A história nasceu com a escrita. A história da escrita, portanto, é ao mesmo tempo relato e explicação de si mesma, ou seja, metalinguagem. Esse desdobramento da memória foi objeto de pesquisa do escritor goiano Adovaldo Fernandes Sampaio. Seu livro Letras e memória: uma breve história da escrita (Ateliê Editorial, 2009, 304 páginas) é uma rajada de luz sobre 50 séculos de códigos pictográficos, ideográficos, silábicos e fonéticos. É uma viagem histórica e etnolinguística indispensável a quem quer olhar de perto as ferramentas que propiciaram a evolução do pensamento e das civilizações.
O livro conta e encanta. O que há em sua proposta final é a paixão pelas aventuras das letras, que transparece pela escritura do autor. Às vezes a pena corre como quem faz versos livres. Às vezes quer refletir sobre o tempo da palavra escrita, como bem diz o subtítulo. Outras vezes o que surge é uma paisagem de campo aberto, sobre a qual o leitor corre os olhos e se delicia com essa espécie de arqueologia da representação.
O rico acervo de ilustrações ajuda o leitor a mergulhar nesse universo fascinante em que há todos os sistemas de escrita, desde as pictográficas, como os hieróglifos, até os alfabetos mais conhecidos e usados hoje, como o latino e o árabe, além de desenhos e fotografias. Ao longo do percurso, encontramos línguas e escritas exóticas e esquecidas, que ressoam apenas na cabeça dos estudiosos do assunto ou de parcos falantes, restritos ao seu local de origem.
É assim que podemos ler sobre a escrita vatteluttu, que dá suporte ao tâmil, “a mais antiga das línguas dravídicas”, falada em lugares como o Sri Lanka e Ilhas Fiji. Já o sistema mkhedruli, segundo Sampaio, é um alfabeto composto de 28 consoantes e cinco vogais, usado pelo Azerbaijão e pela República da Geórgia desde o século X.
Essas informações teriam baixo grau de interesse do leitor não fosse a malha de letras e textos que vem junto para ilustrar. É aí que está o encanto do livro. Tudo foi feito dentro da declarada intenção do autor de criar um longo poema visual, além da informação e da análise, que também fazem parte de sua proposta.
Na abertura do livro, Sampaio faz um aquecimento, um tipo de ginástica da erudição, citando frases da literatura brasileira e provérbios de várias culturas, para designar vocábulos diretamente ligados ao ato da escrita, como a frase de Aldo Moreni: “Escrevi seu nome na areia das praias de muitos mares. Um dia vou esquecê-lo, mas restarão as árvores, com suas cicatrizes, para mo lembrar.”
Ou a de Carlos Drummond de Andrade: “Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos.” Também aproveitou a lateral de uma página para, sob figuras representativas, escrever um provérbio latino, “verba volant, scripta manent”, e na folha seguinte registrar a tradução sem que o leitor menos atento desse conta: “As palavras voam, os escritos ficam.”
O verbo do princípio
Esse exercício de conhecimento livresco e, sobretudo, de consciência da escrita, apoiado por um valoroso trabalho de pesquisa, culmina com a citação de livros raros, traçados em línguas cujas palavras voaram das bocas humanas faz muito tempo.
Um desses é o Popol Vuh, O livro dos mortos, escrito pelos maias em hieróglifos, na língua chol, livro “que traz a origem do fogo, a explicação das características físicas de certos animais, a origem do sacrifício humano por extração do coração, o castigo pela soberba, o nascimento milagroso dos heróis culturais” etc.
Os hieróglifos criados pelos maias registraram também dados sobre astronomia e matemática, em livros ou textos que foram quase totalmente queimados pelos espanhóis, que, numa visível intenção de dizimar qualquer vestígio da cultura maia, os consideravam carregados de “falsidades do demônio”.
O que Sampaio traz de mais curioso da civilização maia, no entanto, em termos de registro gráfico, é o sistema numérico. Trata-se de uma sequência de sinais binários, um ponto e um travessão (chamado de barra, por Sampaio), em que o primeiro vale 1 e o segundo, 5. Para grafar 9, por exemplo, usam-se quatro pontos sobre um travessão. Para registrar 10, basta riscar dois travessões sobrepostos, e assim sucessivamente.
O pensamento organizado em torno da escrita inventada e praticada pelos maias, visto em conjunto com aquilo que outras sociedades ao longo da história também desenvolveram, mostra uma grande sincronia evolutiva das línguas. No começo do capítulo que trata das diferentes formas de escrita e de línguas, Sampaio diz o que muitos etnólogos também afirmam:
“O ser humano, em qualquer tempo e em qualquer lugar, é sempre o mesmo. Falando diferentes línguas e valendo-se de diferentes tipos de escritas, pensa e diz as mesmas coisas, ainda que as expresse de maneiras diferentes, numa unidade na diversidade, ou numa diversidade na unidade, que faz a diferença e o encanto de sua trajetória, de seu inter-relacionamento.”
O poder escrito
No rastro da escrita, a produção e a conservação do pensamento trazem consigo outro fenômeno importante ao longo da história da humanidade: o poder. O autor sabe e diz que o sistema de escrita gera dentro de si uma força capaz de obliterar uma cultura inteira, trazendo à tona outra sociedade, que por sua vez será ultrapassada, ou dizimada a partir da maneira de se organizar o pensamento por meio do registro da língua.
Não foi por outra razão que os espanhóis queimaram os textos maias no século XVI. Nem foi diferente o objetivo do imperador Huang Ti, ao mandar queimar todos os livros do grande império chinês, só deixando incólume o I-Ching, pela verdade espiritual que o livro trazia.
Argumento semelhante foi usado pelos árabes muçulmanos quando começavam a criar seu império e dominaram a cidade de Alexandria, em 642. A primeira ordem foi a de queimar totalmente a biblioteca, que já havia sido incendiada pelos romanos (Júlio César) em 47 a.C. e pelos cristãos (Teodósio I), em 391.
Na ocasião da primeira grande queima dos livros da Biblioteca de Alexandria ordenada pelo califa Omar ibn al-Khatab, em 642, sua justificativa foi simples e direta: “Se são de acordo com o Alcorão, são inúteis; se são contrários ao Alcorão, são perniciosos.” Segundo Sampaio, a biblioteca fora fundada em 304 a.C. pelos egípcios, no reinado de Ptolomeu I Sóter, e chegou a ter entre 550 mil a 700 mil rolos de papiro, dando um total de 30 mil livros completos.
Há quem diga, no entanto, que esse negócio de dizer que os muçulmanos foram os responsáveis pela perda do patrimônio cultural da humanidade, contido na Biblioteca de Alexandria, é uma acusação infundada. Isto é, quando a biblioteca foi atacada pelo império islâmico em formação, que dominaria o Egito até os dias de hoje (o Egito contemporâneo é um país árabe, na língua, e islâmico na religião), já não tinha muita coisa.
Segundo Wilson Martins, em seu A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, citando o historiador Albert Cim, “parece tratar, no caso, de uma amabilidade inventada por cristãos contra os muçulmanos, para lhes atribuir a responsabilidade de um crime por eles mesmos cometidos.” É claro que Sampaio não entra na questão histórica da política (conquista, manutenção e expansão do poder).
O autor de Letras e memória se concentra mais no seu objeto de estudo, que é a história da escrita ao longo dos séculos. O fato é que imaginar a perda de conhecimento valoroso em matemática e filosofia, e o que isso teria representado para a evolução do pensamento, é um exercício complicado até hoje.
Mesmo com essa perda incomensurável, o Egito antigo deixou uma contribuição valiosíssima à cultura ocidental. Uma sabedoria que chegou até nós de várias maneiras, tanto pelo trabalho de historiadores modernos quanto pela influência do pensamento egípcio na filosofia grega. Para se ter uma ideia do valor dessa contribuição, o primeiro livro a ser escrito na história da humanidade, segundo Sampaio, foi A saída para a Luz dos Dias, também conhecido como O Livro dos Mortos do Antigo Egito.
Uma cópia desse livro, “um papiro de uns vinte metros, coberto de hieróglifos dispostos verticalmente”, foi encontrado pelo francês Jean-François Champollion, o mesmo que havia decifrado a pedra da rosetta, em 1822, que trazia uma inscrição em duas línguas (grego e egípcio) e em três escritas (alfabeto grego, hieróglifo egípcio e demótico).
Os franceses têm tradição nos estudos da história da escrita e da leitura. Mas no Brasil, um livro como o de Sampaio é uma obra rara, que merece ser adquirida pelas bibliotecas públicas e consultada sempre, não só por interessados em história das civilizações ou estudantes de literatura. O livro serve até mesmo a tatuadores que apreciam os tribais ou algo parecido, pela carga simbólica e a beleza de formas que as escritas trazem.
Sampaio nasceu em Pires do Rio, interior de Goiás. Já publicou livros de crônicas, Seu nome agora é saudade, e de contos, O sol na rede, além de ter organizado uma coletânea de contos tchecos, intitulada Tchecoslováquia blues e publicado os ensaios Voces femininas de la poesía brasileña e Línguas e dialetos românicos.
Com Letras e memória, o autor também nos leva à reflexão sobre a bifurcação da língua escrita, que agora, como ele bem observa, se fixa no papel e se multiplica continuamente nas telas do computador. “O manuscrito, o texto real, cede lugar ao texto virtual, que pode ser alterado ad nauseam, ad infinitum”, finaliza.
(De Gilberto G. Pereira, publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto)
Serviço
Título:
Letras e memória - uma breve história da escritaAutor: Adovaldo Fernandes Sampaio
Editora: Ateliê Editorial, 2009, 304 páginas
Gênero: Linguística
Preço: R$ 65,00