segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O cachorro

O dono um dia teve de viajar. O cachorro se viu obrigado a vigiar a família que ficou. Todos os dias passeava pela orla do mar, na expectativa de ver um certo barco se aproximando e seu senhor afagando-o entre as mãos novamente, fazendo-lhe confidências de terras distantes, trazendo-lhe coelhos de presente, aquele cheiro caseiro, aquele perfume de azeitona e azambuja, aquele senhor que corria as mãos pela sua cabeça e o chamava para correr na praia, para visitar o pai, para brincar com o filho ainda pequeno.

Aquele homem inteligente, rápido e forte, de tudo capaz, não chegava nunca. Os anos se passavam e ele nunca despontava no horizonte. Até que um dia, enquanto a família reunia-se na varanda (o cachorro de olhos pálidos e cansados deitado debaixo de uma mesa), chegou um velho de cara carcomida, segurando-se num bastão trêmulo, pedindo água e alimento.

Ninguém o reconheceu. O cachorro não pôde ver seu rosto irreconhecível. A voz de velho não tinha o mesmo timbre ressoante de outrora. Mas o cachorro pôde sentir o cheiro, aquele odor de tanto tempo esmaecido em sua alma de cão, guardado na memória canina ainda intacta, o passado ainda pulsando forte em suas lembranças.

O cachorro que latia alto, que corria leve, que saltava cercas, o cachorro guardião da família envolvida pelo tempo, agora estava entortado pelo mesmo tempo e pereceu de alegria. O rabo ainda balançou sutil e, depois do frágil grunhido de contentamento, foi o último a parar de se mover.


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