segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Nenhum dia de cão

A inteligência e o cultivo do saber do povo judeu são fascinantes. Seus livros sagrados – seu acervo de palavras profundas que nos lançam a um caminho de luz ou nos ameaçam às trevas (se não seguirmos as normas que equilibram o espírito) – são colunas gigantes de ensinamento. O Zohar, por exemplo, o livro do esplendor, diz coisas maravilhosas sobre nossa condição humana.

O Zohar é considerado a espinha dorsal da Cabala, e durante muitos séculos foi transmitido apenas entre os judeus como a “parte mais mística da Torá Oral”. Nos trechos traduzidos para o português pela editora Polar, o mestre Shimon ben Yochai revela a beleza e os mistérios desse universo.

A metáfora dos dias como unidades constituintes do ser do homem, todos contados já no nascimento – cada dia consciente de sua posição, para levar o homem até seu leito de morte – é um grande ensinamento sobre a presença e a materialidade da alma, daquilo que não se vê, do ar, da existência para além da aparência.

Segundo o Zohar, os dias “descem à terra, um depois do outro, e cada um exorta o homem a não pecar em seu dia. Quando um dia vê que o homem não o escutará, mas está determinado a pecar, ele se enche de vergonha. Então retorna para as regiões superiores e dá o testemunho dos atos do homem.” Mas ele, o dia manchado pela falha humana, é apartado dos outros dias para sempre.

A imagem de dias subindo de vergonha e deixando a biografia do homem com falhas de caráter é exemplar para explicar o combate a tudo quanto é violência. Ainda assim, há uma divisão entre os homens (esses seres de alma), em que uns procuram a serenidade e outros vão de cabeça contra a vida. E a clivagem ocorre mesmo entre os conhecedores desse mar de palavras reguladoras do espírito.

Até mesmo entre os judeus, fundadores dessa esperança, há quem goste de matar. E não é de hoje. Esse rastro de destruição e morte vem sendo registrado desde o gênesis. E o vemos se repetir agora. Penso em gente como Netanyahu, premiê de Israel, e primos. Será que na fila de seus dias, ainda há algum que não tenha subido de vergonha?

Na história da humanidade há sempre o rancor. Em alguns de nós, ele se cala, seca e vira seda ou algo parecido, porque todos os dias se sentem jubilosos em nos acompanhar. Mas em outros, no filamento duplicado da alma, o que prevalece é esse barro ínfimo de liga ruim que nos erige. É por causa deles que tantos dias sobem envergonhados e tristes. Pecar não é um ato apenas de quem tem fé, é machucar o outro. Neste sentido, todos nós temos dias de cão.

No Zohar, a palavra é apresentada como véu, por trás do qual há mil mistérios, tendo-se que atravessá-los para se aproximar de alguma coisa parecida com Deus. Para mim o que importa é a beleza crítica dessa busca. Não é Deus que está em jogo, mas nós mesmos.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 29/11/2014)


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