasmo
dentro do cenário criado. Eles vêm de uma situação de minoria ou de
marginalização. O narrador de Bufo & Spallanzani, por exemplo, é negro e gordo. José é magro, feio e assassino.
Já a crítica social se estende ao
desvario estético da contemporaneidade. Neste sentido, há uma cena de ironia
com destino certo, que é quando José tem de falar de si para Kirsten e, sem
poder dizer a ela o que faz, inventa uma profissão:
“‘O que você faz?’
‘Sou artista plástico.’ (Quando
usava terno e gravata e sapatos finos eu dizia que era consultor financeiro.)
‘Pinta?’
‘Não. Crio instalações.’
‘Instalações?’
‘Uma forma de recriar um
ambiente. Pintura, escultura, essas coisas acabaram no século XXI.’
‘Lamentável. Quer dizer que se eu
tiver um Picasso devo jogá-lo no lixo?’
Percebi a ironia na sua voz, mas
não passei recibo.
‘Não, de jeito nenhum. Tem muito burguês
rico e ignorante que continua comprando esse tipo de arte, influenciado pelos
marchands. Eu se tivesse um Picasso passava ele nos cobres.’”
A estética que resulta da
narrativa de O seminarista é
profundamente sensual, ligada aos sentidos da maneira mais capital possível. Ou
seja, é uma estética do corpo e da alma do homem caído, do mundo decadente. A
velha fórmula dentro da qual todos os narradores do autor se movem é compensada
aqui pela alta voltagem de sensações lançadas a cada frase.
O autor
Rubem Fonseca é uma
personalidade, faz parte da paisagem artística carioca, mas não gosta de se
expor à mídia. Não gosta de dar entrevistas, nega a si mesmo diante das pessoas
que o reconhecem. Mesmo assim não é raro encontrá-lo na praia, e quando isso acontece
alguém diz a ele “você parece o Rubem Fonseca”, e ele sempre responde: “É. Já
me disseram isso.”
Nascido em 1925, em Juiz de Fora,
interior de Minas Gerais, mudou-se para o Rio de Janeiro com a família aos oito
anos de idade. Antes de se tornar escritor perambulou por outras áreas,
trabalhando como office boy, escriturário, nadador, ajudante de mágico, revisor
de jornal, comissário de polícia, até se formar em direito e se tornar
professor da Fundação Getúlio Vargas e depois executivo da Light, companhia de
energia elétrica carioca.
Só foi publicar o primeiro livro
próximo dos 40 anos, em 1963. Era uma coletânea de contos, Os prisioneiros, gênero
que elevou seu nome internacionalmente. O gênero policial dentro do qual figura
sua obra não engessou a criatividade do autor, que soube elaborar uma estética
própria, uma atmosfera singular a seus livros, que entre os mais conhecidos
estão Lúcia McCartney, Feliz ano novo, A grande arte e Agosto. Este último
conta os dias finais de Getúlio Vargas e virou minissérie da TV Globo.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
Serviço
Este livro pode ser comprado no site da Livraria Cultura.
Título: O seminarista
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir, 2009, 184 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 39,90