quinta-feira, 19 de maio de 2016

O dia em que tomei café feito por Boris Schnaiderman

Boris Schnaiderman (1917-2016) em foto tirada no mesmo lugar onde o entrevistei

O escritor e tradutor Boris Schnaiderman morreu na noite de ontem, aos 99 anos. Em 2004, tive a oportunidade de entrevistá-lo. Eu trabalhava como freelancer para o Diário do Comércio, em São Paulo. Naquele ano, a CosacNaify relançou o único romance de Schnaiderman, Guerra em surdina, de 1946. Ofereci ao jornal uma pauta sobre o assunto, e lá fui eu entrevistar o pai de todos os tradutores de russo no Brasil.

Liguei para Schnaiderman, ele atendeu. Foi gentil comigo, aceitou a entrevista e me passou seu endereço, na rua Albuquerque Lins, no glamoroso bairro de Higienópolis. Eu havia lido seu livro. Pareceu-me uma tentativa de recuperar as dissonâncias da guerra, uma espécie de polifonia em que tantos narradores, cada um a seu modo, destrinchavam o significado daquela que foi a guerra mais devastadora do mundo, a Segunda Guerra Mundial.

Cheguei. Identifiquei-me na portaria, e o porteiro pediu para eu subir ao apartamento. Quando o elevador se abriu lá em cima, os dois apartamentos do andar estavam de portas abertas, e eu não sabia exatamente qual deles era o do meu entrevistado. Não dava para ver o número na porta. Mas foi questão de segundos. Jerusa Pires Ferreira, sua mulher, me recebeu.

Não demorou, Schnaiderman chegou. Cumprimentou-me e disse “vamos para a biblioteca, que lá a gente conversa mais à vontade.” Então saímos do primeiro apartamento e entramos no segundo, o outro que eu havia visto com a porta aberta também. Era simplesmente sua biblioteca. Salas e quartos lotados de livros em estantes enfileiradas. No centro da sala, um mesa redonda de onde dava para ver livros de sua autoria e romances de Dostoiévski, Tosltói, Gorki, Tchekhov, que ele traduzira. Convidou-me para sentar. Pedi para gravar a conversa, ele aceitou mui educadamente, e começamos a entrevista.

Primeiro, perguntei sobre o livro, depois perguntei uma infinidade de por quês e comos, sobre tradução (na época ele estava terminando de escrever um livro que só viria a ser publicado em 2011, Tradução: ato desmedido). Perguntei sobre sua participação na guerra, como oficial da FEB, sobre crítica literária, e no final fiz algumas perguntas sobre sua vida, a vinda para o Brasil, a vida no Brasil. Mas não tive coragem de entrar na sua questão judaica (veio para o Brasil fugindo dos terríveis pogroms). Não achei justo.

Finalizamos a entrevista. Jerusa havia saído para fazer alguma coisa na PUC, onde ela dava aula na área de semiótica e comunicação. O fotógrafo fez as fotos, tirou uma foto comigo e o mestre, prometeu me enviar depois. Como não tive coragem de pedir (sou um covarde), o fotógrafo nunca me enviou, mas fiquei com um autógrafo de Schnaiderman no Guerra em surdina, com uma caligrafia trêmula, de um senhor que já havia visto o mundo de mil ângulos.

Ficamos nós dois ali. Ele muito gentilmente se levantou e disse que ia preparar um café na cozinha da biblioteca. Enquanto passava o café, ficamos conversando. Durante a conversa, avistei um exemplar de Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt, judia alemã que se enamorou de Heidegger, o filósofo alemão cuja vida ficou marcada por seu antissemitismo, mas cuja obra não parece alojar tal inclinação, embora haja os que veem um caráter antissemita nos conceitos de Ser e tempo. 

Puxei conversa sobre Arendt, e ele disse: “Então você gosta de filosofia. Que interessante!”, como quem olha para uma criança, passa a mão em sua cabeça e diz “que bonitinho!”. Mas sempre de modo humilde. Como um cavalheiro que era, me deu ouvidos, e conversamos sobre a questão judaica na obra de Arendt, sobretudo em Eichmann em Jerusalém.

Enquanto falávamos, Schnaiderman preparava o café. Terminou, levou a garrafa para a mesa. Foi quando percebeu que havia esquecido de colocar o pó de café para a infusão. Na época, Schnaiderman estava com 87 anos, e eu havia perguntado como ele encarava a velhice. Educadamente me respondeu que não se sentia velho, do ponto de vista do espírito, da vontade interior. Só se sentia velho quando o corpo dava sinais de que já não era tão jovem assim.

Pode parecer empolgação minha, mas só por um momento achei que, no episódio do café, o esquecimento não era por causa da idade dele, e sim porque nosso papo estava bom. Ele estava gostando de conversar comigo. Provavelmente, só estava sendo gentil.

A entrevista deve ter durado uns 45 minutos, e a esticada do café mais meia hora. Foi uma grande aula. A matéria saiu, e ele ainda fez questão de me dizer que havia gostado do resultado e da maneira como conduzi a entrevista. Depois disso, como me senti? Quase me matriculei numa escola de russo. É com pesar que recebo a notícia de sua morte. Que descanse em paz.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Trem da história

                                                                                 Foto: Simplesmente Berlim    
Escultura que homenageia Karl Marx (sentado) e Friedrich Engels, em Berlim


Trem da história

Linhas gerais da história mostram como Edmund Wilson construiu o esqueleto de Rumo à Estação Finlândia, sua crônica sobre a conjuntura do socialismo

Revolução Industrial (1760-1820)
Novas técnicas e invenções de máquinas culminaram numa nova sociedade de capitalistas e operários. A demanda por mão de obra barata levava crianças a começar a trabalhar aos cinco anos. Mulheres, homens e crianças eram explorados nas fábricas e minas. Quando não davam mais conta do trabalho, viravam refugo, tornando-se mascates, varredores, lixeiros, prostitutas e ladrões. Não ascendiam economicamente.


Jules Michelet (1798-1874)
Pais pobres. Aprendeu latim e grego ainda criança, e depois inglês, italiano e alemão. Seus livros sobre a Idade Média e a Revolução Francesa embasaram os novos pensadores sociais. “O trabalhador é escravo ou da vontade alheia ou do destino.” Mas rejeitava o socialismo. “A burguesia e o povo têm de aprender a se conhecer e se amar mutuamente.”


Renan (1823-1892) e Taine (1828-1893)
Ernest Renan e Hippolyte Taine formam a dupla de historiadores que afrontam a história social de Michelet, incrementando a história das ideias (Renan) e o liberalismo histórico (Taine), defendendo a lei e a ordem da burguesia.


Graco Babeuf (1760-1797)
Filho de um protestante que empobrecera, Babeuf aprendeu a ler com papéis catados na rua. “Seu pai o fez jurar que defenderia até a morte os interesses do povo.” E assim ele fez. É um dos marcos da criação do socialismo. Defendia o princípio da igualdade social.


Saint-Simon (1760-1825)
Descendente de condes, após se desiludir com os negócios capitalistas, transformou-se num grande pensador social. Era antiliberal, criticava a ideia de liberdade individual porque achava que na sociedade “as partes deviam subordinar-se ao todo”, em que cada um haveria de desenvolver sua aptidão nata.


Charles Fourier (1772-1837)
Filho de um comerciante de fazenda francês, ganhou muito dinheiro, mas, tanto quanto Robert Owen, era sensível ao sofrimento do povo e detestava injustiças sociais. Quando ainda era garoto, na escola, levava surras homéricas na defesa de colegas menores.


Robert Owen ( 1771-1858)
Seu pai era um seleiro inglês. Tal como Fourier, foi um industrial bem sucedido. Acreditava que o interesse de cada indivíduo era compatível com o interesse de todos. Considerado uma das personalidades mais extraordinárias de sua época, investia todo o lucro de suas indústrias para criar uma comunidade que visava a igualdade absoluta.


Comuna de Paris (18 de março a 28 de maio de 1871)
Comunistas tomaram Paris, mas o governo burguês, entrincheirado em Versalhes, enviou tropas bem armadas que combateram a população durante oito dias, massacrando entre 20 mil e 30 mil homens e mulheres.


Marx (1818- 1883) e Engels (1820- 1895)
Karl Marx tinha como mito predileto o titã Prometeu, que roubou a centelha divina e a insuflou na alma dos mortais. Marx quis fazer o mesmo com os deuses do capitalismo e criou a teoria marxista.

Com a ajuda de Friedrich Engels, Marx analisou a economia e a política pela ótica da história, que expunha a luta de classes: conflitos entre uma classe exploradora e uma explorada. Previam que o conflito resultaria na tomada dos meios de produção pelos operários, no fim da sociedade de classes e na libertação do espírito do homem.


Estação Finlândia

Lenin (1870- 1924) e Trótski (1879- 1940)

Pequeno burguês, Vladimir Lenin se juntou aos operários e camponeses contra a aristocracia russa. Aliou seu pensamento ao de Marx, foi preso na Sibéria, exilado em Londres, e depois voltou como vitorioso da Revolução em 1917, dando início ao império comunista que, nas mãos de Stálin, viria a matar milhões de pessoas.

Leon Trótski ajudou Lenin a consolidar a vitória bolchevique, mas pregava uma revolução permanente, do tipo “a luta continua”. Stálin considerava a revolução pronta e acabada, e mandou seus agentes matar Trótski no México, onde havia se escondido.

Os russos, muitas vezes antissemitas, deglutiram as ideias revolucionárias de um judeu e demoliram o império russo para construir outro. Um dos equívocos de Edmund Wilson, segundo ele mesmo reconheceu mais tarde, foi não ter observado o pensamento e a obra do francês Anatole France com mais afinco.

Edmund Wilson lançou Rumo à Estação Finlândia em 1940. O pau já estava comendo na Segunda Guerra Mundial, mas Wilson ainda não tinha se dado conta da perversidade do novo império russo, na pessoa de Joseph Stálin. Por isso falou de Anatole France de en passant.

“Politicamente, France é socialista; no entanto, dois dos livros de sua última fase, Os deuses têm sede e A revolta dos anjos, têm como único objetivo mostrar que as revoluções terminam gerando tiranias pelo menos tão opressoras quanto aquelas que visaram derrubar.”



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O marxismo e o fracasso da salvação


Rumo à Estação Finlândia, de Edmundo Wilson, narra a aventura humana pela concretização de uma sociedade mais justa. No rastro dos grandes pensadores sociais, o livro é uma espécie de crônica de um tempo memorável, fazendo ressurgir no papel nomes caros à criação do socialismo, como Babeuf, Saint-Simon, Fourier, Robert Owen, além de Karl Marx e Friedrich Engels, os fundadores do marxismo.

Estação Finlândia é uma referência ao local para onde foi o líder marxista russo Vladimir Lenin, saindo de Londres, seu exílio, antes de seguir viagem para assumir o comando do governo revolucionário, que viria a se tornar um dos maiores totalitarismos da história com Stálin, prova de que na teoria a prática às vezes é outra.

O livro de Wilson não desbrava o totalitarismo russo. Finaliza com a chegada de Lenin a Moscou em 16 de abril de 1917. O filé da narrativa é mesmo o retrato daqueles espíritos pregressos, fora do comum com suas qualidades e defeitos. E Karl Marx foi o mais brilhante e fecundo deles.

Marx abdica da própria carreira profissional, e até do bem-estar da família, para lutar por amplos direitos em favor do proletariado. Por causa disso, ele se afunda na pobreza também. Sua penúria é comovente à medida que se imagina um homem dedicando seus melhores dias à causa dos excluídos, e por isso, de igual modo, se excluindo.

O trágico dessa história é que esses excluídos contemporâneos de Marx podem ter passado a vida toda sem saber do empenho do autor de O Capital. Por outro lado, havia também certa irascibilidade por parte dele em relação ao proletariado, além de demonstrar arrogância e pendores racistas contra seus críticos e desafetos.

Nasce o socialismo
Os novos pensadores sociais argumentavam que a sociedade era uma criação humana e que, portanto, podia-se reorganizá-la de acordo com a justiça e a igualdade de direitos entre os homens, sem a exploração de uns sobre os outros, como sempre havia ocorrido (e aumentado na Revolução Industrial).

E assim surgiu o socialismo. No seio dele, Karl Marx criou o marxismo com o auxílio do milionário e pensador social Friedrich Engels. É gostoso ler Rumo à Estação Finlândia pelo brilhantismo da narrativa de Edmund Wilson, pelas histórias de heroísmo fracassado dos grandes pensadores, inclusive o próprio Marx.

Segundo Wilson, Marx errou feio em duas premissas básicas. Primeiro imaginava que a Inglaterra industrializada abriria um abismo cada vez maior entre operários e patrões, e isso causaria a revolução comunista. Houve o abismo, mas “a progressiva degradação da classe operária teve simplesmente o efeito de atrofiar os trabalhadores fisicamente, e pouco a pouco extinguir-lhes o espírito.”

O outro equívoco, segundo Wilson, foi o de achar que os trabalhadores, pobres e analfabetos, com um mínimo de instrução se conscientizariam e se revoltariam com a exploração a que eram submetidos. “Mas agora sabemos que, quase invariavelmente, quando o povo pobre e analfabeto de uma sociedade industrial moderna aprende a dominar as técnicas mais avançadas e melhora seu padrão de vida tende a exibir ambições e gostos burgueses.”

Em todo caso, o marxismo ainda serve como valiosa interpretação do modo como um grupo poderoso pode explorar a massa de infelizes que não tem para onde correr, a não ser para a própria força social que raramente percebe que têm.

O que faz a diferença no livro de Wilson é sua sensibilidade aberta ao outro, sobretudo ao outro diferente de sua realidade pequeno-burguesa, o outro que soube construir pontes resistentes por meio das quais um séquito de explorados se reuniu com a intenção de mudar o mundo (história das ideias). Tudo que eles falaram foi em nome do povo, em defesa de um novo tipo de relação social, na qual não houvesse mais exploração.

Neste sentido, Rumo à Estação Finlândia é um livro que retrata idealistas sociais, homens sensíveis ao sofrimento alheio, que (parafraseando Graco Babeuf) pensavam em maneiras de proporcionar à espécie humana a igualdade e retirar das costas dos mais vulneráveis o peso da exploração.

Wilson identifica a história moderna como um trem com muitos vagões cuja locomotiva são Marx e Engels. Esses caras mudaram o rumo dos acontecimentos, fizeram a humanidade seguir numa outra bitola (e leva-se em conta aqui o trocadilho também).



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