segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O cachorro

O dono um dia teve de viajar. O cachorro se viu obrigado a vigiar a família que ficou. Todos os dias passeava pela orla do mar, na expectativa de ver um certo barco se aproximando e seu senhor afagando-o entre as mãos novamente, fazendo-lhe confidências de terras distantes, trazendo-lhe coelhos de presente, aquele cheiro caseiro, aquele perfume de azeitona e azambuja, aquele senhor que corria as mãos pela sua cabeça e o chamava para correr na praia, para visitar o pai, para brincar com o filho ainda pequeno.

Aquele homem inteligente, rápido e forte, de tudo capaz, não chegava nunca. Os anos se passavam e ele nunca despontava no horizonte. Até que um dia, enquanto a família reunia-se na varanda (o cachorro de olhos pálidos e cansados deitado debaixo de uma mesa), chegou um velho de cara carcomida, segurando-se num bastão trêmulo, pedindo água e alimento.

Ninguém o reconheceu. O cachorro não pôde ver seu rosto irreconhecível. A voz de velho não tinha o mesmo timbre ressoante de outrora. Mas o cachorro pôde sentir o cheiro, aquele odor de tanto tempo esmaecido em sua alma de cão, guardado na memória canina ainda intacta, o passado ainda pulsando forte em suas lembranças.

O cachorro que latia alto, que corria leve, que saltava cercas, o cachorro guardião da família envolvida pelo tempo, agora estava entortado pelo mesmo tempo e pereceu de alegria. O rabo ainda balançou sutil e, depois do frágil grunhido de contentamento, foi o último a parar de se mover.


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sábado, 16 de janeiro de 2016

Ficção política

Em A Importância do Ato de Ler, Paulo Freire deixa uma premissa fundamental na formação de leitores, segundo a qual, linguagem e realidade se prendem dinamicamente. Isso significa basicamente que aprender a ler a palavra é mais fácil quando se utiliza o mundo que o aprendiz já sabe ler (ou está aprendendo a ler, se for criança), ou seja, o mundo a seu redor.

Essa premissa serve para quase todo tipo de leitura, menos para ler de modo pleno a declaração de políticos quando falam de si mesmos à imprensa ou diretamente ao público. As duas coisas se desprendem de tal maneira que fica impossível conjugá-las, fazê-las caminharem lado a lado. Linguagem e realidade se desgrudam como elementos heterogêneos em decantação.

Trata-se de uma constatação que no fim das contas não é novidade alguma. O político sabe que falar de si para jornalistas no particular (off) ou com gravadores e câmeras ligados (on) não é o mesmo que falar de si a amigos e confidentes, na cozinha de casa, em um jantar entre amigos, numa conversa entre um “passe o sal” e uma garfada no prato principal.

Por isso mesmo, nas conversas com jornalistas, deve sempre usar a técnica de ser um outro, um ser estranho com a habilidade de fazer parecer real aquilo que declara de si mesmo, quando na verdade é pura ficção.

O último que tentou falar de si com integridade para a imprensa foi Fernando Henrique Cardoso, em 1985, e se deu mal. Na ocasião mantinha uma larga vantagem nas pesquisas na disputa pela Prefeitura de São Paulo, mas bastou dizer que era ateu (falou a verdade de si mesmo) e já era, perdeu a eleição aos 45 do segundo tempo. O resultado foi tão catastrófico que FHC mais tarde negaria até o que escrevera.

Se um político do Executivo está com medo de determinada pressão, diz algo do tipo: “Encaro isso com a coragem que Deus me deu.” Os mais ousados ficcionalizam inclusive quando falam da realidade da cidade, do Estado que administram ou da sociedade que representam. “Meu pensamento e minhas atitudes são democráticas”, dizem, quando na verdade trabalham o ano inteiro atendendo a interesses contrários aos dos cidadãos e até mesmo contrários à democracia.

Há sempre as exceções. Por isso, ao falar com um político pela primeira vez, talvez deva-se sempre perguntar em voz silenciosa: suas respostas para essas perguntas são reais ou fictícias? Quem está respondendo, é o político ou o cidadão? Como saber? Suas respostas os colocam na cozinha, em sua sala de jantar, ou numa tribuna? Que elementos podem nos guiar para a verdade de suas palavras? Que parte delas é a luz que iluminará o rastro de suas falas até chegar onde estão agora?

Entendê-los pelas palavras, como se fossem fios escassos que os tecem por inteiro, é impossível. É preciso fazer cada resposta relampejar sobre o homem, olhar com certa ternura para esses seres fora do habitat, fora do mundo político. Será que cada palavra é política? Será que cada verbo forjado na resposta é fruto da verdade líquida que rega esse jardim de traquejos? Onde está o homem aqui?

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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O drama de Ricardo Piglia

                                                              Site ochaplin.com
Ricardo Piglia sofre de ELA, mesma doença de Stephen Hawking

Em 2013, Ricardo Piglia, escritor argentino de 74 anos muito lido no Brasil, foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença terrível que vai paralisando progressivamente os músculos sem afetar as faculdades mentais. Se por um lado, permite que o escritor trabalhe com sua contínua paixão da vida toda, a literatura, por outro, condena-o a se ver definhando na inexorável aproximação do fim. É a mesma doença de Stephen Hawking.

Uma reportagem publicada no site do jornal espanhol El País, na terça-feira (5 de janeiro), conta a história do périplo da enfermidade de Piglia, de seu drama particular, que ao mesmo tempo diz respeito a todos os seus fãs e leitores. Em depoimento ao jornal, a mulher do escritor, Beba Eguía, diz que mesmo enfermo ele não para de trabalhar.

Piglia conta com a ajuda de um pequeno exército de pessoas, sete no total, que vão à sua casa, em Buenos Aires, para trabalhar com ele sobre uma série de relatos do comissário Croce, personagem do romance Alvo noturno.

Além disso, há um enfermeiro e um cinesiólogo (profissional da cinesiologia, que, segundo o site Saúde Pelo Toque, trabalha a “harmonização de todo o corpo - físico, mental, espiritual - através de um balanceamento muscular”) que se juntam aos outros, todos os dias. “'Às vezes saio de meu quarto pela manhã e o enfermeiro já está ali sentado e não sei quem mais. Passa gente o tempo todo. Esta é uma casa aberta, do tipo comunidade', diz Beba, com um riso curto e seco.”

O drama de Piglia começa aí, porque sua doença não responde ao tratamento convencional. Segundo El País, em setembro do ano passado, o escritor obteve o respaldo de seus médicos para receber um remédio novo chamado GM604, fabricado pelo Genervon, laboratório americano, que se mostrou muito efetivo no tratamento da ELA, mas o tratamento custa os olhos da cara. Beba e Piglia, com a ajuda de amigos, diz o jornal espanhol, vêm arcando com as despesas. A dívida, no entanto, já chega a US$ 95 mil.

Medicus, a empresa do plano de saúde que Piglia paga há dez anos, não quer arcar com os custos, e o escritor corre o risco de perder o tratamento. A família entrou na justiça e foi à imprensa denunciar aquilo que pode ser visto como negligência. Conhecemos bem isso por aqui.

O tratamento com o novo remédio, segundo a mulher de Piglia, retarda o avanço da doença. Com o medicamento, o trabalho incansável do autor continua. “O resultado (desse medicamento) é assombroso. Ganhou peso, consegue sustentar o dorso e se mover um pouco. (…) Para continuar assim, não podemos parar com o tratamento, e por isso temos de obter as doses que faltam”, diz Beba.

O lance é torcer para que dê tudo certo, e que Piglia siga sua jornada de escritor, sem sofrimentos. Não só por ser “um dos autores de língua espanhola mais prestigiados na atualidade”, segundo El País, mas porque a vida pede. Piglia tem um livrinho de crítica literária intitulado Formas breves que me ensinou muito sobre como se lê o conto moderno.

Seu livro mais recente é a coletânea de memórias Los diarios de Emilio Renzi - años de formación, lançado em 2015. Em português, o último a ser traduzido, em 2014, foi o romance O caminho de ida, lançado originalmente em 2013. Leitor incansável, suas conferências sobre literatura são famosas, e um livro marcante dessa temática é O último leitor. Ainda entre seus romances, são destaques Respiração artificial, de 1980, e Dinheiro queimado, de 1987.

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sábado, 2 de janeiro de 2016

Lolita Pille no inferno

Lolita Pille, autora de Hell: Paris - 75016, autoficção que narra a vida tresloucada das patricinhas endinheiradas de Paris 

Muitas publicações caem no gosto dos leitores médios, mas depois afundam-se no mar impiedoso do esquecimento. Lolita Pille, uma francesinha bem-nascida e muito bonita, aos 21 anos estreou na literatura com Hell: Paris - 75016  (Intrínseca, 2003, tradução de Júlio Bandeira), livro que excitou a massa leitora no mundo inteiro pelo exotismo do ambiente e dos personagens da alta sociedade francesa, exuberantes, sensuais, pródigos porras-loucas arrogantes.

Sua narrativa tem elementos autobiográficos, mas a autora estava no olho do furacão da vida fútil e conhecia bem o ambiente para saber captar a essência dele sem ser ela mesma o tempo todo nessa história. Depois, Lolita escreveu outros livros, Bubble Gum (2004) e Cidade da penumbra, 2011 (ambos saíram pela Editora Intrínseca, no Brasil), que não chamaram mais tanta atenção.

De fato, Hell tem um abre eletrizante e intimidador. Como um grã-fino grosseiro e violento que sai do carro na hora do congestionamento e começa a metralhar com palavras ofensivas o pobre coitado cujo carrinho foi cutucado pelo carrão do outro, a narradora de Lolita começa seu romance assim:

“Eu sou uma putinha. Daquelas mais insuportáveis, da pior espécie; uma sacana do 16ème, o melhor bairro de Paris, e me visto melhor que a sua mulher, ou a sua mãe. Se você trabalha num lugar ‘metido’, ou é vendedora numa butique de luxo, com toda certeza gostaria que eu morresse; eu, e todas as minhas iguais. Mas a gente não mata a galinha dos ovos de ouro. De forma que a minha espécie insolente irá perdurar e proliferar...

Sou o símbolo manifesto da persistência do esquema marxista, a encarnação dos privilégios, os eflúvios inebriantes do Capitalismo.

Como digna herdeira de gerações de mulheres da sociedade, passo muito tempo na boa vida cobrindo de esmalte minhas unhas; folgada tomando banho de sol; com a bunda sentada numa poltrona com a cabeça entregue às mãos de Alexandre Zouari, ou olhando vitrines na rue du Faubourg-Saint-Honoré, enquanto vocês passam o tempo todo trabalhando para pagar as porcariazinhas de que precisam.”

O estilo de Lolita é semelhante àquele usado por Gabriel Pensador na música Retrato de um playboy: “Sou playboy, filhinho de papai/ me afundo nessa bosta até não poder mais.// Sou playboy, filhinho de papai/ sou um débil mental/ somos todos iguais”, que, diga-se de passagem, veio em 1993, dez anos antes da narrativa de Pille, que tem o valor de ser inebriante, como aqueles vinhos baratos que a gente toma, fica bêbado, e como consequência tem uma dor de cabeça incrível no dia seguinte.

É o tipo de livro que faz o percurso inverso dos que nascem como ensaio sociológico e viram literatura, como Os sertões, de Euclides da Cunha. Hell foi concebido como romance literário, retratando uma dada realidade, realismo-naturalismo da alta sociedade, mas receio que vá morrer nos cantos esquecidos dos sebos como um pequeno tratado sociológico, uma história da vida privada dos abastados.

Digo isso do ponto de vista estilístico, dos procedimentos literários. Parece mais uma narrativa jornalística, do jornalismo gonzo, só que não. Mas há uma sacação interessante. A narradora desfila o que há de pior no coração dos homens. Não há ali uma cartografia da alma nobre. Há apenas um conjunto de baixezas e de preocupações com a materialidade da vida, um espécie de vômito ou enjoamento do real rico, em que tudo passa pelo desejo de posse, não há outro tipo de desejo, nem de sentimento que não seja a animalidade do sexo e da grana como locução derivativa do poder.

Nem nas classes mais abjetas em termos de humano, como a alta burguesia, a vida se desenvolve apenas em torno da grana e dos inúmeros benefícios que ela traz. Há na vida os 50 tons de vermelho, matizados por outros incontáveis tons de tudo, de negro, de azul (de blues), de rosa, de verde, de cinza e breu.

Como ferramenta importante para olhar o mundo, o livro de Lolita apresenta um dado interessante cuja gênese está em um compatriota dela, esse, sim, autor de literatura da raiz ao céu sem fim, Marcel Proust, que na obra Em Busca do Tempo Perdido mostra o comportamento da nobreza em decadência material na comparação com a burguesia em ascensão material.

Se a nobreza não tinha coração na hora de executar demandas de poder, defender seus privilégios, por exemplo, tinha coração na hora de olhar para baixo. Um homem de coração nobre é um homem que sabe lidar com aquele que está abaixo, mesmo que simbolicamente. A burguesia nem isso tem. É o que nos mostra Proust. Pille escancara isso em Hell, mostra-nos em plena forma os bisnetos dos burgueses mostrados por Proust, sentindo, pensando e agindo às claras, como vampiros que não mais têm medo da luz, e sob o sol sai à caça de sangue fresco.

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