domingo, 25 de maio de 2014

Ler os grandes é como escalar montanhas

A escritora Patrícia Secco conseguiu arrecadar pela Lei Rouanet R$ 1 milhão para um programa de adaptação de dois clássicos da literatura brasileira, O Alienista, de Machado de Assis, e A Pata da Gazela, de José de Alencar. Junto, angariou uma polêmica, pois a ideia é simplificar a linguagem literária dos dois gigantes do século 19 para distribuir gratuitamente entre não leitores, introduzindo-os no universo da leitura. Há quem veja valor nisso e quem ache que não passa de profanação.

É uma polêmica interessante, porque desperta várias discussões. O projeto em si é uma espécie de terremoto de pouca profundidade, que não abala as estruturas, não faz revolução, mas pelo menos move alguns espíritos, comove outros, e a literatura ganha protagonismo nas redes sociais, na imprensa e na escola.

Há um fator politico e um econômico, além da questão de linguagem, que especialistas poderiam comentar. Mas sobre simplificar textos literários, a história editorial está cheia de casos como esse. Homero, Dante, Shakespeare, os grandes sempre foram simplificados na tentativa de se alcançarem novas almas que, provavelmente, já estão acostumadas a ouvir os nomes dos figurões sem disposição para lê-los.

O debate sobre o projeto de Patrícia Secco, no mínimo, possibilita-nos lembrar o quão importante é a narrativa bem construída, carregada de significado, ou seja, o inverso do que ela quer fazer. Toda leitura vale pela descoberta, mas quando o campo é mais rico de possibilidades, as descobertas são maiores.

Neste sentido, é bom lembrar que as adaptações são correntes. Aparecem aos montes do complexo para o simples. O que não podemos nos esquecer é de que há inúmeros casos de autores que pegam um texto relativamente simples, geralmente um arquétipo, e os põem em um patamar de profundidade maior. Neste caso, precisamos de Machado de Assis por inteiro.

O grande mestre na arte de pegar uma história mais ou menos e torná-la profunda é William Shakespeare (1564-1616), em uma época que não se discutiam direitos autorais. Cada um que fizesse o seu melhor. Sua peça Romeu e Julieta, de 1594, é uma deliberada adaptação do texto de outros autores.

Em 1554, o padre e escritor italiano Matteo Bandello (1485-1561) havia publicado uma novela intitulada Romeu e Julieta, cujos personagens de Julieta Capuleto e Romeu Montéquio se amam, mas vêm de famílias que se odeiam, como em Shakespeare. Recuando no tempo, o mesmo texto, com algumas variações, já circulava com Amanti Veronesi (Os Amantes de Verona, em tradução livre), de Luigi da Porto, de 1535, e Il Novellino (O Novato), de Masuccio Salernitano, no século anterior.

Neste caso, por que Shakespeare se sobressaiu? Dois cotejos podem mostrar como ele tirou o texto da prosa e o condensou em linguagem dramática. Em uma das cenas, Julieta e Romeu se veem pela primeira vez, e se apaixonam, em um baile na casa dela, onde fica sabendo por sua ama que Romeu é um Montéquio.

Na novela de Bandello, há uma página inteira narrando o sentimento de Julieta, entre o desespero e o desejo, “acuada por dois contraditórios pensamentos, dos quais um lhe dava ânimo para conseguir o seu intento e o outro lhe truncava todos os caminhos.”

Em Shakespeare, a mesma cena aparece em uma só fala de Julieta a sua ama: “Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo.”

A segunda cena acontece quando Romeu contempla Julieta na janela do quarto dela. Em Bandello, Romeu já havia visto Julieta várias vezes da viela aos fundos da casa dos Capuleto, para a qual dava a janela, e os dois se correspondiam com olhares. Um dia, Romeu está perto do quarto de Julieta, ela chega à janela, ele tenta se esconder, mas não dá tempo, ela o vê e pergunta: “Romeu, o que faz você sozinho aqui a esta hora? Se aqui fosse encontrado, coitado, o que seria de sua vida?”

Em Shakespeare, em vez de uma viela e de trocas de olhares, há um jardim e um muro que Romeu, após conhecer Julieta no baile, atreve-se a pular para chegar à janela dela e ficar lá embaixo, ouvindo seus suspiros: “Ah, Romeu, Romeu! Por que tinhas de ser Romeu?” Sem que ela soubesse de sua presença, ele responde: “Tomo-te por tua palavra: chama-me de teu amor, e serei assim rebatizado; nunca mais serei Romeu.” Julieta então, surpresa, replica: “Quem é esse homem que, assim envolto pela noite, tropeça em meu segredo?”

Um dia perguntei ao especialista em Shakespeare, John Milton, porque ninguém mais ousou reescrever Romeu e Julieta após Shakespeare, já que era uma história de domínio público. E ele respondeu rapidamente: Shakespeare foi perfeito e definitivo, reescreveu a peça sem deixar brechas para ninguém mais.

Já no caso da adaptação de Patrícia Secco, ela reduz a potência de Machado, simplificando os códigos de sua literatura na pretensão de angariar leitores. Isso só é bom porque democratiza o acesso à leitura, mas leitor que se preza não pode, nem deve, se esquivar dos grandes.

Ler os grandes é como escalar montanhas ou descer abismos. Em Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, o comandante Lindenbrock dá lições de abismo a sua tripulação para ter ideia do que é fazer um mergulho sem igual como aquele. Talvez Patrícia pretenda dar essas lições de abismo aos não leitores, uma proposta de levitação para se encararem as profundezas de Machado de Assis. Mas é como ensinar a nadar em terra firme, ou dar instruções de salto de paraquedas ainda cá embaixo.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 24/05/2014)

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terça-feira, 20 de maio de 2014

A casa do outro: o exílio como distância e procura


A definição de exílio exige uma longa caminhada, percorre extensos trechos de terra em conceitos e significados. Não nos interessa aqui, no entanto, explorar todo esse universo, apenas fixar grosso modo a ideia de desterro e afastamento, cujo resultado, pelo menos a priori, é a insuportável dor de estar longe de casa ou o doce incômodo de se ver forçado a deixar o lar. Exílio é, portanto, degredo, é o estar longe do lugar onde se nasceu, longe da família, dos amigos, e em muitos casos, distante inclusive da própria língua.

Desde as narrativas mitológicas, passando pela Bíblia, até chegar à literatura, antiga, moderna e pós-moderna, o exílio é um grande tema. Adão e Eva foram exilados do Paraíso como castigo. Ulisses passou duas décadas distante de sua Ítaca e de seus amores, por ter ido lutar na guerra de Troia, esta terra que aliás flerta com a ideia de exílio, uma vez que ex em latim é uma preposição ablativa “de”, que designa, primeiramente, “circunstância de lugar, com a ideia de movimento de dentro para fora, do interior de” e também “do lado de”, (DICIONÁRIO DE LATIM-PORTUGUÊS, p. 243) e Ilium quer dizer Ílio ou Troia.

Viver exilado é morar na casa do outro, seja por estar em uma outra cidade, em um outro país ou até mesmo falando outra língua, mesmo que seja no mesmo território em que se nasceu, mas em um lugar onde se está proibido de falar a língua materna, por motivos políticos ou religiosos, como os judeus na Alemanha, na Rússia, na Espanha, em vários momentos da História.

O grande arcabouço da figura do exílio pode ser lido em Os males da ausência, ou A literatura e o exílio, de Maria José de Queiroz (1998). Ela joga luz sobre o tema do ponto de vista da escrita e do escritor, mostra dezenas de exemplos de homens que foram exilados, uns por imposição, e outros por vontade própria, o autoexílio.

A ideia de exílio torna-se complexa porque as razões para se estar permanentemente, ou por longo tempo, longe de casa, são muitas. Partindo dos exemplos de Queiroz, no primeiro caso, as razões geralmente são políticas, em um embate do cidadão com o poder vigente. Já no segundo caso, há uma série de fatores que podem levar uma pessoa a se exilar, desde questões políticas, de desacordo com o poder, até razões de ordem socioeconômica, quando a pessoa sai de casa para ganhar a vida em outro lugar, ou mesmo impulsionada por um sonho de explorar, criar, fundar uma nova identidade, a partir de uma crise individual ou de família. Sair para encontrar-se com seu eu verdadeiro. Mas quando se chega lá, vê-se que seu lugar era onde estava.

“Todos os exílios configuram uma ideologia – religiosa, mítica, política, econômica ou social. E no caso de tribos, povos e comunidades inteiras, o exílio – voluntário ou compulsório –, se resolve num ato fundador. À tristeza e ao sofrimento sucedem a determinação, a coragem, a fortaleza de ânimo. Ao desespero da perda de quanto se deixa para trás se sobrepõe a esperança do recomeço” (QUEIROZ, 1998, p. 29-30).

A vontade ou a necessidade de partir cobra um preço quase sempre alto ao exilado. Ele parte, chega a algum lugar, instala-se ali, e pode ser até que se torne bem sucedido na empreitada, do ponto de vista financeiro, social, mas dentro da alma ainda há alguma coisa que o inquieta. Os males da ausência são muitos, e o maior deles é a reconfiguração ao que o sujeito se submete. É justamente esta sombra subjetiva que permanece, de lembranças, de imagens de um tempo pregresso. No exílio, ele modifica-se, mas nasce nele uma espécie de saudade que o impele para a volta.

“A longa permanência fora de casa tanto desfigura o rosto e o corpo como altera a marcha, corrompe o sotaque, modifica os costumes, tornando estrangeiro, e até irreconhecível, o infeliz retornado. Não foi o que aconteceu a Ulisses?” (QUEIROZ,1998, p. 42)

Mas, e se quando voltar, seu lugar de origem já não for o mesmo? E nunca é. O que fazer? Sentir-se estrangeiro para sempre? O exilado é modificado pelo tempo, pelos novos hábitos, e sua terra também, com novas pessoas, com costumes alterados. Na maioria dos casos dos que se aventuram pelo exílio, eles partem prometendo regresso, quer para si mesmos, quer para alguém, os pais, os amigos, uma namorada ou um namorado, “querem regressar vencedores e merecer, em casa, o reconhecimento daqueles por quem arriscaram a vida” (QUEIROZ, 1998, p. 43). Isso nem sempre acontece. Tudo muda ao longo do percurso e nos espaços de referência, tanto do exílio quanto da própria casa.

Os exilados podem sair de sua casa em busca de uma vida melhor. Isso é comum no mundo inteiro. No Brasil também. O processo de migração no país, principalmente do Nordeste para o Sudeste e o Sul, ou do Sul para o Centro-Oeste e o Nordeste, também configura, em muitos casos, um grau de exílio. Quando o motivo não é político, a busca por riquezas, por melhoria de vida, é um dos fatores que caracterizam o exilado. Na distância de casa, os sentimentos mais comuns, além da solidão, que é o mal que “mais o acabrunha” (QUEIROZ, 1998, p. 57), são a carência e a sensação de fracasso.

Muitas personagens da literatura brasileira se encaixam nesse perfil, e a tensão que se cria na sua jornada dentro da narrativa é justamente em função do conflito que surge entre reconhecer o exílio e querer domesticá-lo, fazer dele sua nova casa. Voltar sem ter conseguido isso seria um fracasso. Permanecer na luta, sem a vitória, é abrir caminho para a carência de todo tipo, financeira, afetiva e social.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Breve estudo sobre Guerra e paz

O romance Guerra e paz, do russo Liev Tolstói, foi escrito entre 1863 e 1869, mas ambientado num tempo anterior, numa Rússia que enfrentou o gênio estratégico de Napoleão Bonaparte que queria dominar o mundo, e estava quase conseguindo, até se esbarrar no combate de homem a homem da batalha de Borodinó.

Guerra e paz é um romance longo, que no formato publicado pela editora brasileira CosacNaify leva 2.528 páginas, em dois volumes, costurando a vida comezinha do dia a dia e as grandes batalhas. Com uma multidão de personagens, muitos deles pertencentes à ala de frente da trama, desempenhando papéis fundamentais, narra a vida da sociedade russa num momento importante de sua história, um período de agonia e glória, retratando um conflito que durou de 1805 – quando o exército de Napoleão dá os primeiros sinais de que invadiria a Rússia de Alexandre I – a 1812, quando ocorreu a batalha de Borodinó e 80 mil soldados tombaram, no total.

Depois a narrativa escorre por mais um ano, além de sugerir que o tempo da narração está ancorado em 1819.

Para falar da guerra e abrir uma discussão sobre o fracasso da história, ao mesmo tempo em que mostra a alma russa, Tolstói trouxe junto todo o tecido social, com os fatos da cozinha e da intimidade da alta burguesia, os conchavos, as fofocas, os bailes, o amor, o ódio, os contratos sociais, tudo para encorpar o novelo de acontecimentos de um corpo social complexo, dentro do qual vão-se forjando os novos fatos, dentro do qual a História se perde e não consegue alcançar a explicação de por que uma guerra acontece, nem de por que uma sociedade muda seu rumo.

O primeiro volume, com os primeiros tomos, é dedicado à alternância entre tempos de guerra e tempos de paz, entre o front, com tiros e mortes, e os salões, com flertes e conspirações.

Vemos surgir os grupos e os matizes sociais no salão de Anna Pávlovna, a herança de Pierre Bezúkhov, a perfídia da bela, mas ordinária, Hélène, o jogo de interesse de Vassili, a bela família dos Rostov, com Natacha, Pétia, Nikolai e Sônia, a complicada mas honrada família dos Bolkónski, com Mária e o irmão Andrei, as discussões pró e contra Napoleão, as relações de uns e outros com a família imperial.

No segundo volume, tudo se mistura, pois é quando a guerra já tomou conta do país e todas essas personagens estão, de alguma forma envolvidas na guerra, que do lado russo está sob o comando do general Mikhail Ilariónovitch Kutúzov, cujo exército de algumas dezenas de milhares de homens enfrentará as centenas de milhares de soldados franceses e a ardilosa mente de Napoleão.

É nesse caldeirão de vida que Tolstói usa a História como contra-argumento, para mostrar que a Literatura alcança os recantos aonde a própria História não consegue ir. A Literatura dá conta de um tipo de verdade que a História sequer sonha que existe, uma verdade feita de acontecimentos minúsculos que vão se agigantando como átomos acumulados, pregados uns nos outros até que, como num milagre, moléculas surgem para criar corpos maiores para dar forma a estruturas a olhos vistos.

Esta, em conjunto com outras estruturas, é o que a História consegue ver. Aqueles, entre partículas, átomos e moléculas, é o que a literatura pode captar e mostrar ao leitor, apontando os marcos a partir do qual a vida é feita, em que os fatos acontecem, mostrando, portanto, como a sociedade se faz e navega no fluxo dos acontecimentos.

Guerra e Paz é um romance inventado para inventar um tipo de Rússia, a forte, teutônica Rússia, e ao mesmo tempo mostrar a tibieza da História, incapaz de apontar os pormenores que levam uma nação em guerra à vitória ou à derrota.

Entre um caso e outro, mostra também a força e a fraqueza individual dos homens. Mostra a imponência de Napoleão, homem admirável pela capacidade de ser imperador e ao mesmo tempo general, de comandar um império e ao mesmo tempo estar à frente de um campo de batalha. Mas retrata também o tamanho físico de Napoleão, fazendo uma metáfora para sua insignificância diante da guerra e das circunstâncias.

Os diversos fatos de guerra, as batalhas, as mortes, os recuos, os avanços, os saques, a coragem e a covardia dos soldados, o amor, os bailes, as traições, a religiosidade, a ganância, os mínimos detalhes que vão se acumulando na alma de cada personagem, tudo isso são fatores que no acúmulo dos dias e dos anos vão direcionando as ações humanas, interferindo de uma maneira ou de outra para que, no final de cada modificação na vida social, esses pequenos detalhes tenham tido papel importante nas grandes mudanças.

Esta é a tese de Tolstói, uma tese segundo a qual a História não consegue captar esses pormenores de sentimento, de ação, de perspectiva. Tudo depende das circunstâncias, que não se prende a nenhum fator especial.

E a História não consegue isso porque é feita pelo uso do intelecto, cuja principal ferramenta de acesso aos fatos é a razão. Mas os fatos da vida, os fatos que levam a um corpo maior, acabado, do que se chama realidade escapam à razão, na hora de serem contados. O que fixa isso são as circunstâncias, e elas não podem ser vistas do mesmo modo por intelectos diferentes.

Uma das personagens fulcrais de Guerra e paz, Pierre, em certo momento representa essa contestação tolstoiana. Pierre vai participar de um encontro maçônico pela primeira vez, e lá, naquela reunião, “ele se impressionou com a infinita diversidade de intelectos humanos, cuja consequência é que nenhuma verdade se apresenta da mesma forma para duas pessoas”, foi sua conclusão (2011, p. 898).

Quem luta para construir sua vida segundo a própria razão “sucumbe. Quem se submete às circunstâncias, vence.” Eis a premissa. O romance inteiro é construído para levar a cabo essa ideia. E isso acontece não só na guerra, acontece no amor também.

Sobre a guerra, basta citarmos a passagem em que o narrador argumenta por que a sangrenta batalha de Borodinó teria acontecido do jeito que aconteceu independente de Napoleão, razão também pela qual a Rússia vence, embora tenha menos soldados e menos intelecto, se for comparada aqui a genialidade de Napoleão e a propagada parvoíce e quietude de Kutúzov.

“Muitos historiadores dizem que a batalha de Borodinó não foi vencida pelos franceses porque Napoleão estava resfriado e que, se ele não estivesse resfriado, as suas ordens, dadas antes e no decurso da batalha, teriam sido ainda mais geniais, a Rússia estaria perdida, et la face du monde eût été changée. Para os historiadores que consideram que a Rússia foi formada pela vontade de um homem só – Pedro, o Grande – e que a França passou da república ao império e suas tropas foram para a Rússia pela vontade de um só homem – Napoleão –, e o argumento de que a Rússia continuou a ser poderosa porque Napoleão teve um grande resfriado no dia 26 é, para tais historiadores, um raciocínio perfeitamente lógico. (...).

“Mas, para as pessoas que não admitem que a Rússia tenha sido formada pela vontade de um só homem – Pedro I – nem que o império francês tenha constituído e a guerra contra a Rússia tenha tido início pela vontade de um só homem – Napoleão –, tal raciocínio não só parece equivocado e absurdo, como também contrário a toda essência humana. (...)

“Na batalha de Borodinó, Napoleão não atirou em ninguém e não matou ninguém. Os soldados fizeram isso. Portanto não foi ele que matou as pessoas.

“Os soldados do exército francês foram matar os soldados russos na batalha de Borodinó não por causa das ordens de Napoleão, mas por sua própria vontade. (...) Se Napoleão tivesse proibido suas tropas de lutar contra os russos, os soldados o matariam e partiriam para lutar contra os russos, porque isso era uma necessidade para eles” (2011, p. 1632-35).

Todo o romance de Tolstói flui com essa lógica da incerteza, da irracionalidade, do insólito. Tanto é assim que suas personagens parecem ir para um lado e de repente estão em outro, como é a história de Hélène e Pierre, que se casam, e depois ela morre e ele se casa com Natasha, ou a história de Nicolai, apaixonado por Sônia, e ela por ele, mas acaba se casando com Mária.

Esse exemplo do amor e da guerra submetidos às circunstâncias é a essência da vida, segundo a premissa de Guerra e paz. Ou seja, Não só no curso da história, da vida social e política, mas também o fluxo da vida interior é um produto mais do acaso do que do planejamento. Quando Nikolai Rostóv se preparava para se casar com Mária, o narrador, provavelmente ele mesmo, diz o seguinte:

“(...) Após uma breve mas sincera luta entre a tentativa de construir sua vida segundo a própria razão e a submissão obediente às circunstâncias, ele optou pela última e rendeu-se ao poder que o arrastava não sabia para onde e (ele sentia) de modo irresistível. (...) Mas sabia também (e nem tanto sabia como sentia no fundo da alma) que, rendendo-se agora ao poder das circunstâncias e das pessoas que as governavam, ele não só não faria nada de ruim, como faria algo muito importante, mais importante do que qualquer outra coisa que havia feito na vida” (2011, p. 1966).

Em Guerra e paz, Tolstói vê o fluxo da história e, consequentemente (ou contrariamente), as ações humanas como mínimas sequências de ondas (2011, p. 2.319) que acabam formando outras ondas maiores, até se configurar todo o balanço do mar com suas reviravoltas sem que não se saiba o que fez o quê. “Quanto mais nos aprofundamos na busca das causas, um maior número delas se revela para nós” (2011, p. 1274).

É um vaivém quase infinito de detalhes históricos para provar que a História não dá conta dos pormenores que fazem acontecer os fatos. Guerra e paz é isso, entre a impressionante e profunda capacidade de singularizar (CHKLOVSKI, 1973) o mundo, o cotidiano, os pormenores e a grandiosidade, sua técnica do romance brilha, porque joga o leitor dentro do texto e o faz caminhar pelas paisagens.


Dentro da narrativa, para comprovar a falibilidade da História e a vitória da Literatura, o autor traz esse corpo imenso de relações amorosas, construção de personagens, aprofundamento emocional das personagens, vida e morte de homens, mulheres, crianças passando frio e fome, Moscou destruída, e os salões funcionando em Petersburgo com a nobreza do Estado russo se deleitando em conversas animadas e polarizadas.