quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

EU SOU A LENDA: a situação extrema da solidão

O filme Eu sou a lenda, com Will Smith e Alice Braga, tem seus altos e baixos. O nivelamento por baixo se dá por suas linhas gerais e pela tentativa malograda do diretor em nos jogar numa espécie de cinema-vertigem, em que a câmara se afasta do objeto numa velocidade tremenda, em alguns momentos. Isso na sala de cinema é até interessante, mas no fundo, no fundo, sabemos que se trata de um recurso pífio para causar sensações no espectador, uma vez que, nesse caso, a vertigem não traduz nada de especial.

A trama do filme quer mostrar a situação extrema da solidão humana. Para isso, a grande idéia do autor do livro em que se baseou o filme foi matar todos na terra e deixar apenas um homem vivo, em sãs condições. O médico infectologista das forças armadas norte-americanas, doutor Robert (Smith), é o único sobrevivente de uma catástrofe epidemiológica – mais um cataclismo que tem como local de origem a ilha de Mannhatan.

Um vírus matou diretamente um terço da humanidade, transformou alguns milhões em monstruosos seres da noite que devoraram o resto do outro terço. E o doutor Robert se viu sozinho para resolver o problema. Essa é a linha geral da história. Ele então vaga pelas ruas desertas de Nova York, na companhia de uma cadela, enquanto pesquisa a versão da vacina que reverteria o vírus nos sobreviventes monstruosos, e o planeta estaria salvo.

A complexidade do filme está dentro do drama do doutor Robert, e é aí que reside a parte interessante, o nivelamento por alto. É a solidão que interessa no cerne desse drama. É a condição humana sendo vigiada no interior de um homem que não pode contar com ninguém mais, com nenhum outro humano, e para se manter vivo, conversa com a cadela, com manequins, e fala na freqüência de todas as rádios da cidade vazia, na esperança de que alguém normal ainda pudesse existir como ele. Apesar de consciente de sua solidão, ele acredita, quer acreditar na possibilidade de não estar só.



A parte boa sobe mais um pouco quando o solitário homem, já sem sua companhia canina, morta por um dos monstrengos, descobre que não está sozinho, que há mais alguém igual a ele, mais duas pessoas, uma mulher e um garoto. É quando entra em cena Alice Braga, numa atuação digna de elogios, embora o papel não a ajude. Mesmo assim, seu personagem é importante. É ela quem resolve a questão fundamental do drama.
Voltando à solidão, a contribuição valorosa do filme é a de nos mostrar nossa própria sina, nosso destino humano, de estarmos sempre mergulhando num poço mais fundo do que o anterior, construindo nossa arca trágica. O filme se passa entre 2009 e 2012. Esse é o espaço de tempo que o vírus levou para dizimar quase toda a espécie humana da face da terra.
A tragédia, no entanto, se mostra mais voraz à medida que pouco antes do anúncio do vírus letal, fora anunciado para o mundo todo a cura do câncer. E aí, fazendo da arte uma realidade palpável, transferindo-se para o interior do filme, com as sensações de vertigem, de solidão e tudo mais, é de se perguntar “o que é melhor para o homem?”, e é de se responder, nos requintes da tragédia grega, à la Sileno, “o melhor para o homem não é outra coisa senão morrer”. Mas a resposta não é essa, claro. Ainda bem que Smith e Braga nos salvam do pesadelo terrível.

domingo, 27 de janeiro de 2008

HOSPÍCIO É DEUS: literatura e insanidade

“Sempre estive à altura do inesperado”
Nietzsche

“Considero-me além de qualquer expectativa”
Maura Lopes Cançado



Pouca gente já ouviu falar de Maura Lopes Cançado. Mesmo entre os leitores assíduos da literatura brasileira, é raro encontrar quem conheça pelo menos um dos dois livros que ela publicou: Hospício é Deus (Diário I) e O sofredor do ver. Passou despercebida pelo público geral, essa escritora que viveu entre a lucidez e a loucura e que encantava os colegas de redação no Jornal do Brasil na década de 60 com histórias divertidas e dramáticas.

Em Hospício é Deus, escrito durante uma de suas internações no hospital psiquiátrico Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro, aos 29 anos, ela diz: “Sou um anjo com vocação para demônio”. A frase lapida a essência de Maura, não só pelo que tem de demoníaca, mas também pelo que possui de luz e amplidão. Conforme o subtítulo, o livro foi escrito como se fosse um diário. Nas 20 primeiras páginas, Maura faz um apanhado autobiográfico, da infância até sua ida para o Rio de Janeiro, aos 22 anos. Depois as anotações são marcadas por datas que vão de 25 de outubro de 1959 a 7 de março de 1960.
Ao falar de seu tempo de infância, escreve: “Não creio ter sido uma criança normal, embora não despertasse suspeitas. Encaravam-me como a uma menina caprichosa, mas a verdade é que já era candidata aos hospícios aonde vim parar”. Em suas próprias palavras, a primeira entrada numa casa de loucos foi aos 18 anos, ainda em Minas Gerais, Estado onde nascera em 1930. Nessa mesma época, também tentou o suicídio pela primeira vez, e desde então, até a casa dos 30, sempre freqüentou sanatórios.

Ela define o hospício como “uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos”. Num momento de rara sensibilidade e capacidade de olhar ao mesmo tempo ao redor e para dentro de sua própria condição, ela escreve: “O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos”, e diz mais: “Hospício são flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro. (...) Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é Deus.”

Hospício é Deus é mais que um diário. O que há de literário nele é pulsante, vivo e muito atual. Hábil na arte de narrar, Maura costura suas conjeturas, conspirações e maluquices no interior do sanatório junto a histórias que evocam lembranças recentes. “Não é, absolutamente, um diário íntimo”, dizia ela, “mas tão apenas o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades. Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo.”

O tom megalomaníaco em que ela se expressa revela sua loucura, mas também deixa florescer a forte presença de espírito, e é isso que nos faz crer em tudo que está ali. A literatura, antes de mais nada, precisa convencer o leitor. Segundo Assis Brasil, “é bastante curioso, do ponto de vista crítico, saber que um escritor do porte de Maura Lopes Cançado tem um acervo existencial raramente encontrável em escritor brasileiro, sempre apegado a draminhas domésticos ou ligeiras crises passionais. Se seus diários tivessem sido publicados num outro país, teria elevado o nome de Maura Lopes Cançado ao plano literário internacional.”

Seu ‘acervo existencial’ é mesmo raro, e sua capacidade de criar vai além da loucura comum, fazendo observações agudas de si mesma e de seu mundo conturbado. “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com agressividade.” Eis mais uma frase lapidar de Maura, entre muitas que nos encantam, como este outro feixe esclarecedor: “Que emoções escandalosas tenho dentro de mim: é que às vezes tudo ameaça precipitar-se, minto para mim mesma, não sei para onde dirigir estas emoções. Minha consciência da inutilidade de tudo mata-me. Esta incapacidade de sofrer torna-me árida, vazia – (...) invento-me a cada instante.”

A voz dos outros

Esta assertiva coloca a obra de Maura no seu lugar devido, ou seja, no terreno da invenção. Não se trata de um diário realmente, mas de pura ficção. Quando escreve, Maura nos convence de que está falando sobre sua realidade. Mas basta o cotejo com um ou dois textos de quem conviveu com ela no Jornal do Brasil para descobrirmos a profunda montagem inventiva que é sua autobiografia. Ou seja, Maura é uma criação de si mesma, um personagem de sua própria obra.

Entremeando com outros relatos do diário, a autora vai contando uma história de amor platônico entre ela e o vice-diretor do hospital, o Dr. A. Como boa romancista, ela sabia que essa história serviria como fulcro de sua narrativa para a maior parte de seus possíveis leitores.

Em muitas passagens de Hospício é Deus, Maura se diz dotada de uma beleza avassaladora e de uma inteligência rara. No Jornal do Brasil conviveu com grandes nomes, que na época estavam se formando como figurões das artes brasileiras, como Carlos Heitor Cony, Amílcar de Castro, Ferreira Gullar – de quem ela diz “acho-o frio, esquizóide, distante. Creio não gostar dele. Mas gosto” –, Reynaldo Jardim, que prefaciou o livro, Assis Brasil, Mário Faustino, José Guilherme Merquior, entre outros.

De acordo com o jornalista José Louzeiro, que também conheceu a escritora, ela fora casada com um rico empresário mineiro, de quem se separou quando, ao pilotar um teco-teco, caiu sobre uma casa no bairro onde morava. “Feita a perícia, constatou-se que o aparelho não apresentava qualquer defeito mecânico. Maura abriu o jogo: tinha vontade de ver um avião cair e, estando dentro dele, a coisa lhe parecia muito mais empolgante.” O resultado foi o fim do casamento, o ex-marido querendo colocá-la no hospício e os parentes olhando-a com o rabo do olho.

Segundo Louzeiro, num texto que circula na internet, Maura encantava as pessoas com histórias iguais a que foi contada acima. “Sempre que começava a falar de suas aventuras, formava-se a roda de curiosos. Mas quando descobriram que ela misturava alhos com bugalhos, a platéia diminuiu.”

Louzeiro ainda diz que a escritora matou uma colega de hospício, enquanto estava internada, afirmando que a interna estava “impregnada”. Cony também conhece muitas histórias de Maura. Em texto publicado no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, do dia 15 de junho de 2007, ele lembra alguns desses casos. “Maura me procurou, dizendo que desejava escrever um romance. Tirei o corpo fora, não se ensina ninguém a escrever um romance, um ensaio, uma poesia. Ajudei-a apenas materialmente, dando-lhe uma máquina de escrever. O resultado foi ‘Hospício é Deus’.”

Maura Lopes Cançado tornou-se uma espécie de lenda nos parcos meios literários do Brasil. Além da ficcionalidade a partir da autoconstrução de seu perfil psicológico e físico, percebe-se que até mesmo os relatos de fontes confiáveis, como Cony e Louzeiro, podem entrar para o rol da ficção. Como é o caso do homicídio, cujo número sobe nas contas de Cony, passando de um para dois, e com outra versão. “Em duas de suas crises mais violentas, matou uma enfermeira e um namorado, cumpriu pena em presídios psiquiátricos, foi liberada por parecer de médicos que a examinaram e por juízes que absolveram.”

Apesar da tendência psicopática de Maura, sua literatura fala mais alto. Mesmo porque seus dados biográficos nunca foram apurados e trazem muitas contradições. Pelo menos ninguém se interessou em apurá-los até agora. O ano de sua morte aparece em textos da internet como sendo 1992, 1993 (segundo a edição de abril de 2002 do jornal Estado de Minas, no caderno Feminino & Masculino) e 1997.

Segundo Cony, Maura “morreu há pouco [1997?], esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas psiquiátricas. Não mais escrevia, não procurava ninguém e por ninguém era procurada, a não ser por seu filho, Cesarion Praxedes, que morreu dois anos atrás.”

Já o jornalista e escritor Pedro Rogério Moreira, na revista Encontro (Março - 2004 - Ano II - nº 25), diz que Maura “morreu em 1993, aos 64 anos, num hospício do Rio.”

Uma possível ascensão

Sua fortuna crítica também é parca, em parte pelo volume de sua obra, o que não é desculpa, porque, mal comparando (chegando a cometer uma heresia), Juan Rulfo escreveu aproximadamente a mesma quantidade de páginas e tem uma fortuna crítica dez vezes maior do que sua própria obra. E em parte pelo desinteresse ou desconhecimento dos estudantes de Letras.

Mas, voltando ao Cony, segundo ele, as dissertações de mestrado sobre a escritora já começam a crescer. “É um fato mais ou menos comum em todas as literaturas: escritores de talento, alguns beirando a genialidade, passam desapercebidos por seus contemporâneos e somente aos poucos vão conquistando espaço entre os estudiosos fatigados de analisar as obras já exaustivamente analisadas pela massa crítica que se forma nas academias, nas editoras e na mídia. Temos alguns exemplos entre nós – e o de Maura me parece o mais recente e emblemático.”

Entre os estudiosos da literatura brasileira, o escritor e crítico literário Nelson de Oliveira é um dos que sempre recomendam Maura Lopes Cançado como importante autora da prosa em língua portuguesa.

No prefácio de Hospício é Deus, Reynaldo Jardim escreve:

“Eis a tranqüila fúria. Ei-la aberta à emoção e ao tédio. Ei-la cantando a ficção real do cotidiano alumbrado. Ei-la, pânico sem susto, desvairando o pensamento claro, assombrando o sonho preciso, limpo e justo do pesadelo em vigília. Calmo sobressalto. Eis o canto mais alto de ser, sendo a um tempo e medo, lúcido punhal e carne transpassada. Eis o que não pode ser amada e se autodevora: flora animal, passiva flor urbana sob o peso da luta, transmutando impotência de vítima em demoníaco cacto flamante, visgo de fogo simulante, granadas no arsenal.”

Jardim diz para termos medo do livro, chamando a atenção para a periculosidade do escrito contra a lucidez dos leitores tranqüilos. Faz isso como isca, é verdade. Em todo caso, o que se vê no livro de Maura Lopes Cançado é uma beleza profunda. O belo assusta, às vezes, por ser demasiado abissal, mas também nos revela muitas verdades. E é o que a autora faz nesta obra.


Frases do diário:

“Considero meu diário simplista. Sou muito mais do que aparento ser neste diário.”

“Estou brincando há muito tempo de inventar, e sou a mais bela invenção que conheço.”

“Chego à conclusão de que o mal é uma dimensão da minha natureza.”

“Qualquer reação, se estamos diante de um analista (ou com pretensões a), é sintomática, reveladora de conflitos íntimos, ponto de partida para as mais variadas interpretações. Em se tratando de simbologia, somos traídos a cada instante (ignoro se sobra algum prazer na vida para estes interpretativos analistas). Jamais expressamos a verdade – que passa por caminhos sinuosos, apenas conhecidos do ‘monstro’ à nossa frente, o analista, único que não se deixa enganar. Em relação ao sexo a coisa é um desastre: lápis, caneta, dedo, nariz, são símbolos fálicos. É irritante: tenho o inocente hábito de estar sempre com um dedo ou lápis na boca. Não compreendo como um simples lápis ----------. Mas o tal de analista compreende. E julga flagrar-nos quando fazemos observações puras e autênticas. Ah, ele sabe que não são autênticas. O tal de analista sabe. Uhhhhhhhhhhhhhh!”

OBS: Hospício é Deus foi publicado pela primeira vez em 1965. Depois teve outras edições. O exemplar utilizado para o presente texto foi editado pela Record em 1979, e, apesar de trazer o subtítulo “Diário I”, o autor deste texto nunca encontrou o possível Diário II. Talvez tenha ficado apenas na intenção da autora.

Blog onde se lêem algumas cartas de Maura Lopes Cançado: http://www.verabrant.com.br/principal.htm

Blog onde foi publicado O espelho morto, um dos contos de O sofredor do ver: http://www.polichinello2004.blogger.com.br/