terça-feira, 29 de julho de 2008

O CAVALEIRO DA TRISTÍSSIMA FIGURA: o velho Batman em São Paulo

“Para mim, envelhecer é aceitar a espera da morte como o ponto extremo de um processo contínuo”
Kenzaburo Oee (1935 - )

Detalhe de prédios da região da Consolação, em pleno coração de São Paulo, a cidade mais desvairada do mundo

No centro de São Paulo, onde moro, um homem se instala, tão velho e cheio de histórias quanto as paredes dos edifícios dessa cidade sólida. Sua principal parada é a Avenida Consolação. É de lá que ele ouve os rumores do caos e observa a paisagem cinzenta da cidade mais desvairada do mundo, com seus prédios envelhecidos e tristes, abrigando uma região que se bifurca: uma elite, pouco mais a oeste (Higienópolis) e um conglomerado decadente de bairros.

É nesse cenário que ambienta a história dele, o velho morcego, saído de Gotham City para morar (ou seria morrer?) aqui, em Sampa, ou melhor, na Boca do Lixo, dividindo espaço com travestis, putas, viciados, traficantes, gente de bem, assassinos em potencial, assassinos foragidos, por foragir, estudantes, profissionais liberais, artistas, bebuns, cafetões, cafetinas, aventureiros, boêmios de toda sorte, homens de toda cor, famílias bem amarradas e outras nem tanto, policiais nojentos, policiais pretensiosamente honestos, policiais da polícia, policiais dos bandidos, mendigos e outros seres que povoam a região, muitas vezes sem saber por que ou como vieram parar aqui.

Não saber por que veio, nem como veio, parece ser a sorte do Cavaleiro da tristíssima figura, personagem do livro homônimo de Jorge Miguel Marinho, um livro para bons leitores, interessante nesses dias de exposição da figura do Batman em sua origem. Neste caso, o foco é seu fim.

O velho morcego se esconde num desses prédios desencantados à margem da Consolação. Perambula à noite por tudo quanto é beco e escuridão, mas ninguém o reconhece, e sua solidão cresce a cada dia.

Tudo desfila diante dele. Tudo ele vê passar, como pássaros fugazes no entardecer. O que permanece é a lembrança eterna a cada olhar de contemplação nesse quadro melancólico.

Como se sabe, foi Dom Quixote o cavaleiro da triste figura, o homem desvairado que lutou contra moinhos de vento, mas com sustentação convicta de que combatia monstros terríveis.

Agora Batman é um desses combatentes. Em sua cidade natal, o velho morcego, em pleno vigor, vencia o mal, mas aqui, já decrépito, sexualidade revelada, não passa de uma figura deprimente se debatendo para sobreviver. Igual a todos que aqui moram, morrem, vivem, choram e riem, na esperança de colorir seu pedacinho de mundo, revelado em rápidas tomadas aéreas para cenas de novela e propaganda política.

A Praça da República nem sempre foi medonha, nem sempre se chamou República. Já foi local distante da elite, depois se tornou seu reduto, depois se tornou praça boêmia, depois se tornou lixo, e hoje, esforço para uma revitalização. Um esforço que traduz com mais vigor nosso dom para o quixotesco.

A Avenida Ipiranga, cujo cruzamento com a São João já não causa mais coisa alguma no coração de ninguém, a não ser medo, que não deixa de ser algo cardíaco, possui – um pouco mais acima da famosa esquina – três prédios de inestimável valor histórico e cultural: O Copan, o Edifício Itália e o prédio do antigo Hotel Hilton, que ainda espera um desfecho para seu destino. São ícones de um passado quase perdido.

Batman triste e velho em sua última narração, anunciando o fim, numa região sem glamour, a não ser aquele fabricado por saudosistas e reformistas, e por aqueles que aqui resistem, abraçados a uma vaidade perdida, numa luta quixotesca para refazer seu mundo.

Só os cavaleiros da tristíssima figura ainda debatem, em respiração ofegante de velhos guerreiros. Nesta região, a Virada Cultural vem e passa, deixando um rastro de lixo e som, que lança sempre uma esperança, mas depois some. Depois volta, depois some. Depois volta, depois some.

E o velho Centro definha, com beleza e tristeza, esperança e fé, mas sem juventude e sem poder desaparecer de vez. O cavaleiro da tristíssima figura não tem mais força para a revolta, nem para trazer de volta o encantamento.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gilbatman,

O Homen-morcego sempre foi meu mascarado preferido, não pelo tom gótico ou pela parafernália tecnológica que sua rica herança podem comprar...esse atormentado herói que faz da ausência de luz o focado palco de suas atividades clandestinas, me é caro por ter um elemento único e vorazmente próximo de qualquer um de nós: o humano. Sofre, pensa, joga, agoniza, esconde, age, recua, utopiza, mascara e desmascara...Quem de nós não é assim??? Quixotesco, ainda resiste aos desencantos do tempo e seus comparsas; acredita em algo que, talvez, nos escape aos olhos enegrecidos pela poluição vital (não só a do ar, água e ambiental em geral, mas a da desilusão, do arrependimento e da desesperança).
Talvez eu seja uma perdida numa vida curta, talvez eu ainda veja flores em vocês, maybe...maybe...may...mas mesmo assim meu coração pulsa forte quando vou ao centro tomar mate com leite, fuçar na galeria do rock ou simplesmente pagar a fatura da loja de departamentos. Argh! romântica não deve ser a característica preferida do meu Homen vampiro das artérias urbanas. Vou para a toca. Good NIGHT. Flávia Wayne.

Gilberto G. Pereira disse...

Batflávia, você só abrilhanta este humilde blog.
Concordo com você. Afinal, publicar blogs, como eu faço e mais milhões, é quixotesco demais, às raias de Sancho Pança.
Um abraço!