Lucinha Proença e Vinicius de Moraes
Em uma das cartas que enviou para sua irmã, e que está presente na
coletânea organizada por Ruy Castro, Vinicius de Moraes (1913-1980)
descreveu o uso poético que queria fazer de sua própria vida, que
ele mesmo disse ser regra que não é regra. “Só andar na ponta
dos pés. Só ser delicado. Só aceitar o inaceitável. Só criar em
alegria, e sobretudo: só ser íntimo.”
Só ser íntimo. Eis uma coisa difícil. A intimidade expõe a alma
do sujeito, tal como ela é, sem subterfúgios. Mas era Vinicius. E
se existiu uma coisa exposta por ele em sua inteireza foi sua alma,
alma de poeta, diga-se, mas diferente de tantos outros grandes poetas
brasileiros, como João Cabral de Melo Neto, para ficar no hall dos
diplomatas e sedutores.
No dia 19 será celebrado o centenário de nascimento de Vinicius de
Moraes, um poeta que admiro. Diria mais. Queria sê-lo, não pelas
mulheres que teve, e foram tantas e tão bonitas, nem pelos uísques
que bebeu, e foram tantos e tão dionisíacos, nem pela poesia que
fez, que é uma das que mais aprecio em língua portuguesa. Queria
ser Vinicius de Moraes pela capacidade incrível que ele tinha de
compreender as pessoas, e depois, como consequência disso, amá-las
e conquistá-las.
Vinicius não teve inimigos. Teve, isso, sim, alguns antagonistas,
mas não por causa de sua vida, só por causa de sua poesia, etérea
demais, depois chã demais, diziam. Os concretistas não gostavam
disso. Não gostavam porque não queriam entender, eram
intelectualizados demais. Não que ele não fosse.
Se fizéssemos um aperto imaginário, como quem torce roupa, nos
poemas de Haroldo de Campos, sairiam tintas de todos os matizes, uma
beleza multifônica, uma dialogia trincante e fluorescente. Mas a
poesia de Vinicius, se a torcêssemos imaginariamente, sairiam dali
sangue em meio à morte e à vida, o fôlego, o ritmo absoluto da
existência pulsante.
Queria ser Vinicius de Moraes por essa capacidade de sentir a vida
intensamente que ele nos mostrou em versos, esse rasgo de luz em meio
à escuridão, essa capacidade de transformar a tristeza em alegria,
de expandir uma bolinha de gude em um universo inteiro.
Queria ser Vinicius por ele ter vivido o amor nas suas esferas mais
humanas, por ter passado por esse mundo e feito minguar a pobreza de
nosso coração, dando-nos a oportunidade de diminuir o índice do
analfabetismo afetivo. Tinha alma de poeta, e isso equivale a dizer
que possuía a destreza para transitar entre o homem e a criança que
também era. Para ser Vinicius seria preciso ser poeta. Era isso que
ele era, e era o que dizia ser, embora no fim da vida tenha se
considerado sobretudo músico.
Tinha o dom de aliar o rigor da forma, como nos sonetos, ao estilo do
nonsense infantil e divertido, como nas canções da Arca de Noé
e nos poemas em que brinca com a morte, beija-a, afaga-a, íntimo.
Por isso, só por isso, eu queria ser Vinicius de Moraes. O resto
seria mera consequência.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular,
04/10/2013)
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