O jornalista gaúcho Tarso de Castro (1941 – 1991) fez uma entrevista extravagante e engraçada, em 1977, com seus amigos, quatro ícones da música popular brasileira: Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Toquinho e Miúcha. O texto, publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 1983, está na coletânea de entrevistas com Vinícius de Moraes organizada por Sérgio Cohn e Simone Campos, da coleção Encontros (Azougue Editorial).
Num papo de bar (Antônio’s, que existe até hoje, no Rio de Janeiro), os quatro combinaram de dar uma entrevista a Castro, no Canecão, em que as respostas seriam as mais deslavadas mentiras sobre si mesmos e os outros. O resultado é a comédia que se segue (apenas trechos, incluindo os dois parágrafos em que a Miúcha se manifesta).
Tarso de Castro: Veja você, Vinicius, que você e Tom são parceiros há mais ou menos 200 anos. E agora, justo agora, quando você deu uma colher de chá a ele, ao incluí-lo neste show, você pode notar uma coisa: nós marcamos esta entrevista para as 6h30 e, ele, até este momento, não chegou. Como você, que o conhece bem melhor do que eu, explicaria tal atitude?
Vinicius de Moraes: O atraso do Tom? Simples: eu acho que o Tom está com um complexo de superioridade muito grande, sabe? Na minha opinião, o Tom está se achando o melhor músico do mundo, está com um complexo de superioridade insuportável. E temos que colocar uma espécie de paradeiro nisso, não? Precisamos colocar as coisas nas suas justas medidas. Porque Tom é, realmente, um grande músico; agora ...
TC: Você quer dizer um bom acompanhante?
Toquinho: Olha, na verdade, o Tom harmoniza bem aquelas notinhas secas ...
VM: ... Mas nunca surge aos cantos do piano.
TC: Mas você vê alguma razão para este atraso?
VM: Eu acho, sinceramente, que lhe subiu alguma coisa à cabeça. Ter feito um disco com a Sarah Vaughan. Sabe, essas coisas, o Frank Sinatra, esse tipo de coisa ...
TC: Ele fala muito no Frank Sinatra?
VM: Ah, fala, aliás, ele nunca fala muito bem do Sinatra, não. Tem hora em que ele dá aquela pichadinha, sabe?
TC: Sou testemunha disto. Tom me contou que foi à sauna com o Sinatra e completou afirmando assim: “Uma decepção”. Não é chato falar assim de um parceiro?
Toquinho: ...logo o Tom que finge ser uma pessoa humilde... boca pequena, que ele, Tom, teria levantado a carreira do Sinatra numa hora difícil, sabe? Agora... tirante isso... sim, o Tom é um grande parceiro...
TC: Eu gostaria de fazer uma colocação série, mui séria: por que é que você colocou o Tom no seu show atual?
VM: Bem, olha, sinceramente, o fato é que o Tom estava muitos anos sem trabalhar. E perdendo público diariamente. Sabe, esse troço acaba, realmente, ferindo a pessoa. E aqui entre nós – nem sei se vocês deviam publicar isto – ele estava com pouca grana; a erva estava curta, sabe?
TC: Mas, objetivamente: você acha, por exemplo, que Garota de Ipanema, sem a sua letra, daria certo?
VM: Jamais. Jamais. Não há hipóteses.
Toquinho: Não daria certo mesmo. Imagine quem poderia ouvir essa coisa de ‘pé-pá-parará-patapataparará.’
VM: Até parece aquela música de Um homem e uma mulher. ‘tabadabadá, tabadabadá’, entende?
TC: Mas, Vinicius, eu queria fazer uma pergunta ao Toquinho, que é pessoa insuspeita: diga uma coisa, Toco, o que você acha das acusações de plágio de Tom?
Toquinho: Bem... eu não queria entrar nesse assunto, porque... é meio complicado, a gente é amigo, trabalha junto... Mas a gente percebe, nas entrelinhas, melodias... bastante conhecidas...
VM: E eu não devia nem mesmo falar nisto porque ‘águas passadas não movem moinhos’...
TC: ...mas notas sim...
VM: ...e então, o fato é que tem muito ‘teminha’ meu que o Tom aproveitou...
TC: Isso deve ser desagradável, partindo de um amigo...
VM: Ah!, é claro...
(...)
TC: (Chega Tom Jobim, com um atraso superior a duas horas. Segue-se uma série de palavrões, os quais envolvem alguns familiares. Retoma-se a entrevista.) Olhe, Tom, agora que você chegou, eu gostaria de iniciar com uma pergunta realmente séria: o que você acha, realmente, mas realmente, da poesia do Vinicius de Moraes?
TJ: Olha, é muito difícil achar alguma coisa sobre a poesia do Vinicius, porque ele – ele ainda agora me prometeu um apartamento, porque nunca deixou ninguém mal, não é? – não presta atenção em nada, está sempre completamente bêbado, não é?
TC: Mas eu falo do Vinicius como poeta...
TJ: Olha, eu não gostaria de falar do Vinicius como poeta. Eu gostaria mais de abordar o Vinicius como letrista, porque existe... existe o Drummond, você sabe, não?, o Carlos Drummond...
TC: Mas ainda vendo como letrista e não como poeta, eu gostaria de saber qual o processo que Vinicius usa para fazer suas letras...
TJ: O processo que ele usa é o seguinte: vem o Toquinho, não é?, com aquele tema, ‘a minha namorada me deixou’, não-sei-o-quê. Daí, ele, Vinicius, dá um jeito na gramática...
TC: Você o definiria apenas como um bom professor de português?
TJ: Exatamente. Um bom professor de português. Por exemplo: em muitas ocasiões eu misturo o tratamento de ‘tu’ com ‘você’, mas ele bota tudo na mesma pessoa. Aliás, eu devo confessar: em alguma coisa o Itamaraty ajudou...
TC: Mas, Vinicius, o negócio da crítica. Sei que você, por exemplo, respeita muito a crítica...
VM: Claro, eu respeito muito a crítica brasileira. Na verdade, a coisa que eu mais respeito no Brasil, atualmente, são as instituições e os críticos...
TC: Isso me parece uma espécie de respeito ao, digamos, ‘sistema’...
VM: ...olha... olha, é o tal do negócio... Se critica muito o sistema, mas o sistema é muito bom, meu querido...
TJ: É como diz o Vinicius: eles deixam a gente cantar e ainda pagam...
TC: Quanto a Vinicius, queria saber uma coisa: é óbvio que você nunca deu certo em poesia, nunca foi bom diplomata, então me interessa saber quando foi que você começou a descolar uma grana junto aos músicos. Porque, se você fosse poeta, estaria pobre como o Drummond, que tem uma casinha alugada, o Quintana, que mora em hotel...
TJ: Olha, sabe o que me disseram outro dia? Que o Drummond tá rico pra burro...
VM: Olha, essa conversa dos poetas brasileiros, meu querido, essa conversa de que são pobres e tudo, isso é a maior mentira. O Augusto Schmidt está riquíssimo. Dono de supermercado. O Manuel Bandeira, que se fingia de tuberculoso, estava muito bem; o Drummond enfurnado naquela casinha dele... o que tem de nota de CR$500,00 no colchão... Não quero nem pensar; o Mário Quintana, que é uma figura inclusive que admiro muito, dele não se sabe até que ponto a boêmia é verdadeira. Então, o que sei é o seguinte: você tem que se adaptar ao sistema.
(...)
TC: Você, Miúcha, não se sente envergonhada em ficar – justamente quando vivemos um momento feminista – se agarrando no Vinicius durante o show?
Miúcha: Mas eu agarro todo mundo... e de tarde, em Saltimbancos, faço o papel de galinha...
TC: ...à tarde e à noite...
VM: Vou dizer uma coisa: a gente pensa que as famílias poderosas do Brasil são as que se conhece, os Guinle, os Monteiro de Carvalho, tal e coisa. Pois, para mim, a família poderosa mesmo se chama Buarque de Hollanda, porque uns estão sempre calçando os outros, sabe? E olha que sucesso na praça, até o Chico...
TC: Mas também se fala que você tem inveja do Chico.
TJ (sic): Bem, é inevitável. Mas tento disfarçar ao máximo...
TC: ...assim como o Vinicius, que odeia o Chico porque antes ele era o único letrista e, hoje, tem que dividir...
VM: Não, não é nem questão de odiar o Chico... é questão de... me sentir injustiçado.
TC: Mas você, Tom, o que acha das músicas do Chico?
TJ: O problema não é este. O problema é que grande parte do dinheiro vai pra ele.
VM: Uma coisa eu sei: não conheço o tipo de espionagem que o Chico usa, mas – o Toquinho sabe disso – há várias músicas minhas que uso palavras que logo o Chico vem e usa também, tá bom?
TC: Fala-se até que ele roubou você na Feijoada completa.
VM: Claro. Ta lá o verso de Para viver um grande amor.
Miúcha: Isto é um escândalo...
Num papo de bar (Antônio’s, que existe até hoje, no Rio de Janeiro), os quatro combinaram de dar uma entrevista a Castro, no Canecão, em que as respostas seriam as mais deslavadas mentiras sobre si mesmos e os outros. O resultado é a comédia que se segue (apenas trechos, incluindo os dois parágrafos em que a Miúcha se manifesta).
Tarso de Castro: Veja você, Vinicius, que você e Tom são parceiros há mais ou menos 200 anos. E agora, justo agora, quando você deu uma colher de chá a ele, ao incluí-lo neste show, você pode notar uma coisa: nós marcamos esta entrevista para as 6h30 e, ele, até este momento, não chegou. Como você, que o conhece bem melhor do que eu, explicaria tal atitude?
Vinicius de Moraes: O atraso do Tom? Simples: eu acho que o Tom está com um complexo de superioridade muito grande, sabe? Na minha opinião, o Tom está se achando o melhor músico do mundo, está com um complexo de superioridade insuportável. E temos que colocar uma espécie de paradeiro nisso, não? Precisamos colocar as coisas nas suas justas medidas. Porque Tom é, realmente, um grande músico; agora ...
TC: Você quer dizer um bom acompanhante?
Toquinho: Olha, na verdade, o Tom harmoniza bem aquelas notinhas secas ...
VM: ... Mas nunca surge aos cantos do piano.
TC: Mas você vê alguma razão para este atraso?
VM: Eu acho, sinceramente, que lhe subiu alguma coisa à cabeça. Ter feito um disco com a Sarah Vaughan. Sabe, essas coisas, o Frank Sinatra, esse tipo de coisa ...
TC: Ele fala muito no Frank Sinatra?
VM: Ah, fala, aliás, ele nunca fala muito bem do Sinatra, não. Tem hora em que ele dá aquela pichadinha, sabe?
TC: Sou testemunha disto. Tom me contou que foi à sauna com o Sinatra e completou afirmando assim: “Uma decepção”. Não é chato falar assim de um parceiro?
Toquinho: ...logo o Tom que finge ser uma pessoa humilde... boca pequena, que ele, Tom, teria levantado a carreira do Sinatra numa hora difícil, sabe? Agora... tirante isso... sim, o Tom é um grande parceiro...
TC: Eu gostaria de fazer uma colocação série, mui séria: por que é que você colocou o Tom no seu show atual?
VM: Bem, olha, sinceramente, o fato é que o Tom estava muitos anos sem trabalhar. E perdendo público diariamente. Sabe, esse troço acaba, realmente, ferindo a pessoa. E aqui entre nós – nem sei se vocês deviam publicar isto – ele estava com pouca grana; a erva estava curta, sabe?
TC: Mas, objetivamente: você acha, por exemplo, que Garota de Ipanema, sem a sua letra, daria certo?
VM: Jamais. Jamais. Não há hipóteses.
Toquinho: Não daria certo mesmo. Imagine quem poderia ouvir essa coisa de ‘pé-pá-parará-patapataparará.’
VM: Até parece aquela música de Um homem e uma mulher. ‘tabadabadá, tabadabadá’, entende?
TC: Mas, Vinicius, eu queria fazer uma pergunta ao Toquinho, que é pessoa insuspeita: diga uma coisa, Toco, o que você acha das acusações de plágio de Tom?
Toquinho: Bem... eu não queria entrar nesse assunto, porque... é meio complicado, a gente é amigo, trabalha junto... Mas a gente percebe, nas entrelinhas, melodias... bastante conhecidas...
VM: E eu não devia nem mesmo falar nisto porque ‘águas passadas não movem moinhos’...
TC: ...mas notas sim...
VM: ...e então, o fato é que tem muito ‘teminha’ meu que o Tom aproveitou...
TC: Isso deve ser desagradável, partindo de um amigo...
VM: Ah!, é claro...
(...)
TC: (Chega Tom Jobim, com um atraso superior a duas horas. Segue-se uma série de palavrões, os quais envolvem alguns familiares. Retoma-se a entrevista.) Olhe, Tom, agora que você chegou, eu gostaria de iniciar com uma pergunta realmente séria: o que você acha, realmente, mas realmente, da poesia do Vinicius de Moraes?
TJ: Olha, é muito difícil achar alguma coisa sobre a poesia do Vinicius, porque ele – ele ainda agora me prometeu um apartamento, porque nunca deixou ninguém mal, não é? – não presta atenção em nada, está sempre completamente bêbado, não é?
TC: Mas eu falo do Vinicius como poeta...
TJ: Olha, eu não gostaria de falar do Vinicius como poeta. Eu gostaria mais de abordar o Vinicius como letrista, porque existe... existe o Drummond, você sabe, não?, o Carlos Drummond...
TC: Mas ainda vendo como letrista e não como poeta, eu gostaria de saber qual o processo que Vinicius usa para fazer suas letras...
TJ: O processo que ele usa é o seguinte: vem o Toquinho, não é?, com aquele tema, ‘a minha namorada me deixou’, não-sei-o-quê. Daí, ele, Vinicius, dá um jeito na gramática...
TC: Você o definiria apenas como um bom professor de português?
TJ: Exatamente. Um bom professor de português. Por exemplo: em muitas ocasiões eu misturo o tratamento de ‘tu’ com ‘você’, mas ele bota tudo na mesma pessoa. Aliás, eu devo confessar: em alguma coisa o Itamaraty ajudou...
TC: Mas, Vinicius, o negócio da crítica. Sei que você, por exemplo, respeita muito a crítica...
VM: Claro, eu respeito muito a crítica brasileira. Na verdade, a coisa que eu mais respeito no Brasil, atualmente, são as instituições e os críticos...
TC: Isso me parece uma espécie de respeito ao, digamos, ‘sistema’...
VM: ...olha... olha, é o tal do negócio... Se critica muito o sistema, mas o sistema é muito bom, meu querido...
TJ: É como diz o Vinicius: eles deixam a gente cantar e ainda pagam...
TC: Quanto a Vinicius, queria saber uma coisa: é óbvio que você nunca deu certo em poesia, nunca foi bom diplomata, então me interessa saber quando foi que você começou a descolar uma grana junto aos músicos. Porque, se você fosse poeta, estaria pobre como o Drummond, que tem uma casinha alugada, o Quintana, que mora em hotel...
TJ: Olha, sabe o que me disseram outro dia? Que o Drummond tá rico pra burro...
VM: Olha, essa conversa dos poetas brasileiros, meu querido, essa conversa de que são pobres e tudo, isso é a maior mentira. O Augusto Schmidt está riquíssimo. Dono de supermercado. O Manuel Bandeira, que se fingia de tuberculoso, estava muito bem; o Drummond enfurnado naquela casinha dele... o que tem de nota de CR$500,00 no colchão... Não quero nem pensar; o Mário Quintana, que é uma figura inclusive que admiro muito, dele não se sabe até que ponto a boêmia é verdadeira. Então, o que sei é o seguinte: você tem que se adaptar ao sistema.
(...)
TC: Você, Miúcha, não se sente envergonhada em ficar – justamente quando vivemos um momento feminista – se agarrando no Vinicius durante o show?
Miúcha: Mas eu agarro todo mundo... e de tarde, em Saltimbancos, faço o papel de galinha...
TC: ...à tarde e à noite...
VM: Vou dizer uma coisa: a gente pensa que as famílias poderosas do Brasil são as que se conhece, os Guinle, os Monteiro de Carvalho, tal e coisa. Pois, para mim, a família poderosa mesmo se chama Buarque de Hollanda, porque uns estão sempre calçando os outros, sabe? E olha que sucesso na praça, até o Chico...
TC: Mas também se fala que você tem inveja do Chico.
TJ (sic): Bem, é inevitável. Mas tento disfarçar ao máximo...
TC: ...assim como o Vinicius, que odeia o Chico porque antes ele era o único letrista e, hoje, tem que dividir...
VM: Não, não é nem questão de odiar o Chico... é questão de... me sentir injustiçado.
TC: Mas você, Tom, o que acha das músicas do Chico?
TJ: O problema não é este. O problema é que grande parte do dinheiro vai pra ele.
VM: Uma coisa eu sei: não conheço o tipo de espionagem que o Chico usa, mas – o Toquinho sabe disso – há várias músicas minhas que uso palavras que logo o Chico vem e usa também, tá bom?
TC: Fala-se até que ele roubou você na Feijoada completa.
VM: Claro. Ta lá o verso de Para viver um grande amor.
Miúcha: Isto é um escândalo...
VM: ...é.. como Construção foi toda inspirada no meu poema Operário em construção.
ai quem me deram dia desses encontrar chico buarque,tarso tom jobim, vinicius de morais todos no antonio's seria inevitavel iria puxar uma cadeira e beber um uisque ainda que queimasse a garganta valeria a pena e eu seria a pessoa mais encantada do mundo até com seus palavroes. De fato nasci mesmo atrasada queria ter vivido no empo deles....
ResponderExcluirCara Anônima, obrigado pelo comentário! É mesmo um tempo de muita nostalgia, né. A gente escreve tanto sobre esses caras, lê tanto sobre a vida deles que acaba sentindo, como que por tabela, uma nostalgia igual a dos que viveram a época.
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