Emparedado, o poema em prosa, ou
prosa poética, que se segue é um dos mais cultuados
de Cruz e Sousa. É longo e complexo, mas a
investida em sua leitura vale a pena. Quem quiser saber mais sobre o poema, vá ao livro de Alfredo
Bosi, Literatura e resistência, e leia o texto Poesia
versus racismo, porque é aí que está a leitura crítica mais valiosa.
O poema tem 35 páginas. Copiei do livro Evocações, publicado pela Fundação Catarinense de Cultura
(FCC), em 1986 (pp. 356-91), em edição fac-similar da publicação original de 1898. A única atualização feita nesta transcrição é a ortográfica.
Para
facilitar a leitura e não cansar tanto os olhos,
dividi o texto de acordo com a diagramação do livro copiado,
indicando página por página (com indicação no pé da página). Cruz e Sousa é um filho ilustre dessa
diáspora, cuja obra é uma resistência absoluta e cuja
alma é uma insigne representação da consciência negra. O diálogo, sim, mas a memória deve estar intacta
para lembrar sempre.
Para
quem se aventurar, boa leitura!
EMPAREDADO
Ah!
Noite! feiticeira Noite! ó Noite misericordiosa,
coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e
diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado, tantas
Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas
Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz
triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido
nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa!
fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho
das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas
paradisíacas, dá-me os teus cismares de
Monja, dá-me as tuas asas
reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, a eloquência de ouro das tuas
Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos
os surdos soluços que rugem e rasgam o
majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos
e pacificadores Silêncios!
Uma
tristeza fina e incoercível errava os tons violáceos vivos daquele fim
suntuoso de tarde aceso ainda nos vermelhos sanguíneos, (Página 356)
cuja
cor cantava-me nos olhos, quente, inflamada, na linha longe dos horizontes em
largas fachas rutilantes.
O
fulvo e voluptuoso Rajah celeste derramara além os fugitivos
esplendores da sua magnificência astral e rendilhara
d’alto e de leve as nuvens da
delicadeza arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.
Mas,
as ardentes formas da luz pouco a pouco quebravam-se, velavam-se, e os tons
violáceos vivos, destacados,
mais agora flagrantemente crepusculavam a tarde, que expirava anelante, num
anseio indefinido, vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto sonho
...
E,
descidas, afinal, as névoas, as sombras
claustrais da noite, tímidas e vagarosas
Estrelas começavam a desabrochar
florescentemente, numa tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e erradias
fadas de Lendas ...
Era
aquela, assim religiosa e enevoada, a hora eterna, a hora infinita da Esperança ...
Eu
ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e
febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que
se acumulavam em mim à proporção que a noite chegava
com o séquito radiante e real
das fabulosas Estrelas. (Página 357)
Recordações, desejos, sensações, alegrias, saudades,
triunfos, passavam-me na Imaginação como relâmpagos sagrados e
cintilantes do esplendor litúrgico de pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes, de
tochas acesas e fumosas, de turíbulos cinzelados, numa
procissão lenta, pomposa, em
aparatos cerimoniais, de Corpus Christi, ao fundo longínquo de uma província sugestiva e serena,
pitorescamente aureolada por mares cantantes. Vinha-me à flor melindrosa dos
sentidos a melopeia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos
deixados para trás na arrebatada confusão do mundo.
Certos
lados curiosos, expressivos e tocantes do Sentimento, que a lembrança venera e santifica;
lados virgens, de majestade significativa, parecia-me surgirem do suntuoso
fundo estrelado daquela noite larga, da amplidão saudosa daqueles céus ...
Desdobrava-se
o vasto silforama opulento de uma vida inteira, circulada de acidente, de
longos lances tempestuosos, de desolamentos, de palpitações ignoradas, como do
rumor, das aclamações e dos fogos de cem
cidades tenebrosas de tumulto e de pasmo ... (Página 358)
Era
como que todo o branco idílio místico da adolescência, que de um tufo
claro de nuvens, em Imagens e Visões do Desconhecido,
caminhava para mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.
Ou,
então, massas cerradas,
compactas, de harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, nervosos, em estrépitos nervosos, em
sonoridades nervosas, em dilaceramentos nervosos, em catadupas vertiginosas de
vibrações, ecoando longe e
alastrando tudo, por entre a delicada alma sutil dos ritmos religiosos, alados,
procurando a serenidade dos Astros ...
As
Estrelas, d’alto, claras, pareciam
cautelosamente escutar e sentir, com os caprichos de relicários inviolados da sua
luz, o desenvolvimento mudo, mas intenso, a abstrata função mental que estava
naquela hora se operando dentro em mim, como um fenômeno de aurora boreal
que se revelasse no cérebro, acordando chamas
mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.
Ah!
aquela hora era bem a hora infinita da Esperança!
De
que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos,
trôpego de cansaço, as pernas (Página 359)
bambaleantes,
com a fadiga de um século, recalcando nos
tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo
sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas:
Esperar! Esperar!
Porque
estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos
e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos
ventos, nas tempestades, só e taciturnamente
ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!
Por
isso é que essa hora sugestiva
era para mim então a hora da Esperança, que evocava tudo
quanto eu sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo ... Tudo quanto eu
mais eloquentemente amara com o delírio e a fé suprema de solenes
assinalamentos e vitórias.
Mas
as grandes ironias trágicas germinadas do
Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitórias cruzadas no ar
violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre
a minha cabeça, implacáveis como a peste.
Então, à beira de caóticos, sinistros
despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o
trismegisto, de cornos (Página 360)
agrogalhardos,
de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente
meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado
dentre essas mágicas e poderosas
correntes de elementos antipáticos que a Natureza
regulariza, e sob a influência de desconhecidos e
venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia
desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos,
com angústia, com agonia, com
esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!
Fiquei
como a alma velada de um cego onde os tormentos e os flagelos amargamente
vegetam como cardos hirtos. De um cego onde parece que vaporosamente dormem
certos sentimentos que só com a palpitante
vertigem, só com a febre matinal da
luz clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem ou que não chegaram jamais a
nascer porque a densa e amortalhante cegueira como que apagou para sempre toda
a claridade serena, toda a chama original que os poderia fecundar e fazer
florir na alma ...
Elevando
o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns
da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra! (Página 361)
Como
os martirizados de outros Gólgotas mais amargos,
mais tristes, fui subindo a escalvada montanha, através de urzes eriçadas, e de brenhas, como
os martirizados de outros Gólgotas mais amargos,
mais tristes.
De
outros Gólgotas mais amargos
subindo a montanha imensa, – vulto sombrio, tetro,
extra-humano! – a face escorrendo
sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o
flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue,
sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito
longe, ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade,
transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos destinos!...
E,
abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca
de outros braços que me abrigassem; e,
abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da
Judeia encontravam para
repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, sempre com um nome estranho
convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto
que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de pensamento
profundo: – o sagrado (Página 362)
nome
da Arte, virginal e circundada de loureirais e mirtos e palmas verdes e hosanas,
por entre constelações.
Mas,
foi apenas bastante todo esse movimento interior que pouco a pouco me abalava,
foi apenas bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada, mais ensanguentada
que tenho, que desse todos os meus mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o
meu amor ingênito, toda a
legitimidade do meu sentir a essa translúcida Monja de luar e
sol, a essa incoercível Aparição, bastou tão pouco para que logo se
levantassem todas as paixões da terra, tumultuosas
como florestas cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas de
bronze, o meu nefando Crime.
Foi
bastante pairar mais alto, na obscuridade tranquila, na consoladora e doce
paragem das Ideias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção para alvoroçarem-se os Preceitos,
irritarem-se as regras, as Doutrinas, armados e ferozes, de cataduras hostis e
severas.
Eu
trazia, como cadáveres que me andassem
funambulescamente amarrados às costas, num
inquietante e interminável apodrecimento, todos
os empirismos preconceituosos e não sei quanta (Página 363)
camada
morta, quanta raça d’África curiosa e desolada
que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!
Surgido
de bárbaros, tinha de domar
outros mais bárbaros ainda, cujas
plumagens de aborígine alacremente
flutuavam através dos estilos.
Era
mister romper o Espaço toldado de brumas,
rasgar as espessuras, as densas argumentações e saberes, desdenhar
os juízos altos, por decreto e
por lei, e, enfim, surgir...
Era
mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha
bitolar que irrompe por toda a parte, salta, fecunda, alastra, explode,
transborda e se propaga.
Era
mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes, agitar
desassombradamente a cabeça diante da liberdade
absoluta e profunda do Infinito.
Era
mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a
necessidade fatal, imperiosa, ingênita, de sacudir com
liberdade e volúpia os nervos e
desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade. (Página 364)
O
temperamento que rugia, bramava dentro de mim, esse, que se operasse: – precisava, pois,
tratados, largos in-fólios, toda a biblioteca
da famosa Alexandrina, uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de textos
latinos, para sarar ...
Tornava-se
forçoso impor-lhe um compêndio admirável, cheio de sensações imprevistas, de
curiosidades estéticas muito lindas e
muito finas – um compêndio de geometria!
O
temperamento entortava muito para o lado da África: – era necessário fazê-lo endireitar
inteiramente para o lado Regra, até que o temperamento
regulasse certo como um termômetro!
Ah!
incomparável espírito das estreitezas
humanas, como és secularmente divino!
As
civilizações, as raças, os povos
digladiam-se e morrem minados pela fatal degenerescência do sangue, despedaçados, aniquilados no
pavoroso túnel da Vida, sentindo o
horror sufocante das supremas asfixias.
Um
veneno corrosivo atravessa, circula vertiginosamente os poros dessa
deblaterante humanidade que se veste e triunfa com as púrpuras quentes e
funestas da guerra!
Povos
e povos, no mesmo fatal e instintivo movimento da conservação e propagação (Página 365)
da
espécie, frivolamente lutam
e proliferam diante da Morte, no ardor dos conúbios secretos e das
batalhas obscuras, no frenesi genital, animal, de perpetuarem as seivas, de
eternizarem os germens.
Mas,
pro sobre toda essa vertigem humana, sobre tanta monstruosa miséria, rodando,
rodomoinhando, lá e além, na vastidão funda do Mundo, alguma
coisa da essência maravilhosa da Luz
paira e se perpetua, fecundando i inflamando os séculos com o amor indelével da Forma.
É do sabor prodigioso
dessa essência, vinda de bem
remotas origens, que raros Assinalados experimentam, envoltos numa atmosfera de
eterificações, de visualidades
inauditas, de surpreendentes abstrações e brilhos, radiando
nas correntes e forças da Natureza, vivendo
nos fenômenos vagos de que a
Natureza se compõe, nos fantasmas
dispersos que circulam e erram nos seus esplendores e nas suas trevas,
conciliados supremamente com a Natureza.
E,
então, os temperamentos que
surgissem, que viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente lavados
para as extremas perfectibilidades, virgens, sãos e impetuosos para as
extremas fecundações, com a virtude eloquente
de (Página 366)
trazerem,
ainda sangradas, frescas, úmidas das terras
germinais do Idealismo, as raízes vivas e profundas,
os germens legítimos, ingênitos, do Sentimento.
Os
temperamentos que surgissem: – podiam ser simples, mas
que essa simplicidade acusasse também complexidade, como as
claras Ilíadas que os rios cantam.
Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo as inéditas manifestações do Indefinido, e
intensos, intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo
esses inexprimíveis segredos que vagam
na luz, no ar, no som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artístico assinala.
Poderiam
também parecer obscuros por
serem complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma
espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação e de sentimentos e
pensamentos, da concepção e da forma, obedecendo
tudo a uma grande harmonia essencial de linhas sempre determinativas da índole, da feição geral de cada organização.
Os
lados mais carregados, mais fundamente cavados dos temperamentos sangrentos,
fecundados em origens novas de excepcionalidades, não seriam para complicar
e enturvescer mais as (Página 367)
respectivas
psicologias; mas apenas para torná-las claras, claras,
para dar, simplesmente, com a máxima eloquência, dessas próprias psicologias, toda
a evidência, toda a
intensidade, todo o absurdo e nebuloso Sonho ...
Dominariam
assim, venceriam assim, esses Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos Reinados do Ideal,
apenas, unicamente por fatalidades impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por justaposições mecânicas de teorias e
didatismos obsoletos.
Os
caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais vaporosos, de cada
temperamento, perder-se-iam, embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão inexpressiva, confusa,
que borborinha com o seu lento ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a
concupiscência bestial enroscada
como um sátiro, com a alma gasta,
olhando molemente para tudo com os seus dois pequeninos olhos gulosos de símio.
Mas,
a paixão inflamada do Ignoto
subiria e devoraria reconditamente todos esses Imaginativos dolentes, como se
eles fossem abençoada zona ideal,
preciosa, guardando em sua profundidade o orientalismo de um tesouro curioso, o
relicário mágico do Imprevisto – abençoada zona saudosa, plaga
d’ouro sagrada, para (Página 368)
sempre
sepulcralmente fechada ao sentimento herético, à bárbara profanação dos sacrílegos.
Assim
é que eu sonhara surgirem
todas essas aptidões, todas essas feições singulares,
dolorosas, irrompendo de um alto princípio fundamental distinto
em certos traços breves, mas igual,
uno, perfeito e harmonioso nas grandes linhas gerais.
Essa
é que fora a lei secreta,
que escapara à percepção de filósofos e doutos, do
verdadeiro temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos
aclamatórios da turba profana,
porém alheio por causa, por
sinceridade de penetração, por subjetivismo
mental sentido à parte, vivido à parte, – simples, obscuro,
natural, – como se a humanidade não existisse em torno e
os nervos, a sensação, o pensamento tivessem
latente necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no espaço, vivamente, a sua
psicose atormentada.
Assim
é que eu via a Arte,
abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os,
subjugando-os amplamente.
Era
uma força oculta, impulsiva, que
ganhará já a agudeza picante,
acre, de um apetite estonteante e a fascinação infernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador
pecado ... (Página 369)
Assim
é que eu a compreendia em
toda a intimidade do meu ser, que eu a sentia em toda a minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento – e não uma espécie de iguaria agradável, saborosa, que se
devesse dar ao público em doses e no grau
e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzo antigo,
taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso
a Convenção em letras maiúsculas decretara.
Afinal,
em tese, todas as ideias em Arte poderiam ser antipáticas, sem
preconcebimentos a agradar, o que não quereria dizer que
fossem más.
No
entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que
o temperamento se desprendesse de tudo, abrisse voos, não ficasse nem
continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados
que tomaram já a significação representativa de
clichês oficiais e antiquados.
Quanto
a mim, originalmente foi crescendo, alastrando o meu organismo, numa veemência e num ímpeto de vontade que se
manifesta, num dilúvio de emoção, esse fenômeno de temperamento que
com sutilezas e delicadezas (Página 370)
de
névoas alvorais vem
surgindo e formando em nós maravilhosos
Encantamentos da Concepção.
O
Desconhecido me arrebatara e surpreendera e eu fui para ele instintiva e
intuitivamente arrastado, insensível então aos atritos da
frivolidade, indiferente, entediado por índole diante da filáucia letrada, que não trazia a expressão viva, palpitante, da
chama de uma fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito.
Muitos
diziam-se rebelados, intransigentes – mas eu via claro as
ficelas dessas rebeldia e dessa intransigência. Rebelados, porque
tiveram fome uma hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por
despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis, para elas
gloriosas, posições que os outros
galgavam.
Era
uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de
tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da
Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a
não ofender, a não fazer corar o
diletantismo das suas ideias. Rebeldias e intransigências em casa, sob o
teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e
feroz, com ladainhas e (Página 371)
amuletos
em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis!
Mas,
uma vez cá fora à luz crua da Vida e do
Mundo, perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando logo as
curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais, mais clássicas, à decrépita Convenção com letras maiúsculas.
Um
ou outro, pairando, no entanto, mais alto no meio, tinha manhas de raposa fina,
argúcia, vivacidades satânicas, no fundo, frívolas, e que a maior
parte, inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava
sistematicamente os olhos para fingir não ver, para não sair dos seus cômodos pacatos de
aclamado banal, fazendo esforço supremo de conservar a
confusão e a complicação no meio, transformar e
estontear aquelas raras e adolescentes cabeças que por acaso aparecessem
já com algum nebuloso
segredo.
Um
ou outro tinha a habilidade quase mecânica de apanhar, de recolher
do tempo e do espaço as ideias e os
sentimentos que, estando dispersos, formavam a temperatura burguesa do meio,
portanto corrente já, e trabalhar algumas páginas, alguns livros,
que por trazerem ideias e sentimentos homogêneos e ideias (Página 372)
burguesas,
aqueciam, alvoroçavam, atordoavam o ar de
aplausos ...
Outros,
ainda, adaptados às épocas, aclimados ao modo
de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendido ajeitamento, fazendo
absoluta apostasia do seu sentir íntimo, próprio, iludidos em parte;
ou, talvez, evidenciando com flagrância, traindo assim o
fundo fútil, sem vivas,
entranhadas raízes de sensibilidade estética, sem a ideal radicalização de sonhos
ingenitamente fecundados e quintessenciados na alma, das suas naturezas
passageiras, desapercebidas de certos movimentos inevitáveis da estesia, que
imprimem, por fórmulas fatais, que
arrancam das origens profundas, com toda a sanguinolenta verdade e por causas
fugidias a toda e qualquer análise, tudo o quanto se
sente e pensa de mais ou menos elevado e completo.
Mistificadores
afetados de canaillerie por tom, por modernismos falhos apanhados entre os
absolutamente fracos, os pusilânimes de têmpera no fundo, e que,
no entanto, tanto aparentam correção e serena força própria.
Naturezas
vacilantes e mórbidas, sem a integração final, sem mesmo o
equilíbrio fundamental do próprio desequilíbrio e, ainda mais do
que tudo, sem esse poder quase sobrenatural, (Página 373)
sem
esses atributos excepcionais que gravam, que assinalam de modo estranho, às chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter imprevisto,
extra-humano, do Sonho.
Hábeis viveurs, jeitosos,
sagazes, acomodatícios, afetando pessimismos
mais por desequilíbrio que por fundamento,
sentindo, alguns, até a saciedade, a atropelação do meio, fingindo
desprezá-lo, aborrecê-lo, odiá-lo, mas mergulhando
nele com frenesi, quase com delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e
de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade animal do instinto de
conservação, a habilidade de
nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas
dos cálculos e efeitos
convencionais.
Tal,
desse modo, um prestidigitador ágil e atilado, colhe e
prende, com as miragens e truques da nigromancia, a frívola atenção passiva de um público dócil e embasbacado.
Incipientes,
uns, obscenamente cretinos, outros, devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos e lhes dilacera os
fígados, eu bem lhes percebo
as psicologias subterrâneas, bem os vejo
passar, todos, todos, todos, de olhos oblíquos, numa expressão fisionômica azeda e vesga de
despeito, como errantes duendes da (Página 374)
Meia-Noite,
verdes escarlates, amarelos e azuis, em vão grazinando e
chocalhando na treva os guizos das sarcásticas risadas ...
Almas
tristes, afinal, eu se diluem, que se acabam, num silêncio amargo, numa
dolorosa desolação, murchas e doentias,
na febre fatal das desorganizações, melancolicamente,
melancolicamente, como a decomposição de tecidos que
gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo irremediável e não podem mais viçar e florir sobre as
refulgências e sonoridades dos
finíssimos ouros e cristais
e safiras e rubis incendiados do Sol ...
Almas
lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada
libertinagem não encontra fundo; almas
que vão cultivando com cuidado
delicadas infamiazinhas como áspides galantes e
curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência, a majestade do
Inferno!
Almas,
afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras,
sem os largos e irisados resplendores do Sonho – supremo Redentor
eterno!
Tudo
um ambiente dilacerante, uma atmosfera que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a
garganta como uma poeira (Página 375)
triste,
muito densa, muito turva, sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila pobre
por onde vai taciturnamente seguindo algum obscuro enterro de desgraçado ...
Eles
riem, eles riem e eu caminho e sonho tranquilo! pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul, que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me
deixe serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema de Fé e de Vida!
Se
alguma nova ventura conheço é a ventura intensa de
sentir um temperamento, tão raro me é dado sentir essa
ventura. Se alguma coisa me torna justo é a chama fecundadora, o
eflúvio fascinador e
penetrante que se exala de um verso admirável de uma página de evocações, legítima e sugestiva.
O
que e quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema
arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo
o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer,
para vagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como
Otelo nos delírios sangrentos do Ciúme ...
Agitando
ainda a cabeça num derradeiro
movimento de desdém augusto, como nos
cismativos ocasos os desdéns soberanos do sol que (Página 376)
ufanamente
abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignorados hemisférios...
Pensam,
sentem, estes, aqueles. Mas a característica que denota a seleção de uma curiosa
natureza, de um ser d’arte absoluto, essa, não a sinto, não a vejo, com os
delicados escrúpulos e suscetibilidades
de uma flagrante e real originalidade sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem coterie e
anais de crítica, mas com a força germinal poderosa de
virginal afirmação viva.
De
alto abaixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo,
sondam, perscrutam todas as células, analisam as funções mentais de todas as
civilizações e raças; mas, só escapa à penetração, à investigação desses positivos
exames, a tendência, a índole, o temperamento
artístico, fugidios sempre e
sempre imprevistos, porque são casos particulares de
seleção na massa imensa dos
casos gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.
Desde
que o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas
em completa, lógica e inevitável revolta contra ele, num
conflito perpétuo entre a sua natureza
complexa e (Página 377)
a
natureza oposta do meio, a sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal que foge a
todas as classificações e casuísticas, a todas as argumentações que, parecendo as mais
puras e as mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre
deficientes e falsas.
Ele
é o supercivilizado dos
sentidos, mas como que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio,
mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão, da sua absoluta
clarividência, da sua inata
perfectibilidade celular, que é o germe fundamental de
um temperamento profundo.
Certos
espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo
veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um
valor que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, para chegar a
esse grau de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da
coterie.
Os
de Estética emovente e exótica, os gueux, os
requintados, os sublimes iluminados por um clarão fantástico, como Baudelaire, como
Poe, os surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários supremos, os
inflamados, devorados pelo Sonho, os clarividentes e evocativos, (Página 378)
que
emocionalmente sugestionam e acordam luas adormecidas de Recordações e de Saudades, Esses,
ficam imortalmente cá fora, dentre as
augustas vozes apocalípticas da Natureza, chorados e
cantados pelas Estrelas e pelos Ventos!
Ah!
benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte,
nesse extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor
a grande Significação eloquente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!
A
verdadeira, a suprema força da Arte está em caminhar firme, resoluto,
inabalável, sereno através de toda a perturbação e confusão ambiente, isolado
no mundo mental criado, assinalando com intensidade e eloquência o mistério, a
predestinação do temperamento.
É
preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e
engolfar a alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e
pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa
sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas
pré-estabelecidas que a julguem, – para então assim mais elevadamente estrelar
os Infinitos da grande (Página 379)
Arte,
da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que chasqueiam,
da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do
seu torvo caracol.
Até
mesmo, certos livros, por mais exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por
mais aclamados pela pompa do momento, nada podem influir, nenhuma alteração
podem trazer ao sentimento geral de ideias que se constituíram sistema e que
afirmam, de modo radical, mas simples, natural, por mais exagerado que se
suponha, a calma justa das convicções integrais, absolutas, dos que seguem
impavidamente a sua linha, dos que trazendo consigo imaginativo espírito de
Concepção, caminham sempre com tenacidade, serenamente, imperturbáveis aos
apuros inofensivos, sem tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo
tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios de uma radiante ironia
mais feita de clemência, de bondade, do que de ódio.
O
Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funésia do
ódio, quando no entanto o seu coração vem transbordando de Piedade, vem
soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mau
porque tem cóleras soberbas, (Página 380)
tremendas
indignações, ironias divinas que causam escândalos ferozes, que passam por
blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vício hipócrita,
perverso, contra o postiço sentimento universal mascarado de Liberdade e de
Justiça.
nos
países novos, nas terras ainda sem tipo étnico absolutamente definido, onde o
sentimento d’Arte é silvícola, local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo
o esforço, a batalha formidável de um temperamento fatalizado pelo sangue e que
traz consigo, além da condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de
pertencer, de proceder de uma raça que a ditadora ciência d’hipóteses negou em
absoluto para as funções do Entendimento, e, principalmente, do entendimento
artístico da palavra escrita.
Deus
meu! por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais
rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições,
perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria
infinita, esmagadora, irrevogável!
Mas,
que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a
cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual (Página 381)
a
dos meus sonhos e gritos? qual a dos meus desejos e febres?
Ah!
Esta minúscula humanidade, torcida, enroscada, assaltando as almas com a
ferocidade de animais bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de carnívoro,
é que não pode compreender-me.
Sim!
tu é que não podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes
efeitos com os arcaísmos duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica
do Bom Senso.
Tu
é que não podes ver-me, atentar-me sentir-me, dos limites da tua toca de
primitivo, armada do bordão simbólico das convicções pré-históricas, patinhando
a lama das teorias, a lama das conveniências equilibrantes, a lama sinistra,
estagnada, das tuas insaciáveis luxúrias.
Tu
não podes sensibilizar-te diante destes extasiantes estados d’alma, diante
destes deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das eucarísticas
espiritualizações que me arrebatam.
O
que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e
solitária e lê-la e detestá-la e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas,
enodar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da
linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com (Página 382)
dísticos
estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as
violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de
impotência ou de angústia.
Mas,
para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, já eu antes terei por
certo – eu o sinto, eu o vejo! – te arremessado profundamente, abismantemente pelos cabelos à minha Obra e obrigado a tua
atenção comatosa a acordar, a acender, a olfactar, a cheirar com febre, com
delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiar como um ferro em
brasa sobre o organismo da Ideia, cada vocábulo que eu tenha pensado e sentido
com todas as fibras, que tenha vivido com os meus carinhos, dormido com os meus
desejos, sonhado com os meus sonhos, representativos integrais, únicos,
completos, perfeitos, de uma convulsão e aspiração supremas.
Não
conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa intelectiva, quero ao menos
sensacionar-te a pele, ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao
sol, pondo abertas e francas, todas as expressões, nuances e expansibilidades
d’este amargurado ser, tal como sou e sinto. (Página 383)
Os
que vivem num completo assédio no mundo, pela condenação do Pensamento, dentro
de um báratro monstruoso de leis e preceitos obsoletos, de convenções
radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta e profunda de como que
traduzir, por traços fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas
impressionabilidades e, sobretudo, as suas causas originais, vindas fatalmente
da liberdade fenomenal da Natureza.
Ah!
Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as
correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões
subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a incipiência dos
adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos
cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito
fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar
os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção
oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros,
de aplausos forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos
humanos ou de despeitos tristes. (Página
384)
Ah!
Destino grave dos que vieram ao mundo para ousadamente deflorar as púberes e
cobardes inteligências com o órgão másculo, poderoso da Síntese, para inocular
nas estreitezas mentais o sentimento vigoroso das Generalizações, para revelar
uma obra bem fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para afinal,
estabelecer o choque violento das almas, arremessar umas contras as outras, na
sagrada, na bendita impiedade de quem traz consigo os vulcanizadores Anátemas
que redimem.
O
que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita,
esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que
nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos
sinta.
É
de encontrar essa alma assinalada pela qual viemos vindo de tão longe sonhando
e andamos esperando há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo, cheios
de febre e de cismas, para no seio dela cairmos frementes, alvoroçados, entusiastas,
como no eterno seio da Luz imensa e boa que nos acolhe.
É
esta bendita loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida com
ela, para respirar livre e fortemente, de pulmões (Página 385)
satisfeitos
e límpidos, toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento que
contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma
outra alma irmã à qual pudéssemos comunicar absolutamente tudo.
E
quando a flor dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos revela
com todos os seus sedutores e recônditos aromas, quando afinal a descobrimos um
dia, não sentimos mais o peito opresso, esmagado: - uma nova torrente
espiritual deriva do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro
inundados da graça de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente
recompensados de todo o transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente
impôs aos nossos ombros mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra
encher, cobrir este abismo do Tédio com abismos de Luz!
O
mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura
fórmula geométrica. todo aquele que lhe procura quebrar as hirtas e caturras
linhas retas com o poder de um simples Sentimento, desloca de tal modo
elementos de ordem tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que
tudo se (Página 386)
turba
e convulsiva; e o temerário que ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a
Dor imponderável que esse simples Sentimento responsabiliza e provoca.
Eu
não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos
produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas
girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de
lendas...
Num
impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas
preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos
intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da
Via-Láctea...
E
é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras
de vagos torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na
contemplatividade mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que
parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos
mistérios da Noite – talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das
harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:
-
“Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em Abstrações, em (Página 387)
Formas,
em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de
ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações,
célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro
cadinho de ideias, de sentimentos – direito, perfeito, das perfeições oficiais
dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em
galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em
Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e
fidalga fantasia dos Medievos, ou da lenda colorida e bizarra por haveres
adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos Astros, junto às priscas margens
venerandas do Mar Vermelho!
Artista!
pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente
pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das
Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da
Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades
supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando nos caos feroz,
hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A
África laocoôntica, alma de (Página 388)
trevas
e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma
espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve – polo
branco e polo negro da Dor!
Artista?!
Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada,
lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Creação dolorosa e
sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste,
melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo
mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo
do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!
A
África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas
funestas e secretas para fundir a Epopeia suprema da Dor do Futuro, para
fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante
negro!
Dessa
África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e prodigiosas
esculturas, para as largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré –
Inspirações inflamadas, soberbas, soluçadas, bebidas nos (Página 389)
Infernos
e nos Céus profundos do Sentimento humano.
Dessa
África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de
curiosos fenômenos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero,
gigantescamente medonha, absurdamente ululante – pesadelo de sombras macabras –
visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra
e formando, com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma
auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...
Não!
Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo,
porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando,
acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o
verdadeiro emparedado de uma raça.
Se
caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa grande
parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares
para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a
primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente,
ainda (Página 390)
nova
parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se
elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! fechando tudo – horrível!
– parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror
absoluto...
E,
mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras,
mais pedras... Pedras destas ociosas, caricatas e fatigantes Civilizações e
Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, -
longas, negras terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até
as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro
do teu Sonho...” (Página 391)