terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Pai nosso que estás nas línguas

“Um trabalho fundamental, extremamente importante e original na bibliografia de nossa língua.” O que dizer depois desse trecho de uma carta assinada pelo mestre da lexicografia e da filologia Antonio Houaiss, enviado a Adovaldo Fernandes Sampaio, sobre seu livro Línguas e Dialetos Românicos e Germânicos?

Em 2010, o livro foi relançado pela editora Kelps (7ª edição, 350 páginas, acrescido de um opúsculo de 96 páginas que conta as línguas germânicas), por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Goiânia. O que dizer? Talvez declarar o reconhecimento de não se ter nem mesmo ouvido falar de várias línguas citadas nessa publicação exemplar.

Mas isso, também um professor da Universidade de Bristol, Inglaterra, doutor no assunto, já tratou de ressaltar, em 1996, pouco tempo após o lançamento da primeira edição. “Fiquei impressionado com o fato de você ter distinguido uma grande gama de dialetos e línguas singulares, muitas das quais jamais ouvi falar”, diz o professor em carta ao autor.

O mais original do trabalho de Sampaio é a proposta. Ele enviou um questionário a 421 pessoas falantes dessas línguas regionais, o que possibilitou a contagem de cada um dos idiomas românicos e germânicos, chegando a mais de 170 (dos quais cerca de 120 são de origem românica, ou seja, latina,como o português e o picardo).

Para atualizar a existência delas, o autor se valeu de um artifício canônico, que lhe deu asas para sobrevoar os pormenores das línguas estudadas. Pediu a cada um dos questionados que escrevesse o Pai-Nosso e a Ave-Maria em sua língua materna. O resultado foi esse delicioso roteiro de mundos.

Armada

Algumas dessas línguas podem ser consideradas dialetos. E Sampaio, sabiamente, cita a palavra em seu título, para não assustar ninguém. Mas ele sabe que, a rigor, toda língua pode ser um dialeto, e vice versa, dependendo da exploração de seu conteúdo linguístico, do resguardo legal que há por trás de sua configuração nacional, do valor cultural e da quantidade de pessoas que falam.

Mas depende principalmente da nação que a defende. “Uma língua é um dialeto com exército e marinha”, disse Max Weinreich (1893 - 1969), linguista judeu letão, que citava um autor anônimo numa conferência internacional. Em relação ao valor de cada uma, Sampaio assinala: “As línguas pertencem ao patrimônio da Humanidade, e nenhuma é pobre nem insignificante.”

Dentro desta perspectiva, manter um idioma vivo é uma luta, principalmente para as pequenas nações, que muitas vezes nem Estado têm. Testemunhar em seu tempo uma língua agonizar não é dos melhores sentimentos. “É uma pena que em vários países, as línguas estejam desaparecendo”, lamenta o autor na introdução.

Seu livro testemunha esse luto por meio de uma carta retirada de Le Judéo-espagnol, de Haïm Vidal-Séphiha, escrita em judeo-espanhol, língua falada entre os sefarditas, ou seja, judeus que habitaram a península ibérica até o final do século XV, quando foram expulsos pelos espanhóis. Segundo Sampaio, essa língua é falada até hoje, inclusive com a circulação de jornais em Israel e na Turquia.

A carta, Letras a um pintor, de Marcel Cohen, diz o seguinte: Karo Antonyo, / Kero escrivirte en djudyo / antes ke no kede nada / del avlar de mis padres. / No sabes, Antonyo, / lo ke es morire una lingua. / Es komo kedarse soliko en el silensyo / kada diya ke el Dyo da, / komo estar sikileozo / sin saver porke.”

(A tradução provavelmente é de Sampaio, embora não seja mencionado o tradutor): “Caro Antonio: Quero escrever-te em judeo-espanhol antes que não reste mais nada da língua de meus pais. Não sabes, Antônio, o que é a morte de uma língua. É como ficar sozinho no silêncio cada um dos dias que Deus nos dá, (é) como ficar triste sem saber por quê...”

O livro de Sampaio vale pelo fascinante universo das línguas que o autor consegue imprimir. É algo semelhante ao que fez Charles Berlitz, com o seu As Línguas do Mundo, com a diferença de, neste caso, pôr o leitor na roda de histórias sobre os idiomas mais falados no planeta.

Domínio

Até mesmo uma pessoa monolíngue é capaz de se encantar com o som estranho de uma língua que ela ouve pela primeira vez. Que dirá do charme das decodificações e o prazer da descoberta de um novo universo de valores, de sentimentos e de compreensão do real, quando se aprende outra língua? É ter acesso ao outro, aproximar-se humanamente do outro. É um novo acesso ao real.

Conhecer a língua do outro significa adquirir a responsabilidade de ajudar uma cultura inteira a se manter viva, a se perpetuar, ou de conquistar o outro para aniquilá-lo. Isso vai depender das intenções de quem aprende a língua. A última opção foi o que fez Fernão Cortez, como vários conquistadores de mundos.

Cortez e sua súcia aprenderam a língua dos astecas para ter acesso ao seu modo de pensar, e em seguida os dominou e os aniquilou. Aqui no Brasil, aconteceu a mesma coisa com os indígenas. “A língua sempre foi a companheira do império”, disse Antonio de Nebrija, que em 1492 publicou a Gramática de Língua Espanhola, a primeira de um idioma europeu moderno.

Conhecer a língua do outro também oferece a oportunidade de se fazer amizade e ampliar profundamente os horizontes. Quando duas pessoas se entendem, costuma-se dizer que “falam a mesma língua”, o que significa uma espécie de acesso livre de um ao universo particular do outro. O livro de Adovaldo oferece essa oportunidade introdutória de um conhecimento profundo.

Línguas e Dialetos também dá a oportunidade de conhecermos um pouco mais daquilo que é nosso berço etnolinguístico. No caso do Brasil, o que falta agora é um trabalho diferenciado como este, com chaves de fácil manipulação, no horizonte das línguas africanas das quais somos herdeiros, e o mesmo para as línguas indígenas que têm na raiz parte de nossa origem e de nosso arquétipo linguístico.

Nesses dois últimos casos, o acesso ainda é feito de fios fracos, quer pela falta de um sistema escrito elaborado, por parte de algumas línguas, quer pelo preconceito e falta de interesse, por parte dos estudiosos.

BOX

Trecho de Ave-Maria em:

Português

Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco;
bendita sois vós entre as mulheres,
e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.

Murciano [língua românica]

Dios te sarve, Maria, renchia eres e jracia,
ir Siñor está contigo,
bindita tu eres d’entre toas las mujeres
y bindito er fruto e tu buche, Jesules.

Estremenho [língua românica]

Dios te salvi, María, enllena estás de gracia.
El Señol es contigu, bendita tu entri toas las mujeres,
y benditu el frutu Del tu vientri, Jesús.

Bislamá [língua germânica]

Meri, i gud yu glad, God i mekem i gud tumas long yu.
Hem i stap wetem yu.
Hem i blessem yu moa long olgeta Woman.
Hem i blessem Jisas tu, Pikinini blong yu.

Tittschu [língua germânica]
Ech tiö tech griezu Maria, vallje gratsia,
der Ljebun Got isch bet diér.
Du bescht bénedirte em allje d wiber,
Und bénedirz isch di schu Jesus.

Serviço

Título: Línguas e Dialetos Românicos e Germânicos
Autor: Adovaldo Fernandes Sampaio
Editora: Kelps, 2010, 446 páginas
Gênero: Linguística
Preço: R$ 60

(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado na Tribuna do Planalto, e, 2010)
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sábado, 18 de janeiro de 2014

A distopia de Haruki Murakami

Haruki Murakami sabia que estava escrevendo um best-seller

O escritor japonês Haruki Murakami, de 64 anos, tinha uma pegada low profile, com romances de linguagem experimental, até lançar Norwegian Wood em 1987, de cunho aparentemente realista. Ganhou notoriedade internacional a partir de 2000, com a tradução para o inglês deste mesmo romance, que já vendeu dezenas de milhões de exemplares. De lá para cá, o culto em torno de sua obra e de sua vida só aumentou.

Em entrevista à Paris Review, em 2004, o autor disse que se quisesse se tornaria um escritor cult, escrevendo livros de tramas surrealistas, como seus primeiros trabalhos. Disse ainda que tinha feito Norwegian Wood com bastante clareza do que queria, e que sabia do potencial de agradar ao público.

Resumindo. Murakami, que tem deus no nome (kami), sabia que estava escrevendo um best-seller. E deve ter tomado muito gosto pela capacidade de empregar seu gênio na manipulação dos infalíveis ingredientes do mercado sem perder a sintonia com a arte. Sua trilogia 1Q84, disponível em português, é mais um sucesso de público e de crítica.

A força de Murakami advém de uma rara habilidade em mesclar elementos do real numa trama surreal, em que as conspirações, a violência e as banalidades do dia a dia às claras, com sexo, morte e psiquiatria, passando bem ali sob nossas fuças, se enchem de mistérios. 1Q84 trouxe essa mistura com grande explosão de realismo. A narrativa se alterna entre duas histórias paralelas no ano de 1984.

De um lado está Aomame, assassina profissional de 30 anos, que mata homens poderosos e sem escrúpulos, furando-lhes a nuca com uma agulha fina, executando o crime perfeito, porque eles morrem como se fossem vítimas de um infarto fulminante. Inteligente, cautelosa e fria, Aomame é formada em educação física, especialista em acupuntura e perita em chute nos testículos.

De outro lado, a trama traz Tengo, professor de matemática de 29 anos, escritor fracassado e amante de uma mulher casada. Ele se envolve numa fraude editorial com outras duas criaturas sinistras: Komatsu, um editor consagrado que quer ganhar o Prêmio Akutagawa usando o romance de uma estreante de 17 anos chamada Fukaeri, uma menina bonita, inteligente e misteriosa, que ama literatura clássica japonesa e música clássica ocidental, e que sofre de dislexia. Tengo fica encarregado de reescrever o livro de Fukaeri, Crisálida de ar, poderoso no conteúdo, mas deficiente na forma.

As histórias vão andando numa contradança de afastamento e aproximação, enquanto a aparente clareza das coisas vai enegrecendo, se fundindo em elementos fantásticos, como o aparecimento do Povo Pequenino, que durante a noite sai da boca de Fukaeri e aparentemente é quem comanda a realidade que a cerca.

Já o título do livro de Murakami é forjado por Aomame em crise. Dotada de uma memória límpida, dentro da qual organiza seu mundo muito metodicamente, percebendo cada movimento externo com absoluta precisão, de repente se vê em uma situação inusitada, em que nada no mundo é como antes. Acha que a polícia modificou o uniforme e as armas uma semana atrás, mas descobre que a mudança fora feita já havia dois anos, sem que ela percebesse.

De repente, olha para o céu e vê duas luas. Para não pensar que enlouqueceu, raciocina que o mundo onde vive agora é outro, e que ela precisa se posicionar de modo diferente nesse novo universo sobre o qual caíra, passando a marcar seu calendário com o ano de 1Q84, cujo Q é de “question mark” (ponto de interrogação), embora também haja ali um trocadilho com o número nove em japonês, que, tal como a letra Q em inglês, se pronuncia “kyu”.

1Q84 é uma distopia japonesa, uma sinfonia marcial regida sob o som sinistro da desconstrução, da ruína do mundo conhecido. É o palco se abrindo enquanto os personagens caem no abismo da existência. E levam o leitor junto. Traz uma releitura dos romances 1984, do britânico George Orwell, e Invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares, além do redomoinho referencial da cultura pop americana e da sociedade de consumo.

Tudo é feito com muito esmero, numa pseudoclareza que encanta a todos. Murakami consegue criar uma espécie de imã identitário que puxa o leitor para perto dos personagens, e dali os espreita, olhando-os com misto de compreensão de suas dores e uma expectativa do que ocorrerá nas cenas seguintes.

Sua prosa tem ótimos pulmões. Ele é de fato um mestre dos detalhes, que ora aparecem na narrativa como casualidade, como se não tivessem sido pensados antes, respirando serenamente, ora surgem com a força nauseante do realismo. A saturação do real é uma marca do autor. Em sua vigorosa narrativa, a realidade se equilibra muito bem na complexa mistura entre acontecimento exterior e manifestações interiores, com as inquietações e as crises existenciais de seus personagens.

Murakami parece ter descoberto um segredo da natureza humana que se formula assim: Você vê uma pessoa pela primeira vez. Ela faz um movimento diferente com a boca que cativa você, e no momento em que você percebe isso, essa pessoa diz uma frase com no máximo dez palavras que parecem resumir tudo. E aí você se encanta. E aí você quer saber quem é essa pessoa, de onde ela vem, o que ela come, como ela vive, e tudo que se conta dela, todos os detalhes de sua vida, lhe interessam. Você escuta tudo, absorve tudo, porque você está amarrado a esse laço magnético do primeiro impacto.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 05/01/2014)

domingo, 5 de janeiro de 2014

Um exemplo da técnica de Murakami, autor de 1Q84


A rica trama da trilogia 1Q84, de Haruki Murakami, gira em torno de Tengo e Aomame. Certo parágrafo sobre a infância de Tengo é todo exterioridade. Mas numa palavra banal, até, o leitor passa a ver tudo de modo diferente: “Para muitas pessoas, a manhã de domingo simboliza um momento de descanso. Mas, quando criança, Tengo nunca associou a manhã de um domingo com algo alegre. Muito pelo contrário, os domingos sempre o deixavam triste.”

Tudo em volta é o que acontece com os outros ou até mesmo o que acontece com Tengo. O domingo é algo exterior, não é subjetividade, é um processo de objetivação do mundo. Tudo é fora, inclusive a palavra alegre, que é a antítese do sentimento de Tengo, menos a palavra triste, sua condição cabal. E o narrador pega essa mísera palavra que denota uma interioridade, um sentimento, uma manifestação subjetiva, e a envolve numa série inumerável de acontecimentos repetitivos no maldito domingo, um não, vários (todos), da infância de Tengo. Nessa ocasião, ele acompanhava o pai no trabalho de cobrança de porta em porta.

“Houvesse o que houvesse, todos os domingos, da manhã até o entardecer, ele precisava acompanhar o pai no roteiro de cobranças. Era uma regra imutável. Uma regra que não admitia exceção e que não tinha margem para nenhum tipo de mudança. Mesmo gripado e tossindo sem parar, mesmo com febre ou com dor de barriga, seu pai não o poupava. Quando estava nesse estado, caminhando com dificuldade atrás do pai, Tengo imaginava como seria bom desmaiar e morrer ali mesmo.”


Em outra passagem sobre Tengo, a desconstrução que parece vir de fora, vem de dentro, e aí é mais avassalador.

“Ele não era bonito no sentido convencional dos padrões de beleza, nem era do tipo extrovertido, e suas conversas não eram exatamente divertidas nem interessantes. Sempre estava sem dinheiro e suas roupas não eram boas. Mas, assim como certas plantas exalam um aroma que atrai os insetos, ele conseguia atrair um certo tipo de mulher.”

A marca do realismo nessa trilogia de Murakami também é interessante. Ele usa a linguagem realista como isca para fisgar o leitor e o levar para o reino sombrio de sua ficção. Parece ser o mais ocidental dos autores japoneses. Só parece. Assim como o Japão assimilou a técnica de produção do fordismo para depois criar o just in time e uma série de inovações no sistema de produção, adotou os gestos americanos, o olhar ligeiro do mundo capitalista, mas não se sucumbiu a ele, Murakami recupera de modo diferente, sui generis, as fábulas do Ocidente. É uma espécie de Kurosawa da literatura.

Veja uma descrição de Aomame:

“Aomame tinha um cuidado especial com suas refeições. Eram à base de verduras, legumes e frutos do mar, principalmente peixes de carne branca. Quanto às carnes, comia de vez em quando a de frango. Os ingredientes eram sempre frescos e, para temperá-los, utilizava o mínimo de condimentos. Evitava alimentos com alto teor de gordura e controlava a quantidade de carboidratos.”

Mas não é isso que interessa nela. Interessa, isso, sim, sua solidão, o não dito da forma como ela se apresenta ao mundo do leitor. Aomame é quase invisível porque é transcendental, como Tengo, eles, opostos na forma, são íntimos, similares, na essência estranha de seres transcendentes, de um mundo mágico, de um universo surreal, que no fim das contas é o próprio reflexo da ficção de Murakami.

O que ele faz em sua literatura é mais ou menos o que faz Rubem Fonseca aqui no Brasil, mas de modo diverso, claro. Ambos se valem do real como ferramenta para transcender, para fisgar a alma do leitor. São como demônios. Apropriam-se da alma do leitor, aproveitando sua entrega.


É bom lembrar, no entanto, que este é apenas um tipo de literatura. Não encerra a essência da arte, não chega sequer ao topo, ou à ponta, dos fios que tecem a magia de narrar. Murakami parece superar os mestres (Akutagawa e Mishima, sobretudo) na delícia da prosa, mas no poço das verdades, onde estes estão descendo lá no fundo, aquele ainda se engancha com as pernas pelo meio da descida.

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