quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS VII: Fale com ela

Detalhe de cena de Fale com ela, Benigno e Marco com Alicia e Lydia no hospital

Solidão é não se sentir amado, por mais que se tenha amor para dar. Essa premissa está implícita no filme de Pedro Almodóvar, Fale com ela, que fez muito sucesso em 2002. É um filme carregado de paixão nos contornos das relações humanas, na busca de um sentimento perdido.

No fulcro da película giram quatro personagens principais: Benigno (Javier Câmara), Alicia (Leonora Watling), Lydia (Rosario Flores) e Marco (Dario Grandineti, que recentemente fez um filme brasileiro, junto com Helena Ranaldi, Bodas de papel).

Benigno é enfermeiro. Sem pai. Depois de perder a mãe, passou a morar sozinho. Conhece Alicia enquanto ela tem aulas de balé. Quando Alicia sofre um acidente de carro e entra em coma, ele a acompanha dias e noites no hospital, falando com ela.

Marco é jornalista e encontra Lydia pela primeira vez a propósito de uma entrevista que ele quer fazer com ela sobre a fragilidade feminina. Os dois se tornam amantes, mas pouco tempo depois, ela, que é toureira, sofre um acidente na arena. É atropelada por um touro de meia tonelada e entra em coma para meses depois morrer.

No hospital, Benigno e Marco se conhecem e travam uma amizade que marca toda a trama do filme, cujo desfecho coloca os dois homens em planos diferentes e aproxima Marco de Alicia, tecendo uma dramática e lírica relação de encontros e desencontros.

A beleza de Fale com ela está no fato de abordar o amor como resposta à vida e a solidão como ausência da reciprocidade amorosa.

O personagem Benigno é profundo porque sente e deixa transparecer a necessidade da presença do outro para viver. É com o intuito de reanimar Alicia que ele a toca, fala com ela, conta-lhe histórias, e a ama, na esperança de tirá-la do coma e trazê-la de volta à realidade plena das coisas, chegando a cometer o crime de engravidá-la no leito do hospital, inconsciente.

Benigno despejava todo o seu amor no corpo inerte de Alicia, que foi beneficiada com isso, uma vez que não morreu graças a esses cuidados e, certamente, em função também da gravidez. A produção hormonal e a modificação fisiológica de seu corpo a salvaram da morte.

Enquanto isso, Benigno permanecia só. Para continuar vivendo, para não sucumbir diante da solidão, fingia uma reciprocidade do amor que dedicava a Alicia.

É quase impossível sobreviver sem a presença do outro, ainda que esta presença seja apenas um sussurro, um acariciamento no íntimo da consciência adormecida. Eis mais uma premissa do filme.

Fale com ela dá margens a uma interpretação simbólica muito rica. A vida não faz sentido sem o amor. E o amor representado ali é puramente cristão, o amor solidário. É como se estivéssemos ouvindo Cristo falar “amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”. Benigno é o próprio Cristo, o nome já insinua uma bondade cristã quase religiosa.

Benigno ama Alicia. Mas, trata-se de um amor acima do interesse carnal, apesar do ato sexual. É que ele é profundo e sabe que sem esse sentimento a vida é impossível de ser vivida em profundidade. Alicia morreria – como Lydia – sem a atenção que recebera.

Precisamos do outro para viver. Precisamos do amor do outro, do carinho, da palavra, da presença. É como se disséssemos: tua presença é que me faz viver. Necessito da tua imagem para aperfeiçoar a minha.

Como Cristo, Benigno morreu na solidão dos mártires, na prisão, aonde foi parar por ter engravidado Alicia em coma. O que fizera caracteriza um crime, de fato, mas conceitualmente, a salvar uma vida, sua atitude fora um sacrifício.

Ele se sacrificou. Morreu para salvar uma vida, no mero exercício do amor, e por isso morreu na solidão, se matou, nas grades do desespero calmo de não ter com quem falar, na falta de um amor maior.

A conotação religiosa não é pequena. Almodóvar não falaria da fé, de milagres, em vão. Talvez quisesse dizer que o amor faz milagres, e fez, no caso de Benigno com Alicia. Talvez dissesse que para viver é preciso amar. Como afirma o filósofo francês Vladimir Jankélévitch: “para amar é preciso ser, mas para ser, é preciso antes de tudo amar, pois quem não ama é um simples fantasma.”

Nesse caso, somos quase todos fantasmas. Nossa existência é um fantoche, mais do que isso, um vazio reprodutor da solidão. “Quero falar da solidão”, disse Benigno a Marco, no momento que por certo já não agüentava mais o peso de estar só.

No caso da morte de Benigno, o carrasco não é uma pessoa, mas toda uma cultura preconceituosa, desconfiada e de sentimentos superficiais.

Essa relação do silêncio, por meio da solidão, com a necessidade da palavra, da presença de espírito, é trágica. Há uma ruptura, aliás, várias. O filme é cheio de fendas que fazem nascer uma outra “realidade” a cada momento, como no atropelamento de Alicia, no acidente de Lydia e na gravidez de Alicia em coma.

A vida está entre o silêncio de ainda não se ter nascido e a morte, o retorno ao silêncio absoluto. É uma ruptura, e, portanto, uma tragédia. E o amor, representando a vida, também é uma tragédia. Não o amor em si, mas o fim dele. Marco lembra-se disso, e cita Tom Jobim, dizendo que o fim de todo amor é trágico.

O filme de Almodóvar afirma a relação do cineasta com a cultura brasileira. Além da citação de Jobim, vemos Caetano Veloso surgir numa cena de flashback que elogia a delicadeza e a sensibilidade masculinas.

Nesta cena, Caetano canta Cucurrucucu Paloma, um clássico do cancioneiro mexicano, em ritmo mais lento. Quando o brasileiro termina de cantar, Marco, que chorava durante o show, diz a Lydia: “Este Caetano me há puesto los pelos de punta.”

É verdade que o filme faz um elogio ao amor masculino, mas no fundo o que permanece mesmo é o caráter essencial do sentimento amoroso, ou a mensagem de que somente na condição de ser amante e ser amado é que estamos completos. Sem essa reciprocidade, corremos o risco de mergulharmos no mar profundo de uma solidão irrevogável, a morte em vida.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que coisa, mon ami, lendo seu texto, foi inevitável a vinda à memória recente do hóspede de Morel.
Também ele dedica sua parca existência a compreender, amar e tentar ficar ao lado de uma mulher que lhe é alheia simplesmente por não saber a existência...Só e junto da figura amada (figura pois a não participação ativa - nem que seja para fugir ou contestar - da imagem quadrimensional da mulher), ele supera até seus desconhecimentos em máquinas e, mesmo sabendo que o preço a pagar é a própria vida, coloca-se em existência contínua em uma fotoshop diferenciada, vivendo ao lado dela. Virtualmente. Consciente de se tornar um fantasma que assombra outro, o personagem segue e some desta dimensão...Não está mais só. Estamos com ele, cúmplices deste sacrifío existencial em nome do amor. Isto também me parece, mais ainda, com morte em vida. Abraço, Giba, o Solitário das multidões.
Flávia Morel.

Gilberto G. Pereira disse...

É verdade. Enquanto Benigno ama uma mulher em coma e fala com ela, sem obter resposta, tentando ser e fazer dela um ser, o narrador-personagem de A invenção de Morel também ama uma figura que não lhe responde, e tenta existir ao lado dela. Mas, tenho a impressão de que as semelhanças ficam nesse calabouço.
Um abraço, Flávia!